A Revolução do Haiti e o Brasil escravista: o que não deve ser dito | Marco Morel

O livro, como todos eles, tem um itinerário que extrapola em muito o tempo consumido em sua escrita. Marco Morel começou a pensar na temática ainda muito jovem, em 1989, quando apresentou um trabalho nas comemorações do bicentenário da Revolução Francesa organizadas por Michel Vovelle na Sorbonne. Naquela oportunidade, o historiador expôs uma hipótese original, a de que a revolução Haitiana tinha influenciado mais o Brasil que a própria Revolução Francesa. Vinte e sete anos depois, Morel permite que o público conheça os desdobramentos daquela primeira inquietação.

A Revolução do Haiti e o Brasil escravista se inscreve em um conjunto maior de publicações que aborda os “rumores”, influências, conexões e ecos da Revolução de Saint-Domingue no espaço do Caribe ou do continente americano. Revolução que se desenvolveu entre 1791 e 1804, quando finalmente foi declarada a independência, e a porção ocidental da ilha, que tinha sido chamada por Cristóvão Colombo de “La Española”, tomou o nome de Haiti [3]. Embora balizada entre esses dois anos, os desdobramentos da Revolução e do abolicionismo se estenderam por muitos mais. O livro propõe uma dupla temporalidade: a de 1791-1825 para o Haiti e a de 1791-1840 para o Império do Brasil. No primeiro caso, o período se delimita entre o início da Revolução no território insular e o reconhecimento francês da independência. No segundo, entre o mesmo início e o fim do período regencial.

Apesar de a perspectiva da conexão Haiti-Brasil ter uma longa tradição na história do pensamento social brasileiro, o viés “positivado” da Revolução foi muito menos explorado que o do temor senhorial ou administrativo ao chamado haitianismo [4]. O próprio vocábulo, neologismo do século XIX, surgiu carregado de negatividade, como sinônimo de anarquia, subversão (inversão da ordem), “governo dos negros”.

Morel inscreve seu livro na perspectiva do acolhimento dos acontecimentos caribenhos, mas o ponto de vista é o da história do Brasil.

A admissão/adoção do ideário haitiano no Brasil como modelo social (igualitarismo racial, abolicionismo, direitos de cidadania, redistribuição da terra) ultrapassa, segundo o autor, o âmbito da escravidão, incluindo sectores letrados e não letrados livres. Como se propõe a tratar da recepção da Revolução de Saint-Domingue, principalmente de sua aceitação, já não no formato de artigos, como tinha feito antes, mas numa obra de maior fôlego, o autor estrutura o livro em três capítulos: “A Revolução do Haiti – breve apresentação”, “Entre batinas e revoluções” e “Os fios de uma teia”.

No primeiro, é-nos advertida sua necessidade. Apesar de não ser um livro sobre o Haiti, considera o autor que uma introdução à Revolução é fundamental como protocolo ou pré-requisito de leitura, para o qual adota uma morfologia pouco frequente em livros acadêmicos: uma cronologia de 16 páginas exposta em forma de tabela; breves biografias das lideranças revolucionárias; um apanhado do vocabulário de época; uma descrição de ocupação e exploração da parte ocidental da ilha; a análise de um projeto de classificação racial do fazendeiro e escritor colonial Médéric Louis Élie Moreau de Saint Méry publicado em 1796, comparando-o com o do maranhense Raimundo José de Souza Gayoso, que em seu Compêndio histórico-político dos princípios da lavoura do Maranhão propunha uma classificação adotando a de Saint Méry; e, por último, uma tabela comparando as diferentes constituições desde 1801 – ainda como colônia autônoma – até 1816.

