Livros, bibliotecas e intelectuais no mundo ibero-americano (séculos XVI ao XX) / História (Unesp) / 2017

O passado esquecido e o presente trágico

O presente número da revista História (São Paulo) está constituído por dois dossiês, vários artigos livres e resenhas de importância inequívoca para o enriquecimento da discussão historiográfica do Brasil e também no âmbito internacional.

O dossiê 1, foi organizado pelo professor Paulo Gonçalves da UNESP – Campus de Assis, sobre o título Movimentos migratórios no mundo Atlântico, séculos XIX e XX. É evidente a atualidade do fenômeno migratório, cada vez mais desafiador, dos grandes deslocamentos populacionais, vítimas de graves crises econômicas, guerras ou genocídio étnico em seus países. Não é preciso retroceder aos horrores do genocídio étnico realizado pelo Império Turco Otomano aos armênios ocorrido durante a Primeira Grande Guerra e nem mesmo ao massacre de Ruanda ocorrido em 1994 (PRUNER, 1999) ou ao holocausto ocorrido na Alemanha Nazista durante a Segunda Guerra Mundial. Basta atentarmos para o conflito interno da Síria iniciado em 2011 que tem gerado uma enorme onda migratória de sírios e árabes, sem paralelo na história do Continente, desde a Segunda Guerra Mundial. Ou para o genocídio étnico dos rohingya em Myanmar, país budista liderado pela Nobel da Paz Suu Kyi que se escancara aos olhos dos organismos internacionais sem que nada de significativo aconteça. O presente dossiê propõe uma volta ao passado, discutindo os movimentos migratórios dos séculos XIX e XX com vistas à compreensão das catástrofes que estamos vivendo no século XXI. O passado tem que ser sempre lembrado para que os dramas contemporâneos não se transformem em banalidades que não afetam a sensibilidade dos governos, dos organismos internacionais e de nós mesmos. É assim que entendemos Hobsbawm quando diz que o ofício dos historiadores é cada vez mais importante, pois cabe a ele lembrar o que os outros esquecem (HOBSBAWM, p. 13).

É sob esta perspectiva que foram reunidos aqui artigos que discutem diferentes aspectos de grupos e indivíduos e suas experiências no plano das migrações transoceânicas. Os artigos aqui elencados evocam temas bastante atuais de investigação através enfoques teóricos e metodológicos diversos. Aqui são tratados temas relativos às desesperanças e frustrações de imigrantes das mais diversas partes do mundo ao chegarem ao Brasil e em outros países, e constatarem que nada do que lhes foi prometido era realidade. Em suas sociedades de adoção tiveram que se submeter à condição de trabalhadores semelhantes aos escravos africanos, enfrentando preconceitos e imensas dificuldades de inserção social. O tráfico de mulheres brancas para fins de prostituição também compõe este quadro de degradação humana. Um dos artigos aqui apresentado discute tal fenômeno delimitando o espaço temporal de fins do século XIX a inícios do século XX, mas sua autora adverte que experiências dessa natureza não se encerram no passado, mas se fazem sempre presente nos deslocamentos de massa que caracterizam a época contemporânea.

O professor André Figueiredo Rodrigues, da UNESP – Campus de Assis e o professor Germán A. de la Reza, da Universidade Autônoma Metropolitana do México foram os organizadores do dossiê 2, que abrigou artigos abordando o tema Livros, bibliotecas e intelectuais no mundo ibero-americano (séculos XVI ao XX). A temática proposta pelo dossiê atraiu a atenção de estudiosos nacionais e internacionais que abordam o assunto sob os mais variados aspectos. Recebemos artigos sobre a história, a posse de livros e as práticas de leitura no mundo Ibero-Americano que circularam nos dois lados do Atlântico e mesmo dentro do continente americano entre os séculos XVI e XIX.

