Monarquia sem despotismo e liberdade sem anarquia: o pensamento político do Marquês de Caravelas (1821-1836) | C. E. C. Lynch

Seria possível conciliar um Estado forte e centralizado ao ideário liberal moderno na prática política oitocentista brasileira? A leitura de Monarquia sem despotismo e liberdade sem anarquia: o pensamento do Marquês de Caravelas nos revela que sim. Defensor tanto da soberania do rei quanto do constitucionalismo moderno, José Joaquim Carneiro de Campos – o marquês de Caravelas – foi personagem fundamental, de acordo com Christian Lynch, no processo de recepção e aclimatação do discurso liberal durante o estabelecimento do Estado de direitos no Brasil.

Prevalecente na Constituição de 1824, o projeto monárquico e estatizante dos coimbrãos contou com a participação ativa de José Joaquim Carneiro de Campos. Segundo Lynch, Caravelas foi responsável por aperfeiçoar o projeto constitucional dos Andradas, caracterizado pelo bicameralismo, por uma rigorosa centralização política-administrativa e pelo veto quase absoluto do Imperador. Sua principal contribuição foi a criação do Poder Moderador e a institucionalização de alguma descentralização político-administrativa a partir da criação dos conselhos gerais de províncias. Para ele, esse arranjo seria o ideal pois garantia “uma monarquia sem despotismo e uma liberdade sem anarquia”, expressão definidora do seu pensamento político (p. 53).

Lynch relacionou a teoria das formas de governo de Caravelas com a tradição clássica aristotélica. Segundo esta, as formas de governos existentes – monarquia, aristocracia e a democracia – eram instáveis e oscilavam constantemente entre bons e maus governos, a monarquia corrompida se degeneraria em tirania, a aristocracia em oligarquia e a democracia em demagogia. No entanto, havia uma maneira de evitar a corrupção e estabilizar esses governos: uma composição mista entre monarquia, aristocracia e democracia. Assim como Aristóteles, Carneiro Campos considerava que a melhor maneira de tornar as instituições políticas brasileiras duráveis seria por meio de um governo misto. Em sua opinião, a forma moderna que permitia o equilíbrio entre os elementos governamentais seria a monarquia constitucional representativa temperada ou limitada. Se o fundamento conceitual de Caravelas estava em Aristóteles, sua sociologia política se apoiava em Montesquieu. Isso porque sua principal preocupação, como mostrou o autor, era conciliar o governo constitucional representativo – necessidade dos tempos modernos – com a preservação da ordem e das hierarquias coloniais por meio da criação de uma legislação que respeitasse as tradições e os costumes do povo brasileiro.

O estudo sobre o pensamento político de homens como Caravelas faz parte de um longo debate historiográfico a respeito do lugar do liberalismo no processo de formação do Brasil independente. Debate longo, mas necessário, foi iniciado por obras clássicas – como a de Roberto Schwarz – que defenderam que as ideias estavam fora do lugar. De lá para cá, muito se avançou no tema. Surgiram diversos trabalhos que discutiram, de perspectivas diferentes, a formação do Brasil independente mostrando que as ideias estavam sim no lugar, a exemplo de Maria Sylvia de Carvalho, Alfredo Bosi, Lúcia Maria B. Pereira das Neves, Maria Emilia Prado, Antonio Carlos Peixoto, entre outros.

A análise instigante empreendida por Lynch nos evidenciou que, embora antigo, este debate está longe de ser esgotado. Interessado na história constitucional brasileira – graças à graduação e ao mestrado na área do Direito – bem como no seu desenvolvimento pela perspectiva daquilo que o historiador alemão Reinhart Koselleck chamou de Sattelzeit, Lynch redimensionou o lugar do conservadorismo no Brasil oitocentista por meio do resgate desse importante personagem político da independência brasileira do limbo em que se encontrava.

