Fazendo e desfazendo direitos humanos – RUBIO (FU)

RUBIO, D.S. Fazendo e desfazendo direitos humanos. Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2010. Resenha de: JÚNIOR, Roberto Galvão Faleiros. Filosofia Unisinos, São Leopoldo, v.14, n.1, p.100-104, jan./abr., 2013.

Correntemente, os direitos humanos são compreendidos e, consequentemente, instrumentalizados, dentro de uma perspectiva universalizante, de forma hierárquica, de matriz jurídico-estatal, formalista e pós-violatória, gerando uma cultura anestesiada, reproduzindo práticas e anseios simplificados das relações humanas.

Os paradigmas hegemônicos do direito acabam respaldando a manutenção e a difusão desses aspectos tradicionais, engendrando percepções insuficientes sobre os múltiplos fenômenos jurídicos.

No entanto, de maneira oposta, David Sánchez Rubio, professor titular de Filosofia do Direito da Universidade de Sevilha, estrutura sua produção acadêmica e desenvolvimento teórico através de “[…] uma concepção muito mais complexa, racional, sócio-histórica e holística, que priorize as próprias práticas humanas, que são as que realmente fazem e desfazem, constroem e desconstroem os direitos humanos […]” (p. 12-13).

O viés crítico, sócio-histórico, relaciona-se com as obras de diversos autores, principalmente os da proclamada filosofia da libertação. Há uma nítida inspiração, dentre outros, em Joaquin Herrera Flores, Franz Hinkelammert e, especialmente, em Helio Gallardo.

Dentro dessa compreensão, insere-se a obra “Fazendo e desfazendo direitos humanos”, traduzida pelo professor Clovis Gorczevski, da Universidade de Santa Cruz do Sul, editada pela EDUNISC, e que conta com a apresentação aprofundada do professor Antonio Carlos Wolkmer da Universidade de Santa Catarina.

Wolkmer, aliás, é um dos privilegiados interlocutores de David Sánchez Rubio, tendo, também, uma importante parcela de influência na solidificação do pensamento do autor e de sua aproximação com a realidade brasileira e com o pluralismo jurídico.

Ao longo do livro, o autor sevilhano traz diversos elementos para a percepção e a edificação de uma “[…] noção sinestésica dos direitos humanos, que nos extraia da anestesia […]” (p. 18). Abordando de maneira extremamente crítica o entendimento tradicional, denuncia o abismo consolidado entre o que se diz e o que se faz sobre os direitos humanos.

A obra reúne diversos trabalhos que, modificados e ampliados, foram reunidos e publicados conjuntamente. Embora divididos em quatro capítulos com temáticas distintas, os artigos mantêm uma profunda identidade teórica, proximidades em suas fundamentações e, sobretudo, complementaridade em suas colocações e anseios propositivos.

A identidade teórica e a proximidade de fundamentos são didaticamente expostas logo na introdução. O autor ressalta que vivemos em uma cultura inexistente de direitos humanos, propalando, infelizmente, uma perspectiva estreita e reduzida, o que força a estruturação da dicotomia entre o que é discursivamente exposto e o que é realizado concretamente. Essa concepção arcaica vincula quase que cegamente os direitos humanos à emanação das normas jurídicas estatais e às declarações e aos tratados internacionais.

Procurando contrapor esse torpor, o autor recorre às formulações do cientista político Helio Gallardo (p. 8 e 13), que visualiza, ao menos, cinco elementos nos direitos humanos: a luta social; a reflexão filosófica ou a dimensão teórica e doutrinal; o reconhecimento jurídico positivo e institucional; a eficácia e a efetividade jurídica; a sensibilidade sociocultural.

Assim, a partir das contribuições de Gallardo, sustenta as análises expostas através dos artigos/capítulos, o que lhe permite mapear e denunciar que, comumente, os direitos humanos são entendidos pelo que disseram filósofos e cientistas políticos. Adverte que há uma absolutização da vinculação dos direitos humanos com instituições e com normas, ocorrendo, por conseguinte, um superdimensionamento da dimensão pós-violatória (recorrência constante a demandas processuais e institucionais) o que explica, em certa medida, a baixa taxa eficacial dos direitos assegurados em leis e tratados.

No entanto, procura deixar pontuado claramente em todos os capítulos do livro que “[…] os direitos humanos possuem como referente básico a vocação de autonomia dos sujeitos sociais como matriz de autonomia dos indivíduos ou pessoas” (p. 16). Neste sentido, os seres humanos devem criar condições sociais e individuais para relegar as experiências dominadoras e edificar as experiências emancipatórias. Para tanto, devem priorizar os elementos (explicitados por Helio Gallardo) que são negligenciados costumeiramente: a luta e a ação social; a eficácia não jurídica; e a sensibilidade sociocultural, ou seja, as relações, práticas ou tramas sociais.