A materialidade e a discursividade de autores e suas obras, acervos bibliográficos e documentais, a historiografia do livro no universo colonial, hábitos de leitura e informações e discussões sobre as fontes disponíveis foram alguns dos temas explorados pelos artigos publicados no dossiê. Ressalte-se a discussão sobre a metodologia de análise e interpretação de fontes documentais sobre os participantes do Movimento da Inconfidência Mineira e da Insurreição Pernambucana de 1817, desenvolvidas em seus artigos pelos professores André Figueiredo e Luiz Carlos Villalta,respectivamente. Mas estes são apenas dois exemplos dos trabalhos que discutiram com densidade e profundidade a proposta do dossiê.

Enfim, nas leituras dos artigos do dossiê 2 podemos encontrar discussões instigantes a respeito das práticas de leituras em suas diversas modalidades, ou seja, podemos constatar uma coleção indefinida de experiências de leitura enquanto liberdade interpretativa e enquanto prática criativa autônoma dos indivíduos (CHARTIER, p. 121-139).

Por fim, os artigos livres publicados por esta revista neste número são variados em seus tratos teóricos, metodológicos e temáticos. Deixamos aos leitores fazer sua própria apreciação ao invés de falarmos sobre cada um deles.

Queremos tributar nossos sinceros agradecimentos aos professores que organizaram os dossiês, aos pareceristas que não hesitaram em dar suas contribuições para que a revista preserve a boa qualidade oferecida aos leitores e aos autores que deram preferência à revista História (São Paulo) para a divulgação de seus trabalhos.

Referências

CHARTIER, Roger. A História Cultural: entre práticas e representações. Lisboa, Difel, 1990. [ Links ]

PRUNER, Gérard. The Rwanda Crisis History of a Genocide. 2. Ed. Kamplala Fountain Publishers Limited, 1999. [ Links ]

HOBSBAWM, Eric. A Era dos extremos. O breve século XX, 1914-1991. São Paulo, Companhia das Letras, 1995. [ Links ]

José Carlos Barreiro 

Ricardo Alexandre Ferreira

Editores 


BARREIRO, José Carlos; FERREIRA, Ricardo Alexandre. Apresentação [O passado esquecido e o presente trágico]. História (São Paulo), Franca, v.36, 2017. Acessar publicação original [DR]

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Os Arquivos das Casas editoriais (documentos e livros) como fontes para a História / Revista de Fontes / 2015

Neste terceiro número da Revista de fontes apresentamos um dossiê que é fruto da “II Jornada de fontes: os arquivos das casas editoriais (documentos e livros) como fontes para a História” realizada em 18 de novembro de 2015, pelo Departamento de História da Unifesp. Nessa ocasião, pesquisadores convidados demonstraram diversas possibilidades de investigação da produção e circulação de impressos, bem como a riqueza da documentação presente nos fundos de coleções e arquivos de editoras, bibliotecas e outras instituições de produção e guarda. O dossiê convida todos a conhecerem algumas abordagens vinculadas à História do Livro, das Edições e da Leitura, que nos permitem compreender historicamente projetos editoriais, processos de seleção, edição e circulação de impressos, bem como formas de organização e preservação de acervos.

Editoras com grande projeção nacional, no século XX, foram alvo das pesquisas ora apresentadas: Fábio Franzini analisa a Coleção Documentos Brasileiros, da Livraria José Olympio Editora. Essa mesma editora foi objeto de investigação de Gustavo Sorá, que propõe uma etnografia histórica de seus arquivos. Paulo Teixeira Iumatti explora a materialidade do livro a partir de suas pesquisas sobre preservação e restauro do acervo da Editora Brasiliense. Também merecem destaque os artigos sobre a Companhia Editora Nacional, cujos arquivos estão sob a guarda do Centro de Memória da Unifesp. Os trabalhos de Maria Rita de Almeida Toledo, Jaime Rodrigues e Márcia Eckert Miranda revelam a importância histórica de seu acervo e as muitas possibilidades de pesquisa.

