Fazendo e desfazendo direitos humanos – RUBIO (FU)

RUBIO, D.S. Fazendo e desfazendo direitos humanos. Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2010. Resenha de: JÚNIOR, Roberto Galvão Faleiros. Filosofia Unisinos, São Leopoldo, v.14, n.1, p.100-104, jan./abr., 2013.

Correntemente, os direitos humanos são compreendidos e, consequentemente, instrumentalizados, dentro de uma perspectiva universalizante, de forma hierárquica, de matriz jurídico-estatal, formalista e pós-violatória, gerando uma cultura anestesiada, reproduzindo práticas e anseios simplificados das relações humanas.

Os paradigmas hegemônicos do direito acabam respaldando a manutenção e a difusão desses aspectos tradicionais, engendrando percepções insuficientes sobre os múltiplos fenômenos jurídicos.

No entanto, de maneira oposta, David Sánchez Rubio, professor titular de Filosofia do Direito da Universidade de Sevilha, estrutura sua produção acadêmica e desenvolvimento teórico através de “[…] uma concepção muito mais complexa, racional, sócio-histórica e holística, que priorize as próprias práticas humanas, que são as que realmente fazem e desfazem, constroem e desconstroem os direitos humanos […]” (p. 12-13).

O viés crítico, sócio-histórico, relaciona-se com as obras de diversos autores, principalmente os da proclamada filosofia da libertação. Há uma nítida inspiração, dentre outros, em Joaquin Herrera Flores, Franz Hinkelammert e, especialmente, em Helio Gallardo.

Dentro dessa compreensão, insere-se a obra “Fazendo e desfazendo direitos humanos”, traduzida pelo professor Clovis Gorczevski, da Universidade de Santa Cruz do Sul, editada pela EDUNISC, e que conta com a apresentação aprofundada do professor Antonio Carlos Wolkmer da Universidade de Santa Catarina.

Wolkmer, aliás, é um dos privilegiados interlocutores de David Sánchez Rubio, tendo, também, uma importante parcela de influência na solidificação do pensamento do autor e de sua aproximação com a realidade brasileira e com o pluralismo jurídico.

Ao longo do livro, o autor sevilhano traz diversos elementos para a percepção e a edificação de uma “[…] noção sinestésica dos direitos humanos, que nos extraia da anestesia […]” (p. 18). Abordando de maneira extremamente crítica o entendimento tradicional, denuncia o abismo consolidado entre o que se diz e o que se faz sobre os direitos humanos.

A obra reúne diversos trabalhos que, modificados e ampliados, foram reunidos e publicados conjuntamente. Embora divididos em quatro capítulos com temáticas distintas, os artigos mantêm uma profunda identidade teórica, proximidades em suas fundamentações e, sobretudo, complementaridade em suas colocações e anseios propositivos.

A identidade teórica e a proximidade de fundamentos são didaticamente expostas logo na introdução. O autor ressalta que vivemos em uma cultura inexistente de direitos humanos, propalando, infelizmente, uma perspectiva estreita e reduzida, o que força a estruturação da dicotomia entre o que é discursivamente exposto e o que é realizado concretamente. Essa concepção arcaica vincula quase que cegamente os direitos humanos à emanação das normas jurídicas estatais e às declarações e aos tratados internacionais.

Procurando contrapor esse torpor, o autor recorre às formulações do cientista político Helio Gallardo (p. 8 e 13), que visualiza, ao menos, cinco elementos nos direitos humanos: a luta social; a reflexão filosófica ou a dimensão teórica e doutrinal; o reconhecimento jurídico positivo e institucional; a eficácia e a efetividade jurídica; a sensibilidade sociocultural.

Assim, a partir das contribuições de Gallardo, sustenta as análises expostas através dos artigos/capítulos, o que lhe permite mapear e denunciar que, comumente, os direitos humanos são entendidos pelo que disseram filósofos e cientistas políticos. Adverte que há uma absolutização da vinculação dos direitos humanos com instituições e com normas, ocorrendo, por conseguinte, um superdimensionamento da dimensão pós-violatória (recorrência constante a demandas processuais e institucionais) o que explica, em certa medida, a baixa taxa eficacial dos direitos assegurados em leis e tratados.

