Clichês baratos: Sexo e humor na imprensa ilustrada carioca do início do século XX | Cristiana Schettini

Cristiana Schettini
Cristiana Schettini | Imagem: Café História

Como se dava a relação da sociedade carioca da Primeira República com as questões sexuais? Quais eram as possibilidades para o consumo do erótico em uma cidade recém-saída da escravidão, com um novo regime político cuja ideia de modernidade estava presente nos discursos de diferentes grupos sociais? E por fim, o que uma investigação das sociabilidades noturnas masculinas pode revelar sobre o modo pelo qual homens e mulheres negociavam hierarquias sociais e morais no Rio de Janeiro? O livro Clichês Baratos: Sexo e humor na imprensa ilustrada carioca do início do século XX, de Cristiana Schettini, busca justamente examinar as conexões entre o processo de mercantilização das diversões, a sociabilidade noturna, o humor e a sexualidade.

A maneira como as pessoas se divertiam já vem sendo interesse de pesquisas de história social desde as décadas de 1970 e 1980, quando se aproximaram os diálogos entre a Antropologia e a História. Trabalhos sobre o carnaval, as festividades religiosas, o teatro e outras formas de sociabilidade vêm trazendo para a historiografia novas contribuições para se entender as disputas políticas e sociais no país. Trabalhos como o de Cristiana Schettini têm sido fundamentais para a compreensão de quais fantasias e desejos sexuais ocupavam um lugar essencial na vida noturna do Rio de Janeiro do início do século XX. Leia Mais

Clichês baratos: sexo e humor na imprensa ilustrada carioca do início do século XX | Cristiana Schettini

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Cristiana Schettini | Foto: cafehistoria.com

SCHETTINI C Cliches baratosEm busca de diversão noturna, homens que viviam no Rio de Janeiro do início do século XX encontravam inúmeras opções de entretenimento no centro da cidade. Teatros, cinematógrafos, casas de chope e jardins são apenas alguns exemplos, dentre tantos outros locais de sociabilidade masculina. Não raro, nesses espaços, elementos relacionados ao sexo e ao humor eram mobilizados para atrair e satisfazer os anseios de uma ampla e diversificada clientela. “Estrangeiros no tempo”, leitoras e leitores de Clichês Baratos: sexo e humor na imprensa carioca do início do século XX, novo livro de Cristiana Schettini, iniciam seu percurso por esse mundo com um passeio que reproduz roteiros disponíveis a muitos consumidores desse lazer repleto de apelos eróticos. As perspectivas masculinas, porém, estão longe de serem as únicas, tampouco as mais enfatizadas pela historiadora.

Doutora em História pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), a autora fez uma tese sobre a prostituição carioca no início do período republicano. Esse trabalho foi premiado pelo Arquivo Nacional e deu origem ao livro “Que tenhas teu corpo”: uma história social da prostituição no Rio de Janeiro das primeiras décadas republicanas, publicado em 2006. Desde então, ela tem se dedicado a pesquisas sobre o tema e sobre imigração no Brasil e na Argentina, com ênfase na perspectiva de gênero. Publicou inúmeros artigos e organizou coletâneas, sendo a mais recente em parceria com Juan Suriano, intitulada Historias Cruzadas: diálogos historiográficos sobre el mundo del trabajo en Argentina y Brasil (2019). Atualmente, leciona no Instituto de Altos Estudios Sociales da Universidade Nacional de General San Martín (USAM) e é pesquisadora do Consejo Nacional de Investigaciones Científicas y Técnicas (CONICET). Leia Mais

“Que tenhas teu corpo”: uma história social da prostituição no Rio de Janeiro das primeiras décadas republicanas – SCHETTINI (REF)

SCHETTINI, Cristiana. “Que tenhas teu corpo”: uma história social da prostituição no Rio de Janeiro das primeiras décadas republicanas. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2006. Resenha de: GUIMARÃES, Janete Eloi. O enfrentamento pela via legal: a utilização do aparato jurídico por mulheres pobres nas primeiras décadas republicanas. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v.17 no.1 Jan./Apr. 2009.

Tradução literal da expressão latina habeas corpus, “Que tenhas teu corpo” é resultado da tese de doutoramento em história social de Cristiana Schettini, defendida na Unicamp em 2002. O sugestivo título faz alusão a um dos caminhos escolhidos pela autora em sua pesquisa, os meandros do espaço legal e a utilização de seus recursos por populares no Rio de Janeiro no período de estabelecimento do regime republicano no país. Tal recorte temporal já foi objeto de várias frentes de pesquisa, o que poderia sugerir um questionamento quanto à escolha da autora em revisitar aqueles conturbados anos de estruturação política e de reforma espacial pelos quais passava a Capital Federal.