Para além das fronteiras nacionais, Gabriela Pellegrino Soares analisa a circulação da prestigiada publicação francesa Revue des Deux Mondes, distribuída na América Latina, no século XIX; e Richard Oram esmiúça o arquivo literário da editora norte-americana Knopf, Inc., um dos maiores do gênero em língua inglesa. Fechando esse número, já fora da temática da II Jornada de fontes, Denise Soares de Moura apresenta uma ferramenta de pesquisa produzida na Unesp, que disponibiliza em formato digital parte do patrimônio histórico-documental das câmaras do Brasil-colônia existente no acervo do Conselho Histórico Ultramarino.

Boa leitura!


[Os Arquivos das Casas editoriais (documentos e livros) como fontes para a História]. Revista de Fontes. Guarulhos, v.2, n.3, 2015. Acessar publicação original [DR]

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Livros e leituras / Mnemosine Revista / 2015

Livros, leitura e múltiplas interpretações

“A maior parte do tempo de um escritor é passado na leitura, para depois escrever; uma pessoa revira metade de uma biblioteca para fazer um só livro.” Samuel Johnson

As palavras do escritor e pensador inglês Samuel Johnson (17091784) permite-nos conjecturar sobre a complexidade existente para se elaborar um texto: de início, a escolha de um assunto e sua consequente pesquisa; depois, a seleção de textos que possibilitem o estudo do conteúdo a ser pesquisado, que pode ser realizada em bibliotecas. A seguir, vem à leitura dos textos selecionados e, por último, a redação.

Hoje, no primeiro semestre de 2015, passados aproximadamente duzentos de cinquenta anos das palavras escritas por Samuel Johnson, e graças aos avanços tecnológicos, o acesso aos textos tornou-se facilitado, muito em decorrência da informática. Para muitos, com o advento e a proliferação da internet, a mudança de suporte, a tela e o teclado – que pode ser do computador, de telefones móveis ou dispositivos portáteis – substituindo o papel e a tinta, aumentou a eficácia no armazenamento, na manipulação e na maneira de comunicação e acesso aos textos anteriormente restritos apenas aos ambientes físicos de bibliotecas localizadas nos grandes centros (que podem estar perto ou longe do leitor) ou nos rincões mais afastados do planeta.

Na internet, as bibliotecas virtuais e os grandes repositórios de textos e livros permitem ao pesquisar o acesso a uma infindável quantidade de informações que, anteriormente, não se tinha. A cada ano, a quantidade de publicações e o aparecimento de periódicos científicos online aumentam substancialmente, ao ponto de não sabermos, ao certo, por exemplo, o número de revistas científicas existentes. As estimativas variam muito: a página do SciELO permite o acesso a mais de mil periódicos científicos em textos completos. O Portal de Periódicos CAPES dá acesso a mais de 35 mil revistas científicas.

Apesar de todas as facilidades no acesso aos textos e a dinâmica interativa da leitura e da escrita propiciada pelo computador, muitas pessoas ainda são reféns do folhear o papel físico e do sentir o cheiro de um bom livro “velho”. Outros aderiram ao texto digital, por propiciar leitura interativa e coletiva, em virtude das várias janelas hipertextuais multissequenciais que se podem abrir a todo o instante, fazendo com que a unidade de leitura se encaminhe rumo a novas e inesperadas conexões entre textos.

Ao lado dessas duas maneiras de acesso aos textos – impressos ou digitais – existem os leitores e pesquisadores que imprimem os textos online para lê-los no papel. Seja qual for a sua predileção, os textos do dossiê que vocês – leitores da revista Mnemosine – terão acesso, a seguir, foram escritos por leitores-intérpretes que compareceram a bibliotecas no desafio de escrever, após revirar os seus acervos na busca de respostas a suas inquietações e indagações de pesquisa.

Os onze artigos que constituem o presente dossiê analisam, a sua maneira, diversificadas práticas culturais e políticas transmitidas por agentes que intervieram nos episódios e processos históricos que participaram, possibilitando-nos conhecer, após as investigações de seus autores, as representações de mundo, os conceitos, as linguagens, as conjunturas históricas e as suas mais diversas formas culturais e políticas, registradas em uma determinada historicidade.