No entanto, procura deixar pontuado claramente em todos os capítulos do livro que “[…] os direitos humanos possuem como referente básico a vocação de autonomia dos sujeitos sociais como matriz de autonomia dos indivíduos ou pessoas” (p. 16). Neste sentido, os seres humanos devem criar condições sociais e individuais para relegar as experiências dominadoras e edificar as experiências emancipatórias. Para tanto, devem priorizar os elementos (explicitados por Helio Gallardo) que são negligenciados costumeiramente: a luta e a ação social; a eficácia não jurídica; e a sensibilidade sociocultural, ou seja, as relações, práticas ou tramas sociais.

Com substrato nessa sólida fundamentação política e filosófica, no primeiro capítulo, intitulado “Sobre direitos humanos: imagens, espelhos, cegueiras e obscuridades”, pontua os aspectos meramente refletidos com que a sociedade e o direito situam as relações sociais. A questão meramente formal da concepção usual de direitos humanos, que, com substrato na democracia liberal, dificulta a incorporação de novos sujeitos e novas liberdades.

O reconhecimento dos direitos humanos de todos acaba ficando adstrito à “personalidade”, à “cidadania” e à “capacidade de trabalho”, definindo as classes que são titulares desses direitos. Nesse viés, os “[…] critérios que se estabeleçam para adjudicar aos indivíduos a categoria de ‘pessoa’, ‘cidadão’, ou ‘capaz de obrar’, lhes outorgam o reconhecimentos dos direitos fundamentais, refletidos em cada norma constitucional” (p. 29).

Dentro dessa peculiar análise é possível identificar sujeitos sociais ou classes, excluídos mesmo dentro desta promessa de incorporação democrática dos anseios de “todos”. Os direitos e as reivindicações, mesmo quando reconhecidos e normatizados, acabam sonegados em dimensão concreta, em sua finalidade específica.

O que fica ressaltado neste artigo é a necessária e permanente luta por espaços de abertura e consolidação de direitos, o que incorpora lugares para além do jurídico-estatal, já que, para o autor, “[…] os direitos humanos entendidos como prática social, como expressão axiológica, normativa e institucional, que em cada contexto abre e consolida espaços de luta por expressões múltiplas da dignidade humana, não se reduzem a um único momento histórico e a uma única dimensão jurídico-procedimental e formal” (p. 41).

Neste trabalho, o autor deixa clara a importância que os direitos humanos têm como processo de criação contínua de subjetividades, de espaços de luta e consolidação permanente de inúmeras tramas sociais.

O segundo capítulo, “Herança, recriações, cuidados, ambientes e espaços comuns e/ou locais para a humanidade, povos indígenas e direitos humanos”, é o único trabalho inédito do autor e desenvolve diversas problemáticas envolvendo o patrimônio comum da humanidade.

No entanto, em diversos momentos, explicita-se que o patrimônio comum deve ser compreendido como recreações, espaços, usos e entornos comuns. Assim, consegue direcionar e problematizar de forma contundente as questões que envolvem a titularidade, o dever de gerir e a proteção que esses espaços devem incorporar.

Nesse viés, salienta que a herança comum da humanidade deve receber proteção e tratamento internacional com dimensões globais, sendo utilizada, em todos os sentidos e dimensões, a favor da humanidade.

Para sustentar essas colocações, afirma que a herança, ou o patrimônio comum de povos e comunidades deve ser compreendido como: bens comuns da humanidade e bens comuns globais. Os primeiros são os espaços públicos, terras comuns, bosques e conhecimentos tradicionais que afetam grupos de pessoas que vivenciam realidades sociais, culturais ou étnicas comuns em dimensões mais regionalizadas, contextualizadas. De outra forma, entende por bens comuns globais a atmosfera, os oceanos, a lua, etc., tendo por destinatários não grupos restritos com vínculos entre si, mas sim um número indeterminado de pessoas, ou seja, todos os seres humanos.