Nesse sentido, suas reflexões sobre a composição de um campo conservador no Brasil e sobre as construções historiográficas a esse respeito garantem uma análise provocante do processo de formação das instituições políticas brasileiras. Segundo Lynch, o marquês de Caravelas, ao sustentar um projeto liberal que conciliava a implantação de um governo constitucional representativo com a garantia de um Estado monárquico forte, seria o primeiro de uma linhagem de juristas constitucionais, na qual se entronca o visconde de Uruguai, a defender a construção e o fortalecimento do Estado como instância incubadora adequada da Nação.

Embora a obra escrita por Lynch tenha José Carneiro de Campos como objeto de pesquisa, nunca foi preocupação do autor a descrição e o acompanhamento de seus feitos como fazem diversos trabalhos biográficos. Na realidade, todo seu empenho se concentrou na reconstituição do pensamento teórico e sociológico do marquês de Caravelas e sua aplicação prática ao longo dos seus trabalhos enquanto deputado e relator do projeto constitucional de 1824. Tendo em vista esse objetivo, Lynch estruturou seu livro em duas partes: a primeira destinada a um estudo do pensamento político-constitucional do marquês de Caravelas – dividida ainda em cinco capítulos – e uma segunda reservada para a compilação de seus discursos parlamentares mais importantes, fontes que serviram de base para sua pesquisa.

Os discursos parlamentares do marquês de Caravelas foram analisados com base em duas frentes metodológicas: o contextualismo linguístico de John Pocock e a história dos conceitos de Koselleck. Na primeira frente, estes discursos foram entendidos como “atos de fala” elaborados durante a disputa política visando um espaço de atuação e de poder. Na segunda frente, o autor carioca identificou os conceitos presentes nesses discursos examinando os novos significados assumidos por eles de acordo com as circunstâncias, as necessidades e as contingências do Brasil recém-independente.

É em seu primeiro capítulo – “Os desafios da política constitucional oitocentista na Europa e na América ibérica” – que Lynch conseguiu brilhantemente conciliar essas duas frentes metodológicas, procedendo a uma bela análise relacional de texto e contexto. Infelizmente, nos outros capítulos, principalmente os três últimos, nos quais há uma reflexão sobre os elementos constitutivos do pensamento de Caravelas, a análise se concentrou apenas no texto e nos conceitos presentes nele. Apesar disso, suas reflexões sobre o enquadramento ideológico de Carneiro de Campos presentes no primeiro capítulo e as razões historiográficas responsáveis por seu esquecimento, apresentadas no segundo, são de grande relevância para os pesquisadores na área da história política brasileira.

Se a maioria dos trabalhos historiográficos explicam o processo de construção do nosso Estado a partir do liberalismo moderno, Lynch o faz baseado no conservadorismo. Ele defendeu a conservação como elo indispensável tanto para compreensão do pensamento de Caravelas quanto para o entendimento do desenvolvimento das instituições políticas brasileiras das quais ele fez parte. Ao fazer isso, o autor acabou redimensionando o sentido e o papel desempenhado pelo conservadorismo na América Ibérica.

Até hoje relacionamos o conservadorismo a posicionamentos tradicionais e, portanto, contrários a mudanças. De acordo com Lynch, isso acontece devido a conotação negativa que este conceito possuí no Brasil graças ao legado da tradição marxista de intelectuais do século XX, a exemplo de Caio Prado Jr. e Nelson Werneck Sodré, que relacionaram o conservadorismo a uma visão hierárquica de mundo, defensora de privilégios, contrária à democratização e ao reconhecimento das minorias. Inclusive, o autor associou também o esquecimento historiográfico de Carneiro de Campos, bem como sua associação apressada ao absolutismo, a essa visão negativa dos conservadores.