Guiando-se pela lógica de que a produção textual está imersa em circunstâncias, incidentes e intencionalidades do autor, operadas, por exemplo, para ensinar e desenvolver um espírito de universalidade, o dossiê se abre com o artigo de Rubens Leonardo Panegassi (Universidade Federal de Viçosa, UFV), que contextualiza a produção do humanista português João de Barros e o seu posicionamento político frente ao contexto histórico existente no reinado de dom João III.

Ainda com ambientação em Portugal, Adriana Angelita da Conceição (Pós-Doutoranda em História pela Universidade Estadual de Campinas, UNICAMP) apresenta-nos a obra “O governador de praças”, de Antonio de Ville Tolozano, que serviu às discussões políticas travadas pelo vice-rei marquês do Lavradio durante seu governo no Brasil.

A fundação da Biblioteca Pública de Lisboa, em 1796, ocorrida durante a regência de dom João, serviu de mote para Juliana Gesuelli Meirelles (Pontifícia Universidade Católica de Campinas, PUCCAMPINAS) apresentar o bibliotecário régio Antonio Ribeiro dos Santos e discutir a circulação de livros particulares naquele período.

A seguir, Francisco Topa (Universidade do Porto, em Portugal) comenta a obra literária de João Mendes da Silva e descortina as suas indicações de leitura no contexto do Rio de Janeiro de finais do século XVII.

Encaminhando-nos rumo à América hispânica, chegamos a Clementina Battcock (Universidad Autónoma Nacional de México, UNAM) e Sergio Botta (Sapienza Università di Roma, Itália) que lançam luz sobre a guerra entre incas e chancas representada na obra “Historia del nuevo mundo” (1653), do cronista Bernabé Cobo.

Já Patricia Escandón (pesquisadora do Centro de Investigaciones sobre América Latina y el Caribe, CIALC, da Universidad Nacional Autónoma de México, UNAM) apresentanos a obra “Historia general del Perú”, do frei Martín de Múria.

Utilizando-se dos fotolivros “Au Mexique” e “Brésil”, de Pierre Verger, Carlos Alberto Sampaio Barbosa (Universidade Estadual Paulista, UNESP, câmpus de Assis) discute a importância dos fotolivros na construção de uma cultura visual latino-americana e como Verger ajudou a elaborar uma identidade visual naqueles dois países na primeira metade do século XX.

Por intermédio das análises de Neuzimar Campos e Silva (Frade da Ordem Franciscana) e Neimar Machado de Sousa (Universidade Federal da Grande Dourados, UFGD) chegamos ao filósofo argentino Enrique Dussel, considerado um dos mais destacados expoentes da Filosofia da Libertação e do pensamento latino-americano.

O romance “Um rio imita o Reno” serve de inspiração para Rodrigo Luis dos Santos (Mestrando em História pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos, UNISINOS) comentar a construção realizada por Clodomir Vianna Moog sobre o imigrante e descendente não vinculado de forma opcional à sociedade brasileira nas décadas de 1930 e 1940.

Roger Domenech Colacios (Universidade Estadual de Londrina, UEL, e Pós- Doutorando em História na Universidade Estadual Paulista, UNESP, câmpus de Assis) analisa as alterações realizadas pelo filósofo das ciências Bruno Latour em sua obra “Vida de laboratório: a construção dos fatos científicos”, escrita em coautoria com o sociólogo britânico Steve Woolgar, referente às edições francesa e brasileira, publicadas em 1988 e 1997, respectivamente, permitindo-nos pensar se as alterações realizadas em um texto impresso são apenas transformações dentro de uma obra ou se são transformações de um autor.

Assim, como autores e leitores que somos, cabe-nos praticar múltiplas interpretações dos impressos e textos eletrônicos que nos aparecem a cada dia.

Boa leitura!

André Figueiredo Rodrigues – Professor do Departamento de História da Faculdade de Ciências e Letras, da Universidade Estadual Paulista (UNESP), câmpus de Assis.