Essas peculiaridades são possíveis a partir do momento que identifica as características das heranças comuns da humanidade: a inapropriabilidade, a necessária utilização por todos os povos, a participação internacional nos benefícios obtidos pela exploração dos recursos naturais comuns e a sua conservação para as futuras gerações (o que pode indicar uma comunidade universal).

De forma contundente, também, denuncia a mercantilização de diversas formas e expressões da vida. Atenta para os perigos oriundos desse processo, sobretudo pelo fato de estarmos imersos em um sistema capitalista destruidor e devastador, que, de todo modo, absorve e redesenha as mercadorias conforme suas necessidades, reproduzindo processos de colonização.

Na tentativa de apontar algumas soluções para essas disparidades, parte para realçar o papel primordial – que por vezes é sonegado – que as comunidades indígenas podem exercer.

O reconhecimento deve perpassar pelas heranças locais para beneficiar a totalidade da humanidade, refletindo um regime jurídico especial através da autodeterminação, do território, da cultura e do consentimento prévio.

Dentro dessa exemplificação, através das especificidades indígenas, é possível indicar três eixos que permitem afastar as heranças comuns do caráter patrimonialista: não devem ser comercializadas, devem passar pela delimitação coletiva da titularidade e da gestão e a vinculação com uma concepção sócio-histórica de direitos humanos.

Já no capítulo terceiro, “Paradoxos do universal, direitos humanos e pluriversalismo de confluência”, profundas e controversas questões são abordadas sobre a costumeira polêmica dicotomia entre a universalidade e o relativismo cultural nas questões envolvendo os direitos humanos. Sem resvalar nos argumentos popularizados, o autor sevilhano contribui lucidamente para revelar problemáticas encobertas e desconsideradas.

Ao analisar pormenorizadamente a linguagem hegemônica do universalismo, identifica três paradoxos: o discurso oficial é favorável ou desfavorável ao deslocamento de pessoas dependendo do interesse dos grupos que controlam o sistema capitalista; um propalado discurso de estrita universalidade; e a titularidade exclusivista da cultura ocidental em procurar definir os direitos humanos.

Essa situação peculiar desenvolve-se no denominado universalismo de confluência, pois absolutiza a expansão de uma ou algumas universalidades em detrimento de outras culturas ou possibilidades.

Aventa essa hipótese em razão dos anseios à eventual pré-disposição que os seres humanos teriam pela unidade, pela necessidade de atingir a verdade e universalizar seus desejos.

A relação entre universalismo e relativismo não pode ser enfrentada de maneira dualista, maniqueísta. É evidente que eventuais soluções ou respostas sairão de um enfrentamento relacional, de uma busca pelas complementaridades e discrepâncias.

Demonstrando outras contribuições teóricas, sustenta que devemos agenciar múltiplas culturas e inúmeros grupos humanos em “particularidades concretas tensionadas de universalidade” (p. 102), promovendo e tencionando diversas possibilidades de relacionar o concreto e o idealizado.

Essas nomeações indicam que não devemos realçar apenas uma pretensão de unidade, mas que diversas pretensões devem ser levadas em consideração, com suas diferenças e relações sociais.

Nesse sentido, explicita que estamos diante “[…] não de um ‘universalismo, mas sim de um pluriversalismo de confluência’ aberto a partir de suas distintas procedências, a um permanente diálogo e a um contínuo processo de construção sem imposições etnocêntricas e homogêneas” (p. 102).

No quarto e último capítulo, “Ciência-ficção e direitos humanos: tramas sociais e princípios de impossibilidade”, David Sánchez Rubio inova no desenvolvimento das reflexões sobre os direitos humanos ao trazer, de maneira inovadora, a ficção científica para contribuir na reflexão do tema.

Essa peculiaridade é iniciada tendo por base a questão da modernidade, dos paradigmas e seus pilares: regulação e emancipação, com sustentação nos estudos de Boaventura de Sousa Santos.