Um primeiro capítulo tão heterodoxo em sua composição nos lembra o romance de Daniel Maximin, L’Isolé soleil, analisado por Laurent Dubois. A personagem Marie Gabriel tenta escrever a história da ilha, Guadalupe, para a qual utiliza o diário de Jonathan, peça elaborada e abandonada por um antepassado seu – o texto não é um diário propriamente dito, mas um álbum de recortes de distintas fontes [5]. Para escrever a história dessa outra ilha, Haiti, Morel recorre a esse gênero constituído por recortes, fragmentos que são necessários para a recomposição do todo.

O segundo capítulo busca tecer as relações entre a França revolucionária, Saint- Domingue e o Brasil a partir dos escritos de três abades: Raynal, Grégoire e de Pradt. Nas páginas do livro, vemos surgir um Raynal idealizado: antiescravista, anticolonialista. As predições do abade sobre o futuro da escravidão africana podem ser interpretadas mais como advertência do que como condenação. Ou, nas palavras de Trouillot, como um “projeto de administração colonial. De fato [o pensamento de Raynal] incluía a abolição da escravidão, mas a longo prazo e como parte de um processo que aspirava a um melhor controle das colônias” [6]. O mesmo pode ser dito da apresentação do abade Grégoire. De qualquer forma, os três funcionam como mediadores letrados das revoluções atlânticas. Os três mantêm algum tipo de relação com o Brasil, presente em seus escritos sobre a escravidão/situação colonial. A busca de Grégoire por um escritor negro em língua portuguesa para sua obra De la Littérature des nègres (1808) o levou a estabelecer contatos no Brasil com Monsenhor Miranda, com quem manteve relação epistolar. A segunda parte do capítulo reconstitui certa formalização de ideias sobre o Haiti e sobre a Revolução do ponto de vista de letrados brasileiros. Afora os três abades, um punhado de escritos locais serve ao autor para evidenciar as conexões revolucionárias atlânticas, sobretudo no nível das ideias.

É no final deste capítulo e a partir da fala do terceiro abade, de Pradt, que Morel nos introduz no subtítulo do livro: “o que não deve ser dito”. Morel atribui a de Pradt a autoria sobre as estratégias comunicativas a respeito da Revolução do Haiti assentadas sobre dois eixos: “a rejeição dos horrores de São Domingos e a ocultação da densidade e das múltiplas possibilidades de seu exemplo histórico” [7]. Para Morel, esses dois eixos podem ser sintetizados como “o maldito e o não dito”.

Embora os silêncios e as ausências tenham nas ciências sociais uma base sólida de conceitualização e análise, foi o antropólogo Michel-Rolph Trouillot quem lhe deu a forma mais acabada em relação ao Haiti com seu livro Silencing the past: “a revolução era impensável no Ocidente embora tampouco fosse verbalizada entre os próprios escravos”, em grande medida porque as reivindicações seriam radicais demais para se expressar em palavras: abolição, expropriação, distribuição da propriedade etc. Esses princípios “só poderiam reivindicar-se quando impostos pelos fatos”. Nesse sentido, diz, “a revolução estava realmente nos limites do concebível” [8]. Mas Trouillot consegue romper o silêncio e encher o livro de alocuções.

O terceiro capítulo começa com a instigante frase: “Poucos personagens encarnam no Brasil a proximidade com o exemplo da Revolução do Haiti como Emiliano Felipe Benício Mundurucu”. O documento principal para apresentar Mundurucu é o texto autobiográfico breve que o brasileiro publicara em Caracas em 1826, mas, para certa decepção de Morel, Mundurucu não fala nada sobre o que seria uma pauta haitiana, senão da pauta do momento nas repúblicas americanas: republicanismo, liberdade, antidespotismo. Utiliza metáforas como “algemas do despotismo” para referir-se aos presos de 1817. Com isso, ele não foi mais longe do que a filosofia política ocidental. Disse Susan Buck-Morss que, no século XVIII, a escravidão havia se tornado a metáfora fundamental da filosofia política ocidental, enquanto a liberdade era considerada o valor político fundamental [9].