RODRIGUES, André Figueiredo. Apresentação. Mnemosine Revista. Campina Grande, v.6, n.1, jan. / mar., 2015. Acessar publicação original [DR]

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Livros, Leitura, Poder e Cultura / Revista Maracanan / 2014

Lire um texte? Quoi de plus facile en apparence. Quoi de plus délicat, pour peu qu’on s’interroge non seulement sur les conditions d’élaboration, de destination, de diffusion des imprimés […] mais sur notre comportement personnel, daté, conditionné par une culture, heritée et acquise, de lecteur.

Denis Richet [1]

Há alguns anos, debruçar-se sobre a história do livro e da leitura representa mais do que um simples inventário do que se lia ou do que se produzia em dada sociedade em certo momento histórico. Os estudos produzidos pela historiografia francesa, como pela anglo-saxã e a ibérica abriram inúmeras vias de pesquisa, possibilitando que a análise dos impressos e da leitura signifique, sobretudo, um meio de buscar opções diversificadas da pesquisa histórica para abordar práticas culturais e políticas. Embora informações também se veiculem por meio da oralidade, o trabalho com textos permite identificar o sentido das mensagens transmitidas pela palavra escrita, ainda quando em ambiente de cultura letrada rarefeita, como aquele das sociedades do Antigo Regime.

Dessa maneira, os impressos transformaram-se em meio privilegiado “de diálogo com o passado, de criação e de inovação”.[2] Sob esse prisma, como afirmaram Darnton e Roche [3], o livro (ou qualquer texto impresso) não deve ser visto apenas como memória de um tempo, que narra as diferentes percepções de um mesmo fato; ou como simples ingrediente do fato; mas, sim, enquanto agente que intervém nos processos e episódios. Poderosos elementos de continuidade, os livros também podem ser importantes vetores de rupturas na tradição. Afinal, os livros, textos e suas representações investem-se de múltiplas missões: a de educar, de formar, de criar tanto um espírito de universalidade, quanto de edificar as nações particulares, especialmente ao longo do século XIX. [4] No Brasil, o oitocentos constituiu-se no período em que o discurso escrito anunciou a conquista de sua autonomia, numa sociedade ainda profundamente dominada pela oralidade, com o vislumbre do nascimento de uma opinião pública, no sentido moderno do termo [5].

Não se quer dizer, no entanto, que os textos impressos, por si só, sejam capazes de fazer revoluções.[6] Ainda que não se confira tal poder aos textos, pois estes podem ser apreendidos de modos distintos por indivíduos diferentes, é possível afirmar, contudo, que são os textos escritos, em seus conceitos e linguagens, que abrem espaço à criação de novas culturas políticas. Portanto, os impressos registram igualmente uma historicidade.

Por outro lado, ao debruçar-se sobre a história dos livros, dos textos e da cultura escrita, diversos momentos mostram-se fundamentais: o Antigo Regime, o longo século XIX e o tempo contemporâneo. Na primeira temporalidade, encontram-se as novidades em relação às práticas de leitura, à constituição do esboço de uma voz geral, mas também as resistências em relação a tais propostas por meio do papel repressivo da Inquisição e da censura. Além disso, naquela época, os que detinham o privilégio do saber e da escrita, embora ainda dependessem do Estado para a sobrevivência, encontravam nesse trunfo um instrumento de poder. Na segunda temporalidade, o impresso se integra ao tecido cultural e político da sociedade, com as palavras vendo-se revestidas, por esse modo, de conotações particulares e diversas. Ou seja, ao transcender seu contexto originário, uma idéia projeta-se no tempo sob a forma de um novo conceito, que transforma os discursos contemporâneos em práticas novas, capazes de revelar as diversas identidades políticas e sociais presentes naquela conjuntura histórica. Por fim, no tempo contemporâneo, além de transmitirem mensagens a um público mais amplo, em função do grau maior ou menor de alfabetização, os textos demonstram tanto a formação de um campo intelectual autônomo, na pespecriva de Bourdieu [7], quanto pressupõem que a palavra escrita se tenha convertido em objeto privilegiado de uma luta político-ideológica que se configurou no oitocentos. Tais temporalidades acham-se presentes nessa coletânea, cujo foco dirige-se não só para o Brasil, mas também para a França, Portugal e Espanha.