No pilar regulação, encontram-se os princípios do Estado, do mercado e da comunidade. Já no pilar emancipação, identifica-se a lógica estético-expressiva (arte e literatura), a cognitivo-instrumental (ciência e técnica) e a moral-prática (moral e direito).

Desse modo, “[…] a racionalidade estético-expressiva é a que mais tem conservado a dimensão emancipadora da modernidade” (p. 119), o que pode indicar a peculiar importância que a ficção científica pode assumir no pilar emancipação na modernidade, pois “[…] a partir da ciência-ficção também se dão elementos com os quais se pode vislumbrar outra ciência que intercomunique, dialogue, encontre a relacionalidade e a recursividade de todas as partes e facetas da realidade” (p. 120).

Aprofundando a questão, buscando unir os direitos humanos e a ficção científica, traz os elementos contidos nos princípios de impossibilidade e a consequente idealização da empiria, do concreto e o conceito de tramas sociais, as construções cotidianas dos diversos sujeitos sociais.

Esses conceitos permitem o questionamento da mentalidade ocidental que valoriza, demasiadamente, os ideais de abstração, idealização e fetichização. Assim, no processo de humanização, de defesa e promoção dos direitos humanos, podemos estar sujeitos tanto à consolidação dos direitos como, também, a sua desconfiguração.

De todo modo, através da lógica estético-expressiva, através da ficção científica, poderá promover e consolidar direitos humanos. Nesse sentido, o autor deixa claro que: “[…] o que queremos dizer é que o humano se constrói, se faz” (p. 140).

A relevância do livro é notória face às cotidianas e permanentes formas de abordar direitos humanos e, do mesmo modo, o fenômeno jurídico. A perspectiva assumida permite revelações e discussões de situações e vivências sonegadas nas reflexões filosóficas e jurídicas atuais.

Roberto Galvão Faleiros Júnior – Universidade Estadual Paulista – Campus de Franca. Franca, SP, Brasil. E-mail: [email protected]

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Historiografia alemã pós-muro: experiências e perspectivas – GERTZ; CORREA (HH)

GERTZ Rene ucsplay ucs br
GERTZ Historiografia alemã pós muroRené Gertz /ucsplay.ucs.br

GERTZ, René E.; CORREA, Sílvio Marcus de S. (orgs). Historiografia alemã pós-muro: experiências e perspectivas. Santa Cruz do Sul/Passo Fundo: Edunisc/Editora UPF, 2007, 245pp. Resenha de: MATA, Sérgio da.[1] História da Historiografia, Ouro Preto, n. 2, mar. 2009.

Poucas pessoas fizeram tanto pela divulgação, no Brasil, da historiografia alemã quanto René Gertz. Há 22 anos atrás, em conjunto com Abílio Baeta Neves, ele publicava sua excelente coletânea A nova historiografia alemã, ocasião em que, salvo engano, autores como Klaus Tenfelde, Jürgen Kocka e Jörn Rüsen se tornaram pela primeira vez acessíveis em português. O volume era na verdade uma excelente introdução ao que alguns dos mais importantes historiadores alemães do pós-guerra pesquisava e, sobretudo, como pesquisava. A revista “História e Sociedade” (Geschichte und Gesellschaft) transformara-se numa nova Meca, e autores como Hans-Ulrich Wehler e Wolfgang Mommsen desfrutavam de enorme influência.

Duas décadas depois, a situação dá mostras de ter mudado, e de forma surpreendente, tanto no Brasil quanto na Alemanha. Rüsen e Koselleck se tornaram referências obrigatórias mesmo entre nossos estudantes de graduação. Clássicos do pensamento histórico como Droysen, Ranke e Burckhardt têm sido revisitados e, aos poucos, contemplados com novas traduções. Até mesmo um interesse crescente pelo aprendizado da língua alemã pode ser diagnosticado por toda a parte. Em suma, um quadro impensável em 1987.