Mundurucu foi major do batalhão de pardos durante a Confederação do Equador. Como o autor diz, seu nome se apresenta em fugazes registros na historiografia, vinculado a uns versos sediciosos naquele contexto da revolta:

Marinheiros e caiados

Todos devem se acabar

Porque só pardos e pretos

O país hão de habitar

{…}

Qual eu imito Cristóvão

Esse Imortal haitiano

Eia! Imitai o seu povo

Oh meu povo soberano.

O capítulo traz outra trajetória singular, a do pastor negro, protestante, Agostinho José Pereira, “que alfabetizava negros e pregava contra o catolicismo na década de 1840” e, nessa tarefa, introduzia algumas ideias favoráveis ao Haiti. Nesse caso, como no anterior, trata-se de um haitianismo (no sentido positivo) difuso, próximo daquele que assumia o republicanismo hispano-americano. Um caráter difuso análogo ao da enunciação “mata caiados” para lembrar (timidamente) dos milhares de espanhóis mortos pelo Padre Hidalgo e seus seguidores na sua jornada. É provável que Mundurucu tenha refinado ainda mais sua pauta haitiana em sua estadia na Venezuela, onde o “haitianimo” teve forte influência desde o final do século XVIII.

Como evidencia Morel na última parte do livro, no século XIX fica difícil pensar num único Haiti. As divisões internas entre o Reino de Henri Christophe (1807-1820) ao norte e a República mulata de Alexandre Pétion (1807-1818) ao sul, posteriormente liderada por Jean-Pierre Boyer, deixam patente a complexidade de ecoar, refletir ou se conectar com uma realidade haitiana, sem falar na pertinência de se referir a um único haitianismo.

Escrito de maneira didática e clara, o livro é leitura obrigatória para os alunos de graduação em história que queiram ter uma primeira aproximação à Revolução do Haiti e suas conexões com o Brasil do século XIX.

Notas

3. FERRER, Ada. A sociedade escravista cubana e a Revolução Haitiana. Almanack, Guarulhos, n. 3, p. 37-53, jan./jun. 2012; GÓMEZ, Alejandro. La Revolución Haitiana y la Tierra Firme hispana. Nuevo Mundo Mundos Nuevos [En ligne], Débats, mis en ligne le 17 février 2006, Disponível em: <http://journals.openedition.org/nuevomundo/211>. Acesso em: 7 nov. 2018; GONZÁLEZ-RIPOLL, María Dolores Navarro et al. El rumor de Haití en Cuba: Temor, raza y rebeldía (1789-1844). Madri: Consejo Superior de Investigaciones Científicas, 2004, entre outros.

4. SILVA, Luiz Gerardo. El impacto de la revolución de Saint-Domingue y los afrodescendientes libres de Brasil. Esclavitud, libertad, configuración social y perspectiva atlántica (1780-1825). Historia, Santiago, v. 49, n. 1, p. 209-233, jun. 2016. NASCIMENTO, Washington Santos. São Domingos, o grande São Domingos: repercussões e representações da Revolução Haitiana no Brasil escravista. Dimensões, Vitória, v. 21, p. 125-142, 2008; SOARES, Carlos Eugênio Líbano; GOMES, Flávio. Sedições, haitianismo e conexões no Brasil escravista: outras margens do atlântico negro. Novos Estudos Cebrap, São Paulo, n. 63, p. 131-144, jul. 2002; REIS, João José. Quilombos e revoltas escravas no Brasil. Revista USP, São Paulo, v. 28, p. 14-39, dez./fev. 1995/1996.

5. DUBOIS, Laurent. Los cimarrones en los archivos: los usos del pasado en el Caribe Francés. JBLA, [S.l.], v. 46, n. 5. p. 60-82, 2009.