Depois de realizar uma síntese das principais correntes conservadoras – passando por Hume, Burke e Guizot – Lynch afirmou que elas eram equivalentes no Brasil às reflexões dos conselheiros de Estado de D. Pedro I que, baseados no modelo monarquiano do barão Malouet e de Jean Joseph Mounier, defenderam um projeto de governo constitucional e representativo no qual o rei, não a Assembleia, seria o representante da soberania nacional. A implantação desse sistema permitiu a conciliação entre o ideal modernizador ordeiro do despotismo esclarecido com o estabelecimento de um governo constitucional. Por isso, Lynch afirmou que o conservadorismo é uma espécie de liberalismo de direita, de caráter reformista e antirrevolucionário. Nesse sentido, ao invés de se apresentar em oposição total aos liberais, os conservadores teriam uma postura realista da modernidade, aceitando a inevitabilidade do progresso, embora tentassem guiá-lo de forma prudente e gradual, os adequando a cultura histórica de cada sociedade na tentativa de preservar o tecido social e evitar as rupturas revolucionárias.

No entanto, ao longo de todo o processo de independência, do primeiro reinado e dos anos iniciais das regências, o discurso daqueles que orbitavam em torno de D. Pedro I, a exemplo de Caravelas, foram associados ao absolutismo e ao autoritarismo por seus adversários políticos que desejavam um espaço de atuação e de participação no Estado brasileiro.

Somente com os saquaremas, na segunda metade do século XIX, o termo conservador passa a ser empregado na caracterização de um grupo político, apesar de seus projetos existirem desde a época da independência. De acordo com Lynch, diferentemente do Partido Liberal, que reivindicou o grupo brasiliense como primeiro embrião de seu partido, o mesmo não aconteceu com os conservadores, que preferiram venerar a memória de Bernardo Pereira de Vasconcelos e o Regresso como verdadeiro fundador do partido durante as regências. Logo, a imagem de homens como Caravelas sofreu um desgaste duplo. Ao mesmo tempo em que eram desqualificados pela historiografia luzia que os retratava como absolutistas, não tiveram sua imagem resgatada pela historiografia saquarema e ficaram sem uma posteridade política que os reivindicasse positivamente.

Mais uma vez vemos a influência do historiador inglês J. G. A. Pocock em Monarquia sem despotismo e Liberdade sem anarquia. Baseado em suas ideias, o autor buscou compreender a história como choques de discursos antagônicos. Durante muito tempo, a historiografia brasileira vem comprando a versão de autores saquaremas que localizaram o surgimento do conservadorismo no Brasil no movimento regressista. É importante entender que os saquaremas não queriam ter sua imagem pública associada ao grupo “coimbrão” devido a sua fama negativa ligada ao absolutismo.

Ao longo do livro, Cristian Lynch conseguiu demonstrar que o pensamento político de José Carneiro de Campos não tinha nada de absolutista. Muito pelo contrário, partilhava semelhanças com as doutrinas conservadoras do tempo. Isso implica reconhecer, a despeito das afirmações historiográficas, que o conservadorismo aos moldes regressistas e saquaremas existiam de alguma forma no Brasil muito antes do período regencial, sendo esta ao meu ver a principal contribuição da obra. O resgate do marquês de Caravelas do limbo do esquecimento e sua inserção num campo conservador em formação durante todo o processo de construção do Estado brasileiro nos ajuda a redimensionar a própria concepção do conservadorismo na constituição do Brasil independente.

Referência

Lynch, C. E. C. Monarquia sem despotismo e liberdade sem anarquia: o pensamento político do Marquês de Caravelas (1821-1836). Belo Horizonte: Editora UFMG, 2014.

Luaia da Silva Rodrigues – Doutoranda em história pela UFF. E-mail: [email protected]


LYNCH, C. E. C. Monarquia sem despotismo e liberdade sem anarquia: o pensamento político do Marquês de Caravelas (1821-1836). Belo Horizonte: Editora UFMG, 2014. Resenha de: RODRIGUES, Luaia da Silva. O pensamento conservador do marquês de Caravelas e a construção do Estado Brasileiro. Almanack, Guarulhos, n.18, p. 496-501, jan./abr., 2018. Acessar publicação original [DR]