Com substrato nessa sólida fundamentação política e filosófica, no primeiro capítulo, intitulado “Sobre direitos humanos: imagens, espelhos, cegueiras e obscuridades”, pontua os aspectos meramente refletidos com que a sociedade e o direito situam as relações sociais. A questão meramente formal da concepção usual de direitos humanos, que, com substrato na democracia liberal, dificulta a incorporação de novos sujeitos e novas liberdades.

O reconhecimento dos direitos humanos de todos acaba ficando adstrito à “personalidade”, à “cidadania” e à “capacidade de trabalho”, definindo as classes que são titulares desses direitos. Nesse viés, os “[…] critérios que se estabeleçam para adjudicar aos indivíduos a categoria de ‘pessoa’, ‘cidadão’, ou ‘capaz de obrar’, lhes outorgam o reconhecimentos dos direitos fundamentais, refletidos em cada norma constitucional” (p. 29).

Dentro dessa peculiar análise é possível identificar sujeitos sociais ou classes, excluídos mesmo dentro desta promessa de incorporação democrática dos anseios de “todos”. Os direitos e as reivindicações, mesmo quando reconhecidos e normatizados, acabam sonegados em dimensão concreta, em sua finalidade específica.

O que fica ressaltado neste artigo é a necessária e permanente luta por espaços de abertura e consolidação de direitos, o que incorpora lugares para além do jurídico-estatal, já que, para o autor, “[…] os direitos humanos entendidos como prática social, como expressão axiológica, normativa e institucional, que em cada contexto abre e consolida espaços de luta por expressões múltiplas da dignidade humana, não se reduzem a um único momento histórico e a uma única dimensão jurídico-procedimental e formal” (p. 41).

Neste trabalho, o autor deixa clara a importância que os direitos humanos têm como processo de criação contínua de subjetividades, de espaços de luta e consolidação permanente de inúmeras tramas sociais.

O segundo capítulo, “Herança, recriações, cuidados, ambientes e espaços comuns e/ou locais para a humanidade, povos indígenas e direitos humanos”, é o único trabalho inédito do autor e desenvolve diversas problemáticas envolvendo o patrimônio comum da humanidade.

No entanto, em diversos momentos, explicita-se que o patrimônio comum deve ser compreendido como recreações, espaços, usos e entornos comuns. Assim, consegue direcionar e problematizar de forma contundente as questões que envolvem a titularidade, o dever de gerir e a proteção que esses espaços devem incorporar.

Nesse viés, salienta que a herança comum da humanidade deve receber proteção e tratamento internacional com dimensões globais, sendo utilizada, em todos os sentidos e dimensões, a favor da humanidade.

Para sustentar essas colocações, afirma que a herança, ou o patrimônio comum de povos e comunidades deve ser compreendido como: bens comuns da humanidade e bens comuns globais. Os primeiros são os espaços públicos, terras comuns, bosques e conhecimentos tradicionais que afetam grupos de pessoas que vivenciam realidades sociais, culturais ou étnicas comuns em dimensões mais regionalizadas, contextualizadas. De outra forma, entende por bens comuns globais a atmosfera, os oceanos, a lua, etc., tendo por destinatários não grupos restritos com vínculos entre si, mas sim um número indeterminado de pessoas, ou seja, todos os seres humanos.

Essas peculiaridades são possíveis a partir do momento que identifica as características das heranças comuns da humanidade: a inapropriabilidade, a necessária utilização por todos os povos, a participação internacional nos benefícios obtidos pela exploração dos recursos naturais comuns e a sua conservação para as futuras gerações (o que pode indicar uma comunidade universal).

De forma contundente, também, denuncia a mercantilização de diversas formas e expressões da vida. Atenta para os perigos oriundos desse processo, sobretudo pelo fato de estarmos imersos em um sistema capitalista destruidor e devastador, que, de todo modo, absorve e redesenha as mercadorias conforme suas necessidades, reproduzindo processos de colonização.

Na tentativa de apontar algumas soluções para essas disparidades, parte para realçar o papel primordial – que por vezes é sonegado – que as comunidades indígenas podem exercer.

O reconhecimento deve perpassar pelas heranças locais para beneficiar a totalidade da humanidade, refletindo um regime jurídico especial através da autodeterminação, do território, da cultura e do consentimento prévio.

Dentro dessa exemplificação, através das especificidades indígenas, é possível indicar três eixos que permitem afastar as heranças comuns do caráter patrimonialista: não devem ser comercializadas, devem passar pela delimitação coletiva da titularidade e da gestão e a vinculação com uma concepção sócio-histórica de direitos humanos.