6. TROUILLOT, Michel-Rolph. Silenciado el pasado. El poder y la producción de la história, Granada: Comares, 2017, p. 68

7. MOREL, Marco. Op. cit., p. 160.

8. TROUILLOT, Michel-Rolph. Op. cit., p. 74.

9. BUCK-MORSS, Susan. Hegel e Haiti. Novos Estudos Cebrap, São Paulo, v. 90, p. 131, jul. 2011.

Referências

BUCK-MORSS, Susan. Hegel e Haiti. Novos Estudos Cebrap, São Paulo, v. 90, p. 131, jul. 2011.

DUBOIS, Laurent. Los cimarrones en los archivos: los usos del pasado en el Caribe Francés. JBLA, {S.l.}, v. 46, n.5. p. 60-82, 2009.

FERRER, Ada. A sociedade escravista cubana e a Revolução Haitiana. Almanack, Guarulhos, n. 3, p. 37-53, jan./jun. 2012.

GÓMEZ, Alejandro. La Revolución Haitiana y la Tierra Firme hispana. Nuevo Mundo Mundos Nuevos {En ligne}, Débats, mis en ligne le 17 février 2006, Disponível em:<Disponível em:http://journals.openedition.org/nuevomundo/211 >. Acesso em:7 nov. 2018.

GONZÁLEZ-RIPOLL, María Dolores Navarro et al. El rumor de Haití en Cuba: Temor, raza y rebeldía (1789-1844). Madri: Consejo Superior de Investigaciones Científicas, 2004.

MOREL, Marco. A Revolução do Haiti e o Brasil escravista: o que não deve ser dito. Jundiaí: Paco, 2017.

NASCIMENTO, Washington Santos. São Domingos, o grande São Domingos: repercussões e representações da Revolução Haitiana no Brasil escravista. Dimensões, Vitória, v. 21, p. 125-142, 2008.

REIS, João José, Quilombos e revoltas escravas no Brasil. Revista USP, São Paulo, (28), 14-39, dez. fev.1995/1996.

SILVA, Luiz Gerardo. El impacto de la revolución de Saint-Domingue y los afrodescendientes libres de Brasil. Esclavitud, libertad, configuración social y perspectiva atlántica (1780-1825). Historia, Santiago, v. 49, n. 1, p. 209-233, jun. 2016.

SOARES, Carlos Eugênio Líbano; GOMES, Flávio. Sedições, haitianismo e conexões no Brasil escravista: outras margens do atlântico negro. Novos Estudos Cebrap, São Paulo, n. 63, p. 131-144, jul. 2002.

TROUILLOT, Michel-Rolph. Silenciado el pasado. El poder y la producción de la história, Granada: Comares, 2017.

María Verónica Secreto – Universidade Federal Fluminense. Niterói – Rio de Janeiro – Brasil. Possui graduação em História – Universidad Nacional de Mar Del Plata – Argentina (1991), mestrado em História pela Universidade Federal Fluminense (1995) e doutorado em Ciência Econômica/História Econômica pela Universidade Estadual de Campinas (2001). Foi professora efetiva na Universidade Federal do Ceará (2002-2004) e na Federal Rural do Rio de Janeiro (2004-2008), atuando nessa última no programa de pós-graduação em Desenvolvimento Agricultura e Sociedade. Atualmente é professora Associada da Universidade Federal Fluminense, atuando na graduação em História da América e no Programa de Pós-graduação.


MOREL, Marco. A Revolução do Haiti e o Brasil escravista: o que não deve ser dito. Jundiaí: Paco, 2017. Resenha de: SECRETO, María Verónica. A Revolução de Saint-Domingue e sua conexão continental: de Toussaint a Mundurucu. Almanack, Guarulhos, n.20, p. 287-290, set./dez., 2018. Acessar publicação original [DR]

E. P. Thompson. As peculiaridades dos ingleses e outros artigos – NEGRO; SILVA (RBH)

NEGRO, A. L.;  SILVA, S. (orgs.) E. P. Thompson. As peculiaridades dos ingleses e outros artigos. Campinas: Editora da Unicamp, 2001. Resenha de: SECRETO, María Verónica. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.23, n.46, 2003.