Tais receios se dissipam à medida que Schettini apresenta-nos seu argumento. Extremamente bem articulada, sua narrativa insere o objeto em uma perspectiva não explorada por seus antecessores. É sob um olhar arguto que a autora nos leva a caminhar novamente por ruas e becos, bares, botecos e hospedarias, frequentados pela população pobre, e perceber, nas mulheres que exerciam a prostituição e em seu inquebrantável esforço em resistir às constantes interferências sobre seus modos de vida, uma nova leitura do Rio de Janeiro de então.

Estruturado em três capítulos, a autora perpassa o período de vigência do Código Penal de 1890 e analisa três olhares distintos sobre a prostituição que se entrecruzam: o das mulheres que a viviam como uma possibilidade de renda ou forma de sobrevivência, ou ainda mulheres, trabalhadoras pobres, enquadradas como tal à sua revelia, e dos homens que se relacionavam com essas mulheres; a perspectiva das autoridades policiais e seus procedimentos de fiscalização e controle sui generis (ainda que frequentemente encontremos estes “homens da lei” inseridos no primeiro grupo); e, por fim, o aparato jurídico e seus embates para classificar, avaliar e penalizar, conforme valores legais em constante discussão, uma “profissão” não regulamentada, mas tolerada e, nesse sentido, aceita.

“Os descaminhos da localização”, primeiro capítulo, é construído a partir dos habeas corpus que começam a ser impetrados em favor de prostitutas que vinham sendo “convidadas”, com excesso de firmeza, a mudar seus endereços, em 1896. A autora observa perspicazmente de que maneira tal ação jurídica adquiriu conotações de situação limítrofe naquele momento. A localização a que caberia a prostituição na cidade estaria na ordem do dia por um longo período e seria uma questão enfrentada constantemente pelas autoridades policiais. A reforma espacial que sofreria a Capital nas primeiras décadas republicanas impunha a necessidade de se suprimirem possíveis empecilhos para a concretização dos projetos quistos para a cidade; a zona de prostituição, atividade tacitamente consentida, era um enclave a ser removido. É nesse sentido que tais habeas corpus irão fomentar um amplo debate, situando-se em meio ao enfrentamento de dois projetos da República para o país, que determinariam as bases sobre as quais o regime estabelecer-se-ia, em que um tomava por base a valoração do interesse coletivo em detrimento de outro, que visava proteger as prerrogativas individuais dos cidadãos.

Seguindo, a autora aborda diversos conflitos advindos das tentativas, nem sempre lícitas, de deslocar as prostitutas para regiões mais afastadas e identifica as formas elaboradas por essas mulheres para “sobreviver às picaretas”. Estabelece-se nesse capítulo o paralelo entre as ações policiais, com grande frequência discricionária, e as estratégias das mulheres, descortinando suas redes de solidariedade e auxílio mútuo, passando pelas fissuras no policiamento, entendendo aqui a suscetibilidade de seus componentes verem-se enredados pelo cotidiano daquelas mulheres, até o uso do recurso legal para sua defesa.

“Histórias do tráfico” irá perscrutar as narrativas sobre o tráfico de mulheres brancas aliciadas para a prostituição, sua construção e seus usos. Segundo a autora, tomando ares de verdade absoluta, tais histórias coordenaram debates no âmbito internacional e orientaram decisões jurídicas e procedimentos policiais no Brasil. Sob um caráter de “defesa de mulheres ludibriadas submetidas a uma situação de degradação alheia a sua vontade”, a veracidade com que foram recebidas tornou tais histórias legitimadoras a toda sorte de arbitrariedades de procedimentos policiais, desde atos diretos, como a expulsão sumária, até a manipulação de depoimentos no intuito de embasar processos de lenocínio.

A análise desmistifica tais histórias, apontando que, ao rejeitar uma aceitação de pronto, tem-se a desconstrução da imagem da prostituição como um mal originado no estrangeiro; em seguida, observa-se o uso do “tráfico” como fomentador de estereótipos, ao caracterizar a figura do cáften também como estrangeiro, principalmente de origem judaica. O foco na figura do estrangeiro é lido pela autora como uma permanência da estratégia florianista de estabelecer um inimigo comum para depositar as origens dos problemas nacionais. Nesse sentido, o judeu elege-se como principal alvo, em virtude da sua dissemelhança cultural e religiosa e, até mesmo por conta disso, do seu estabelecimento através de comunidades restritas orientadas por essas relações internas, que surgiam aos olhos alheios como uma rede fechada e inacessível, logo suspeita.