A publicação de Historiografia alemã pós-muro: experiências e perspectivas, livro composto de textos selecionados e traduzidos pelo mesmo Gertz e por Marcus Correa, mostra a que ponto a situação na Alemanha alterou-se significativamente. A referência no título do livro à reunificação tem toda a razão de ser, pois, grosso modo, até então seria correto falar em duas historiografias alemãs: a ocidental e a oriental. Em que pese a subserviência político-ideológica da maioria dos historiadores da Alemanha Oriental, como apontou há pouco Estevão Martins (Martins, 2007, p. 62), estudos como o de Middel (2005) mostram que a partir da década de 1950 homens como Walter Markov e Manfred Kossok desenvolviam ali sofisticados estudos de história comparada – na boa tradição da Universidade de Leipzig, cujas origens sabidamente remontam a Karl Lamprecht. A reunificação, em 1989, significou uma pá de cal sobre esta incipiente historiografia marxista renovada. Bem poucos sobreviveram no mundo acadêmico “pós-muro”.

No plano propriamente teórico, a influência da Escola de Frankfurt refluiu a olhos vistos. A morte de Niklas Luhmann e a desgastante polêmica mantida entre Habermas e Peter Sloterdijk, ambos fatos ocorridos em fins da década de 1990, pareciam assinalar o eminente declínio das teorias de longo alcance nas ciências sociais alemãs e, por conseguinte, nos meios historiográficos. À “escola de Bielefeld” restou a crítica às novas perspectivas advindas de outras comunidades historiográficas, tais como a história cultural, a história do cotidiano e a micro-história. Em que pese o muito de acertado que há nessas críticas (cf.

Wehler, 2002), percebe-se que setores do mainstream se enclausuraram nos cânones da ciência social histórica. Neste sentido, mais que um retrato da novíssima historiografia alemã, a coletânea de Gertz e Correa oferece-nos uma espécie de índice de uma comunidade historiográfica em plena crise de redefinição de paradigmas. Uma crise, diga-se de passagem, que parece ter nos aproximado.

Percebe-se que o que lá se pratica não é, hoje, muito distinto do que os historiadores brasileiros fazem – ou faziam, na década de 1990. Sente-se também que aquele plus de originalidade da “história social” e da “história da sociedade” – com seu alto rigor analítico e sofisticação teórica – se perdeu.

Os ensaios coligidos por Gertz e Correa não têm a pretensão de oferecer uma contribuição original aos dilemas teórico-metodológicos da historiografia “pós-muro”. Trata-se, em sua maior parte, de balanços historiográficos e de discussões de caráter introdutório, o que em todo o caso tem a vantagem de proporcionar um painel útil e didático a todo aquele que pretende se familiarizar com uma tradição que só conhecemos ainda muito epidermicamente. A seguir, nos limitaremos a fazer alguns apontamentos mais gerais, e a uma ou outra observação crítica sobre os pontos de vista dos autores.