Nessa perspectiva, o conjunto de artigos reunidos neste dossiê pretende contribuir, sob a forma de debate intelectual, para essa análise da função assumida pelo livro, pelo impresso e pelo manuscrito na transmissão da cultura; na formação da opinião pública e das culturas políticas; em seu papel como instrumento do poder, em especial nas monarquias; no processo de constituição dos intelectuais; e, mesmo, em outras formas de que o escrito pode revestir-se, como o de caricaturas ou partituras musicais, evidências igualmente de acervo cultural comum a uma população.

Os sete artigos integrantes do dossiê foram redigidos tanto por nomes emblemáticos nessa linha de estudos, como por jovens pesquisadores, possibilitando um encontro de gerações. Sem seguirem um fio condutor único, os artigos apresentam grande variedade de abordagens e de questões, que transparecem dos próprios títulos. De um lado, a formação de bibliotecas, o ato de traduzir e publicar textos enquanto práticas e estratégias do poder monárquico, a censura e a Inquisição, que adquiriram outra dimensão após a invenção da imprensa, com seu papel multiplicador. De outro, a historicidade do literário na ótica específica de José de Alencar, o estudo da “arte menor” do caricaturista, transformada em elemento primordial de uma imprensa militante na Modernidade, o uso das partituras musicais consideradas como meio para valorizar a mestiçagem no Brasil enquanto patrimônio cultural, e as disputas intelectuais de meados do século XX no Brasil, refletindo o processo de reconfiguração de seu campo intelectual. Cabe ainda ressaltar que, embora não faça parte intrínseca do dossiê, soma-se uma resenha com temática a ele vinculada, sobre o mais recente livro de Robert Darnton traduzido para o português.[8]

São, portanto, narrativas distintas, mas que, ao ultrapassar uma abordagem unívoca, se conjugam para formar uma teia entrelaçada, capaz de lançar redes de significados sobre o passado, a fim de oferecer ao leitor, como sempre acontece, elementos com que (re)construir a sua própria interpretação do mundo.[9]

Notas

  1. Préface. In: JOUHAUD, Christian. Mazarinades: la Fronde des mots. Paris: Aubier, 1985, p. 12.
  2. BARATIN, Marc & JACOB, Christian. O poder das bibliotecas. A memória dos livros no Ocidente. [Trad.]. Rio de Janeiro: Ed. da UFRJ, 2000, p. 11.
  3. DARNTON, Robert & ROCHE, Daniel (orgs.). Revolução impressa. A Imprensa na França, 1775-1800. [Trad.]. São Paulo: EDUSP, 1996.
  4. RIBEIRO, Maria Manuela Tavares. “Livros e leituras no século XIX”. Revista de História das idéias. Coimbra, 20: 187- 228, 1999, p. 187
  5. BAKER, Keith. M. Au tribunal de l’opinion. Essais sur l’imaginaire politique au XVIIIe siècle. Paris: Payot, 1993; FARGE, Arlette. Dire et mal dire. L’opinion publique au XVIIIe siècle. Paris: Seuil, 1992.
  6. Ver CHARTIER, Roger. Les origines culturelles de la Révolution française. Paris: Seuil, 1990 e BARBIER, Fréderic. História do livro. [Trad.]. São Paulo: Paulistana, 2008.
  7. BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. [Trad.]. São Paulo: Perspectiva, 1974, pp. 183-202.
  8. DARNTON, Robert. Poesia e polícia: redes de comunicação na Paris do século XVIII. [Trad.]. São Paulo, Companhia das Letras, 2014
  9. O Laboratório Redes de Poder e Relações Culturais foi criado a partir do grupo de pesquisa do CNPq (1997) intitulado “Ideias, Cultura e Política na Formação da Nacionalidade Brasileira”, e está integrado ao Programa de Pós-graduação em História da UERJ. Foi chancelado em dezembro de 2006 como núcleo de excelência no âmbito do programa Pronex FAPERJ / CNPq. Desde então, passou a reunir professores de outras instituições, próximos seja pela temática, seja pela abordagem e foi responsável pela organização desse dossiê, que contou com a ajuda de Tania Bessone e Lúcia Guimarães, suas integrantes, às quais cabe aqui um agradecimento especial.