Isentando a sociedade brasileira de promover ou gerar tal mal, e tendo encontrado a quem direcionar sua procedência, promovia-se um clima de suspeição generalizada direcionado a estrangeiros que estabeleciam relações nos ambientes onde a prostituição estava presente. O que nos mostra a autora é que a lógica policial se construía sobre um solo fértil em criminosos, pois os espaços da prostituição, além de concentrarem o que restava de moradia de preço acessível, eram também locais de lazer e relações entre a população pobre e trabalhadora do Rio de Janeiro. Suas vidas eram indissociáveis daqueles locais, logo, viam-se constantemente sujeitos a serem implicados em tal categoria de crime. Além disso, as redes de relações estruturadas sob a etnia, um dos mecanismos de proteção e apoio mútuo, eram lidas como a própria estrutura da súcia envolvida no tráfico. Os mecanismos de sobrevivência desses grupos revertiam-se em “agravante acusatório”.

Em “Usos do lenocínio”, último capítulo, a autora irá centrar sua análise no debate em âmbito judiciário e a sua dificuldade em uniformizar o entendimento, entre os juízes, dos significados da letra da lei, suscitando um debate que percorreria todo o período da vigência do Código Penal de 1890. A prostituição em si não caracterizava um crime, criminoso seria um terceiro que prestasse assistência e/ou fornecesse auxílio a uma prostituta visando lucrar com sua exploração. Durante certo tempo, a imputação do crime de lenocínio estaria subordinada a essa comprovação de que o acusado lucrava com a prostituição de outrem, o que dificultava, mas não impedia, a ação policial. Em 1915, a reformulação desse artigo dispensa a obrigatoriedade da relação de exploração com vistas a lucro, gerando uma indefinição e consequente ampliação do campo possível de aplicação da lei. Bastava agora caracterizar o auxílio ou a assistência para incorrer em delito. Na falta de uma qualificação categórica e sem um consenso por parte do Judiciário, tal reformulação encontra nas autoridades policiais os beneficiários de tal amplitude, na medida em que a gama de vinculáveis à prostituição abria-se enormemente. Nesse movimento, a autora encontra novamente as classes trabalhadoras, seus lazeres e divertimentos, passíveis de fiscalização e criminalização.

A autora articula esse último capítulo por meio de processos de lenocínio quase que exclusivamente, mas esses estão presentes nos capítulos anteriores, em diálogo constante com outras fontes, como a imprensa, a literatura jurídica, os romances, a documentação policial, entre outras. A análise empreendida é acompanhada, no decorrer do texto, com uma discussão aberta sobre a necessária postura criteriosa a que deve engajar-se o historiador ao entabular o tratamento com as fontes, principalmente das provenientes do aparato jurídico-policial. Sem eximir-se do debate sobre a “qualidade” de tal documentação, a autora, ao contrário, propõe-se a tê-la à frente de sua análise, empreendimento no qual obtém êxito.

Em um movimento cadenciado, acompanhamos essas mulheres lançando mão de toda sorte de estratégias para seguir suas vidas a despeito da intensa pressão policial. Vemos esses policiais, em contrapartida, articulando e refinando seus métodos e procedimentos, e nos imergimos no debate jurídico, que buscava estabelecer as significações possíveis para a lei, em uma pendular postura, ora se alinhando ao discurso policial, ora servindo de limite na atuação deste, como nos casos de habeas corpus concedidos.

O livro de Cristiana Schettini nos apresenta assim o vagaroso deslocamento das mulheres de janela, das ruas centrais que se desejava embelezar, para localidades mais distantes, como a região do Mangue, que ficou conhecida posteriormente como uma afamada “zona de meretrício”. Mais do que isso, mostra-nos que a conjugação de ingerência policial e exclusão social não acarreta necessariamente aceitação passiva, ao contrário, as formas de resistência podem ser articuladas dentro do próprio espaço legalizado, no qual todos, independente da condição social a que pertençam, possuiriam princípio de igualdade.

Janete Eloi Guimarães – Universidade Federal de Santa Catarina

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