Willibald Steinmetz abre o volume com uma exposição abrangente, intitulada “Da história da sociedade à ‘nova história cultural’”. Acompanhando o pensamento de Otto G. Oexle, Steinmetz tende inicialmente a superestimar o pioneirismo alemão no que se refere à Kulturgeschichte, minimizando, assim, a originalidade das abordagens surgidas na segunda metade do século XX. Mas reconhece que projetos editoriais inovadores como o Léxico de conceitos histórico-políticos de Brunner, Conze e Koselleck surgiram concomitantemente a desenvolvimentos aparentados no mundo anglo-saxão, no bojo do assim chamado linguistic turn. Steinmetz defende a história cultural da crítica de Wehler segundo a qual estaríamos passando por uma despolitização do discurso histórico. Os historiadores culturais, ao contrário, estariam se dedicando também “a áreas consideradas centrais pelos representantes da história social política” (p. 34). O que é sem dúvida correto. Mas ao sustentar que “os espaços de ação constituem-se na e por meio da linguagem” (p. 38), vê-se o quanto a tendência a se autonomizar a esfera da linguagem, a torná-la o a priori de toda análise histórico-social, encontra eco em Steinmetz. O uso do conceito de “comunicação” mostrar-se-ia quiçá mais profícuo, posto que evoca explicitamente a importância da interação entre os sujeitos na construção e reconstrução do sentido subjetivo de suas ações, bem como do mundo social como um todo. Todo agir comunicativo pressupõe ainda a existência de regras previamente estabelecidas (poderíamos chamá-las proto-instituições). Sem o “programa” por elas proporcionado, o indivíduo enfrentaria grande dificuldade para resolver seus problemas concretos de comunicação, seja ao manter uma simples conversa telefônica, seja ao redigir uma resenha acadêmica. Desatento a estas outras possibilidades analíticas, é natural que Steinmetz caia no beco sem saída do relativismo, tão comum àqueles que cedem à tentação do essencialismo culturalista. Partindo do princípio que “toda a realidade […] é simbolicamente construída” (p. 41), ele enreda-se no falso dilema que é o de se perguntar sobre o que vem a ser efetivamente “real” ou “fictício” nesta “multiplicidade de construções paralelas, mas, em princípio, equivalentes, da realidade” (p. 42, grifo nosso). Trata-se, a nosso ver, ora de construções primárias da realidade, ora de construções secundárias. Às primeiras, surgidas da interação social imediata e veículos de um saber pré-teórico, cabe o que Luckmann chama de “prioridade ontológica”, mas de forma alguma o estatuto de o “verdadeiro” por excelência. Todas as construções sociais da realidade são “verdadeiras”, o que não significa que se situam num mesmo plano e que não haja, entre elas, alguma hierarquia constitutiva.

O ensaio seguinte, de Ute Daniel, prossegue o debate sobre a história cultural. Diferentemente de Steinmetz, Daniel parte da Kulturgeschichte alemã de princípios do século passado apenas para mostrar que as referências atuais afastam-se radicalmente do pendor nomológico e monista de alguns dos nomes daquela geração. Na Alemanha, como por toda a parte, a ênfase tornou-se decididamente hermenêutica nas últimas décadas. Embora a autora acredite que “até o final do século XIX somente […] Jacob Burckhardt […] lidava com história cultural” no meio acadêmico de língua alemã (p. 54), o que cremos ser inexato, ela reconhece a importância de historiadores como Eberhard Gothein (sucessor de Max Weber em Heidelberg e futuro orientador de Ernst Kantorowicz), além de Kurt Breysig e Lamprecht. A respeito da famosa polêmica suscitada por este último, Daniel a reduz a um conflito entre historicismo/história política de um lado e evolucionismo/história cultural do outro, sem, porém, atentar para um inegável pano de fundo institucional do embate: o que também estava em jogo era a preeminência de Berlim como principal centro historiográfico de língua alemã. A intempestiva reação de Meinecke (barrando o acesso de Lamprecht à Historische Zeitschrift) e dos demais neo-rankeanos, bem como os reiterados ataques a todo e qualquer impulso renovador advindo das universidades de Basel, Heidelberg e Leipzig, tudo isso mostra a que ponto uma visão “culturalista” da história da historiografia esbarra em limitações mais ou menos sérias.

O que segue é um panorama convencional da pluralização crescente do mercado de idéias historiográficas na Alemanha após a década de 1960, um processo não muito distinto do ocorrido no Brasil, inclusive pelas resistências a ele impostas: lá, pela história social da “escola de Bielefeld”, aqui, pela história social de extração marxista. A mesma sensação de déjà vu acomete o leitor ao percorrer as páginas do texto de Wolfgang Hartwig, “História cultural política do entreguerras”. Uma discussão incomparavelmente mais densa e propositiva sobre a história cultural da política, feita por Thomas Mergel (2003) e inclusive já vertida por Gertz ao português, possivelmente teria sido uma opção mais interessante que o ensaio de Hartwig, cujo único ponto positivo é o de oferecer uma longa e atualizada bibliografia dos novos estudos desenvolvidos sobre o entreguerras alemão.