“Mentes que anseiam por um platonismo asseado logo se tornam impacientes com a história real.”

E.P. Thompson.

Peculiaridades dos ingleses é mais do que uma tradução. Na epígrafe, Christopher Hill diz sobre E. P. Thompson: “sua influência mundial sobre os estudantes de história tem sido incalculável“. Nenhuma frase ilustraria melhor o significado deste livro. Uma versão “doméstica” da Unicamp circulava faz alguns anos por iniciativa dos tradutores, quando realizavam o mestrado em história da Unicamp. Tratava-se de um texto para fins didáticos e de estrita circulação interna. Naquela versão antecipou-se a realização de um artigo de Alexandre Fortes e Antonio Luigi Negro sobre Thompson. Este viu-se concretizado no artigo que integra a parte introdutória da coletânea em questão, sendo intitulado “As peculiaridades de E. P. Thompson,” (e que também traz a autoria de Paulo Fontes). Previa-se a tradução de “Folclore, antropologia e história social,” igualmente incluído junto com “Nota sobre ‘As peculiaridades dos ingleses,'” “A história vista de baixo,” “Modos de dominação e revolução na Inglaterra” e “Algumas observações sobre classe e ‘falsa consciência.'”

O artigo de Sérgio Silva “Thompson, Marx, os marxistas e os outros,” e o de Hobsbawm, “E. P. Thompson” (este último escrito por ocasião de sua morte) complementam essa parte introdutória.

Historiador, socialista, poeta, ativista, orador, escritor, marcado pela sua origem, pela tradição e pelo critério de lealdade, são algumas das adjetivações que Eric Hobsbawm dedica a Thompson.

Entre os adjetivos adjudicados por Hobsbawm talvez tenha esquecido o de empirista. “Peculiaridades de E.P. Thompson” inicia com uma epígrafe do próprio Thompson, fortemente marcado por sua negação das filosofias da história ou das visões teleológicas. Supondo que a história seja um túnel por onde corre um trem expresso rumo a uma planície ensolarada, e no qual vivem gerações de passageiros que nascem e morrem sem ver a luz, o interesse do historiador deverá centrar-se na qualidade de vida, no sofrimento e satisfações daqueles que vivem e morrem nesse tempo não redimido; escreveu…

Poderíamos resumir as peculiaridades inglesas com uma frase do autor: “aconteceu de um jeito na França e de outro na Inglaterra”. A comparação surge no contexto do debate em que é produzido o artigo que denomina a coletânea “As peculiaridades dos ingleses.” Três artigos representantes da nova corrente da New Left Review (dentro da tendência iniciada na década de 1960) são o marco da construção de Thompson: “Origins of the present crisis” de Perry Anderson; “The British political elite” e “The anatomy of the Labour Party,” de Tom Nairn. Quando observada a partir da perspectiva francesa, a história inglesa apresentaria três importantes falhas: 1 – caráter prematuro e incompleto da revolução do século XVII. Conseqüentemente, a burguesia industrial não conseguiu obter a hegemonia mantendo uma relação simbiótica com a aristocracia terra-tenente; 2 – esta revolução do XVII foi impura porque impregnada de questões religiosas. A burguesia satisfez-se com a “ideologia do empirismo,” pela qual o legado intelectual da revolução teria sido quase nulo. Por último, uma revolução burguesa prematura deu lugar a um, outrossim, prematuro movimento da classe trabalhadora. O marxismo chegou tarde para esses trabalhadores, enquanto em Outros Países o marxismo arrebatou a classe trabalhadora.

Para responder a estes argumentos, Thompson entra num tema mais do que clássico: as origens e a natureza do capitalismo inglês.