Lucia Maria Bastos Pereira das Neves


NEVES, Lucia Maria Bastos Pereira das. Apresentação. Revista Maracanan, Rio de Janeiro, v.10, n.10, 2014. Acessar publicação original [DR]

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Entre livros e cartas e entre a escrita e a leitura: uma história das palavras / História Revista / 2010

Rizoma, platôs, criação órfã. Técnicas do corpo, leitura em voz alta, leitura silenciosa. Letramento, escrita, oralidade. A literatura e a memória de uma boneca de pano. A Arte e as correspondências. Epistolografia, amizade e estoicismo. Retórica, soberania e escrita. As cartas e a história intelectual. Leitura e multiplicidade. Devir-leitor e devir-escritor. O hipertexto e a textualidade eletrônica. O corpo, as práticas de escrita e as práticas de penitência. O Estado, a escolarização e o acesso às letras. Monteiro Lobato, a literatura infantil e o leitor. Robinson Crusoé e Sexta-Feira. Sêneca e a filosofia antiga. O gênero epistolar e as práticas de escrita. As correspondências e a história das edições. A ciência e a epistolografia. Memória e corpo. Roma, México e Taubaté. Leitura e apropriação cultural.

Eis alguns dos temas tratados neste dossiê que apresenta um conjunto de ensaios e artigos sobre livros e cartas e sobre a escrita e a leitura. Em nossa atualidade, há um vivo interesse intelectual por esses temas. Este interesse pode ser visto de inúmeras maneiras. Há, por exemplo, aquilo que poderíamos denominar de perspectiva do luto. Assim, a relevância dos estudos sobre a troca de correspondências e sobre o epistolário de escritores, artistas e políticos seria um sintoma ou teria apenas se tornado possível pelo falecimento desta prática. Quer dizer, a sua importância no interior das ciências humanas decorre de sua atual insignificância social e cultural.

A perspectiva aqui assumida é outra. O que se anuncia há alguns anos como revolução digital se liga a uma profunda transformação nas práticas de escrita e de leitura e de objetos tradicionais como os livros e as correspondências. A emergência da escrita digital e da textualidade eletrônica reconfigura de modo radical práticas afetivas e intelectuais; transforma radicalmente objetos tradicionais. É justamente na novidade irredutível produzida por este acontecimento em que se inscreve o objetivo deste dossiê. Os textos aqui reunidos são suscitados por esta atualidade; ligam-se, de alguma forma, a este desejo de atualidade.

Três grandes eixos estruturam este dossiê. De um lado, um conjunto de reflexões sobre a história da leitura, das relações entre corpo e leitura (adestramento e letramento) e a atualidade dos modos de ler. De outro, análises consistentes sobre as relações entre literatura e leitura (apropriações). Finalmente, estudos sobre correspondências a meio caminho entre as práticas de escrita e as práticas de leitura. Estes três grandes eixos estão atravessados por um interesse ou por uma preocupação de seus autores: aquela de uma história das palavras e de sua errante circulação.

Fechando a organização deste volume, publicamos duas resenhas críticas a propósito dos dois últimos cursos de Michel Foucault no Collège de France, os de 1983 e 1984, ainda inéditos em português. A primeira, escrita por Celso Kraemer e a segunda, por Céline Clément. Isto mostra que a História Revista segue preocupada em trazer aos seus leitores análises de importantes e recentes publicações que a conectem com o que vem sendo editado de mais novo no mundo internacional das ciências humanas.

Marlon Salomon

Organizador do Dossiê

Comissão Editorial

Maria da Conceição Silva

Armênia Maria de Sousa

David Maciel

Luciane Munhoz de Omena

Heloisa Selma Fernandes Capel

Adriana Vidotte


SALOMON, Marlon; et al. Apresentação. História Revista. Goiânia, v. 15, n. 1, jan. / jun., 2010. Acessar publicação original [DR]

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