Já Johannes Fried dedica um extenso ensaio ao tema “História e cérebro: desafios à ciência histórica através da crítica à memória” (p. 97-141). Poderíamos resumi-lo à seguinte proposição: a memória, esta modalidade de relação com o passado situada numa encruzilhada entre o biológico e o cultural, não pode servir a uma historiografia entendida como ciência do passado. Se a memória é um fenômeno mais “coletivo” (Halbwachs) que “cultural” (Assmann), se se pode reduzi-la fenomenologicamente a estruturas da consciência (Ricoeur) ou associá-la à materialidade de monumentos e espaços específicos (Nora), é algo que não chega a interessar diretamente a Fried em sua discussão. Tem-se, a princípio, a impressão que o autor promoverá alguma espécie de diálogo com a neurociência. O que poderia ter sido estimulante, mas que, todavia, não se confirma. Ele parte de um famoso episódio: as conversas entre Niels Bohr e Werner Eisenberg no outono de 1941, em Copenhague, a respeito da utilização militar da fissão nuclear, descoberta pouco antes do início da II Guerra. Nos anos seguintes, Bohr e Eisenberg nunca entrariam em acordo sobre o local e o teor exato destas conversas. Depois de uma tentativa de reconstituição deste interessante episódio, Fries subitamente adota um ponto de vista “naturalista” estrito sobre a memória, e dispara: “uma história derivada exclusivamente da lembrança cerebral é algo cheio de erros, uma construção irreal” (p. 114). Daí serem “suspeitos todos os depoimentos produzidos pela capacidade de memória” (p. 115) Simplesmente “não se pode confiar em tais reproduções e construções” (p. 116). Ele lista, com a minúcia de um relojoeiro suíço, as quinze características que definem e circunscrevem os processos mnemônicos (p. 122- 123), e constata: “uma testemunha que recorda […] não descreve aquilo que realmente aconteceu; antes, fornece uma abstração que vai se afastando dos fatos”. Para quem imaginava que essa modalidade de realismo ingênuo sofrera um golpe de morte no país de Dilthey e Gadamer, é sem dúvida decepcionante.

Felizmente, os organizadores contrabalançaram o efeito potencialmente devastador do ensaio de Fried com aquele que pensamos ser um o melhor ensaio do livro: “A caminho da ‘história das vivências’? História oral na Alemanha” (p. 142-172), da historiadora e jornalista Babett Bauer. Ao mostrar as grandes dificuldades lá enfrentadas pela oral history, Bauer ajuda-nos a perceber que nem tudo são flores para os representantes da novíssima historiografia alemã.

Pesquisadores como Alexander von Plato e Lutz Niethammer preferem falar em “história das vivências” (Erfahrungsgeschichte), algo certamente mais interessante e matizado que aferrar todo um campo de pesquisa a um método.

Não obstante, são muitos os que insistem em “encarar com ceticismo a realização de pesquisas com base em fontes orais” (p. 145-146). O papel de porta-voz da tradição coube mais uma vez a Wehler, para quem os que se valem da história oral não passam de “historiadores descalços”.1 Mesmo sob fogo cerrado, alguns projetos inovadores, norteados por aquilo que se difundiu sob a designação de historiografia democrática, surgiram ao longo da década de 1980. É o caso das “oficinas de história”, grupos formados por historiadores profissionais e leigos interessados na reconstituição da história regional e local, aos quais se juntaram iniciativas semelhantes realizadas com o apoio dos sindicatos alemães. A nova perspectiva revelou-se especialmente profícua no estudo da história da Alemanha Oriental. Como a quase totalidade dos registros escritos estavam submetidos ao ferrenho controle do serviço secreto e das forças desegurança do regime, somente a “história das vivências” permitiu visualizar os “elementos crescentes de dissenso” e o “declínio do conformismo entre a população” (p. 153) nos últimos anos da ditadura. Na segunda parte de sua exposição, Bauer discorre longa e sofisticadamente sobre as possibilidades e dificuldades teóricas da Erfahrungsgeschichte.