Analisando essas origens, Anderson e Nairn não podem aceitar a noção de uma classe agrária rentier ou empresarial como uma verdadeira burguesia. Thompson recorre para resolver esta questão ao próprio Marx, que trata largamente do capitalismo agrário e do farmer como um capitalista industrial. O que houve no século XVIII, diz Thompson, foi uma redefinição capitalista do estatuto básico da propriedade, bem como da racionalidade da produção e das relações produtivas. Com um tom irônico, Thompson diz que é impossível compreender as origens do capitalismo inglês se esquadrinhamos as “províncias atrasadas” com olhos parisienses.

Em meados do século XVIII, Thompson localiza um momento chave da transição quando cada vez mais integrantes da gentry deixaram de se ver como beneficiários de rendas e benefícios estáveis, e passaram para um papel mais agressivo em busca de lucro, seguindo a lógica de receitas crescentes. Detalhe relevante, o autor não deixa de reparar que a revogação da economia moral não foi obra da burguesia industrial, mas dos interesses agrários.

Podemos voltar àquela frase “aconteceu de um jeito na França e de outro jeito na Inglaterra” porque Thompson nos lembra que a mistura capitalista-agrária inglesa foi excepcional, e se não há lugar para esta no modelo, o que deve ser mudado é o modelo. Segundo o autor, o que incomoda Anderson e Nairn é a passagem do capitalismo agrário e mercantil do XVIII para o capitalismo industrial do século XIX.

A Revolução Francesa não foi típica. Thompson se opõe ao modelo que concentra a atenção sobre um episódio dramático, “A” revolução, que se constitui em tipo ideal.

CIÊNCIAS NATURAIS, ECONOMIA POLÍTICA E LINGUAGEM EMPÍRICA

Como tínhamos adiantado, uma das caracerísticas da via inglesa, segundo Anderson e Nairn, foi o “empirismo cego”. A burguesia inglesa não teria transmitido impulsos de libertação à classe trabalhadora, nem valores revolucionários, só teria transmitido germes mortais do utilitarismo.

Conseqüência do que “realmente aconteceu” — o diferencial thompsoniano — a Revolução Inglesa foi disputada em termos religiosos porque a religião importava. Anderson e Nairn, diz Thompson, prefeririam que a Revolução tivesse ocorrido não em torno da religião, mas contra qualquer religião, desprezando o fato de que o protestantismo permitiu a expansão do racionalismo. Outro fato: não existia um enclave intelectual independente, mas uma multiplicação de enclaves intelectuais. Na Inglaterra de final do século XVIII e no XIX havia uma forte tradição de dissidência. Esta tradição não seria capaz de gerar um Marx, mas sem ela Marx não teria escrito O Capital. Esta tradição ainda foi capaz de gerar um Darwin. Podemos lembrar que quando o capitão Fitz Roy contatou Darwin para o acompanhar na expedição científica, o fez com o intuito de que o jovem cientista demonstrasse a existência do dilúvio e sua universalidade. As provas lhe ditaram o contrário. Darwin é, segundo Thompson, o resultado de três séculos de cientistas naturais britânicos e, em questão de décadas, foram postos à disposição do público conhecimentos que até então estiveram vedados. O conhecimento que “deveria” ter sido arrancado das mãos do padres e os enunciados de Darwin “deveriam” ter gerado uma grande crise, mas não aconteceu assim, entre outras coisas porque Darwin lançou sua teoria da evolução ante um público protestante e pós-baconiano.

Outras duas heranças ideológicas da revolução são salientadas por Thompson para contrapor àquela do utilitarismo denunciado por Nairn e Anderson: a tradição democrático-burguesa e a economia político-capitalista, esta última decorrente das limitações que a teoria mercantilista impunha a agricultores e manufatureiros. “Bacon expeliu Deus das Ciências Naturais. Adam Smith expeliu-O da teoria econômica.”(127) Foi esta contribuição que fez com que a burguesia industrial não se interessasse por teoria política: esta não importava. Thompson pergunta-se: Como ignorar este dado quando Marx dedicou a obra de sua vida para derrubar essa teoria de Smith?