Já no capítulo terceiro, “Paradoxos do universal, direitos humanos e pluriversalismo de confluência”, profundas e controversas questões são abordadas sobre a costumeira polêmica dicotomia entre a universalidade e o relativismo cultural nas questões envolvendo os direitos humanos. Sem resvalar nos argumentos popularizados, o autor sevilhano contribui lucidamente para revelar problemáticas encobertas e desconsideradas.

Ao analisar pormenorizadamente a linguagem hegemônica do universalismo, identifica três paradoxos: o discurso oficial é favorável ou desfavorável ao deslocamento de pessoas dependendo do interesse dos grupos que controlam o sistema capitalista; um propalado discurso de estrita universalidade; e a titularidade exclusivista da cultura ocidental em procurar definir os direitos humanos.

Essa situação peculiar desenvolve-se no denominado universalismo de confluência, pois absolutiza a expansão de uma ou algumas universalidades em detrimento de outras culturas ou possibilidades.

Aventa essa hipótese em razão dos anseios à eventual pré-disposição que os seres humanos teriam pela unidade, pela necessidade de atingir a verdade e universalizar seus desejos.

A relação entre universalismo e relativismo não pode ser enfrentada de maneira dualista, maniqueísta. É evidente que eventuais soluções ou respostas sairão de um enfrentamento relacional, de uma busca pelas complementaridades e discrepâncias.

Demonstrando outras contribuições teóricas, sustenta que devemos agenciar múltiplas culturas e inúmeros grupos humanos em “particularidades concretas tensionadas de universalidade” (p. 102), promovendo e tencionando diversas possibilidades de relacionar o concreto e o idealizado.

Essas nomeações indicam que não devemos realçar apenas uma pretensão de unidade, mas que diversas pretensões devem ser levadas em consideração, com suas diferenças e relações sociais.

Nesse sentido, explicita que estamos diante “[…] não de um ‘universalismo, mas sim de um pluriversalismo de confluência’ aberto a partir de suas distintas procedências, a um permanente diálogo e a um contínuo processo de construção sem imposições etnocêntricas e homogêneas” (p. 102).

No quarto e último capítulo, “Ciência-ficção e direitos humanos: tramas sociais e princípios de impossibilidade”, David Sánchez Rubio inova no desenvolvimento das reflexões sobre os direitos humanos ao trazer, de maneira inovadora, a ficção científica para contribuir na reflexão do tema.

Essa peculiaridade é iniciada tendo por base a questão da modernidade, dos paradigmas e seus pilares: regulação e emancipação, com sustentação nos estudos de Boaventura de Sousa Santos.

No pilar regulação, encontram-se os princípios do Estado, do mercado e da comunidade. Já no pilar emancipação, identifica-se a lógica estético-expressiva (arte e literatura), a cognitivo-instrumental (ciência e técnica) e a moral-prática (moral e direito).

Desse modo, “[…] a racionalidade estético-expressiva é a que mais tem conservado a dimensão emancipadora da modernidade” (p. 119), o que pode indicar a peculiar importância que a ficção científica pode assumir no pilar emancipação na modernidade, pois “[…] a partir da ciência-ficção também se dão elementos com os quais se pode vislumbrar outra ciência que intercomunique, dialogue, encontre a relacionalidade e a recursividade de todas as partes e facetas da realidade” (p. 120).

Aprofundando a questão, buscando unir os direitos humanos e a ficção científica, traz os elementos contidos nos princípios de impossibilidade e a consequente idealização da empiria, do concreto e o conceito de tramas sociais, as construções cotidianas dos diversos sujeitos sociais.

Esses conceitos permitem o questionamento da mentalidade ocidental que valoriza, demasiadamente, os ideais de abstração, idealização e fetichização. Assim, no processo de humanização, de defesa e promoção dos direitos humanos, podemos estar sujeitos tanto à consolidação dos direitos como, também, a sua desconfiguração.

De todo modo, através da lógica estético-expressiva, através da ficção científica, poderá promover e consolidar direitos humanos. Nesse sentido, o autor deixa claro que: “[…] o que queremos dizer é que o humano se constrói, se faz” (p. 140).

A relevância do livro é notória face às cotidianas e permanentes formas de abordar direitos humanos e, do mesmo modo, o fenômeno jurídico. A perspectiva assumida permite revelações e discussões de situações e vivências sonegadas nas reflexões filosóficas e jurídicas atuais.

Roberto Galvão Faleiros Júnior – Universidade Estadual Paulista – Campus de Franca. Franca, SP, Brasil. E-mail: [email protected]

Acessar publicação original

[DR]