Os dois últimos ensaios, de Peer Schmidt (“Da história universal à história mundial”) e Reinhard Wendt (“O olhar para além das fronteiras continentais: história extra-européia na recente historiografia de língua alemã”) tratam do desafio da superação daquilo que os autores acreditam ser a demasiada autocentralidade da produção historiográfica de seu país. Para o latinoamericanista Schmidt, trata-se agora de buscar uma “história mundial de novo tipo”, afastada das “elaborações eurocêntricas de uma história universal que saiu de moda” (p. 187). Wendt mostra, de forma oportuna, que Lamprecht já havia insistido na necessidade de a história incorporar o estudo dos povos “sem história”. Impulsos semelhantes, observa ele, partiam também da geografia. De fato, Friedrich Ratzel publicara em 1904 um longo artigo na Historische Zeitschrift em que critica Eduard Meyer por deixar de fora de sua História da Antiguidade os chamados “povos naturais”. A abordagem de Wendt, mais completa e minuciosa que a de Schmitt, mostra o que tem sido feito pelos que pretendem superar a história “meramente” nacional sem cair nos mesmos erros de Hegel e Ranke. A que ponto tal perspectiva efetivamente se difundiu, isso já é outra coisa. Basta mencionar o projeto, em pleno andamento, de edição de uma História Mundial pela prestigiosa Enciclopédia Brockhaus. Segundo apuramos com um dos autores envolvidos, dos vinte volumes planejados, apenas um será dedicado à Ásia, enquanto que um outro terá de ser dividido entre América e África…

A discussão sobre o que deve ser uma nova história mundial, universal ou – como preferem alguns – “transnacional”, encontra-se de toda forma bastante amadurecida na Alemanha. Se Historiografia alemã pós-muro revela um campo no qual temos muito ainda o que avançar, é certamente este. A retomada dos pontos de vista de Voltaire, Ratzel, Spengler, Jaspers e outros se expressa em revistas já estabelecidas como Saeculum, Comparativ e Zeitschrift für Weltgeschichte; enquanto que nomes como o já citado Matthias Middel assumem a condição de porta-vozes desta história universal renovada. Impulsos análogos se façam notar no campo da história da historiografia, como demonstram os esforços de Rüsen (2002) em incrementar o “debate intercultural”, e até mesmo na história social (Kocka, 2003).

A cultura historiográfica alemã já não é “tão estranha assim” para o público brasileiro, observa com acerto Astor Diehl em seu posfácio ao livro.

Concordamos com ele que para isso tem concorrido o afluxo crescente de jovens historiadores às universidades e centro de pesquisa alemães. Mas um papel não menos importante foi e continua a ser desempenhado por René Gertz, o que demonstra a que ponto o esforço de tradução é decisivo na economia da troca – ainda tão incipiente – entre os mercados historiográficos dos dois países.

Resta-nos deixar uma sugestão para iniciativas similares no futuro: um estudo acurado sobre os novos canais de circulação de conhecimento histórico que são os portais eletrônicos (H-Soz-u-Kult, Clio-on-Line, Sehepunkte), e que permitem acompanhar com enorme agilidade o estado das discussões, os debates e as novas tendências da historiografia alemã.

Referências

KOCKA, Jürgen. Losses, Gains and Opportunities: Social History Today. Journal of Social History, v. 37, p. 21-28, 2003.

MARTINS, Estevão de Resende. Historiografia alemã no século XX: encontros e desencontros. In: MALERBA, Jurandir; ROJAS, Carlos A. (orgs.) Historiografia contemporânea em perspectiva crítica. Bauru: Edusc, 2007.

MERGEL, Thomas. Algumas considerações a favor de uma história cultural da política. História Unisinos, v. 7, n. 8, p. 11-55, 2003.

MIDDEL, Matthias. Weltgeschichtsschreibung im Zeitalter der Verfachlichung und Professionalisierung. Leipzig: Akademie Verlagsanstalt, 2005.

RÜSEN, Jörn. Western Historical Thinking: an intercultural debate. New York: Berghahn, 2002.

WEHLER, Hans-Ulrich. Historisches Denken am Ende des 20. Jahrhunderts. Göttingen: Wallstein, 2002.

[1] Professor Adjunto Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP) [email protected] Rua do Seminário, s/n – Centro Mariana – MG 35420-000