Por todos os argumentos anteriores, Thompson nega a existência de uma ideologia empírica, embora não negue a importância do idioma empírico que tem sustentado o realismo do romance inglês e tem servido às Ciências Naturais.

MODELOS, METÁFORA E MOVIMENTO ECONÔMICO

Sobre os modelos como metáfora do processo histórico, diz que a história não se torna história até que não haja um modelo, já que “tudo o que aconteceu” não pode ser apreendido. Porém o modelo não deve condicionar a seleção das evidências. O problema para Thompson não está em adotar um modelo, mas na metáfora escolhida pelo marxismo para exprimir a relação entre ser social e consciência social: a metáfora base—superestrutura leva ao esquematismo e ao reducionismo. O desafio é encontrar um modelo que abarque a dialética humana, no qual a história não apareça de maneira voluntariosa nem fortuita, nem determinada.

Apresenta-se o problema de como entender o movimento econômico. Evidentemente que descarta a possibilidade de causação última. Thompson re-significa o termo econômico, afastando-o da representação usual, mas não a única, de econômico como forças produtivas e relações produtivas e indica o caminho hoje percorrido por sociólogos e antropólogos de entrelaçamentos das relações econômicas e não-econômicas das sociedades; pelo que é perigoso pensarmos num movimento econômico como oposto a um movimento cultural e moral. Caracterizando William Morris como exemplo, quando este escreveu sobre a “baixeza moral inata” do sistema capitalista o fez pensando no capitalismo como relações fundadas em formas de exploração que eram simultaneamente econômicas, morais e culturais. Por um momento se permite pensar que “base” não seja uma metáfora inadequada, mas, ainda assim, teríamos que entendê-la como não apenas econômica; mas cultural, historicamente constituída (embora este fato possa ser descrito em linhas gerais como econômico).

Composta com “os outros artigos”, a segunda parte da coletânea apresenta:

1) “A história Vista de Baixo”: trata-se de um estado da questão sobre a história social britânica; sempre nos termos das “peculiaridades do arquipélago”, diferente dos países com tradições revolucionárias ou populistas (nos quais a retórica da democracia teria saturado suas historiografias).

2) “Modos de dominação e revoluções na Inglaterra.” Novamente o termo de comparação é a França. Trata-se de uma crítica ao modelo de evolução histórica cujo motor é constituído por rupturas ou crises, partindo da idéia de que n’O Capital Marx se baseou no caso da Revolução Industrial inglesa, mas nos aspectos políticos guiou-se pela experiência francesa. Este último modelo apresenta uma série de crises com modelo de imposição hegemônica, enquanto o modelo inglês é de dominação contínua de uma burguesia fundiária.

3) “Folclore, Antropologia e História Social.” Das mais esperadas traduções, neste artigo Thompson apresenta algumas questões da relação da história com a antropologia e o folclore, questões levantadas a partir de sua experiência de pesquisa. Afirma ter sido levado a um diálogo com a antropologia, não nos termos de construção de modelos, mas na identificação de problemas. A busca de fontes sobre costumes levou-o a se aproximar dos folcloristas. Discorre sobre noções e conceitos como rituais, normas, teatro, tabus, terror, mediações sociais.
Volta a tratar da inadequação da metáfora base—superestrutura, sem questionar a centralidade do modo de produção, mas sim a idéia de descrever um modo de produção em termos unicamente econômicos sem considerar as normas, a cultura e os conceitos sobre os que se organiza um modo de produção.

4) “Algumas observações sobre classe e ‘falsa consciência.'” Este derradeiro texto aborda o tema de forma sintética através de oito pontos: 1-a necessidade de considerar classe como categoria histórica; 2-a constatação de que uma grande parte do discurso sobre a classe ocorre no nível teórico; 3-em muitas abordagens predomina a visão estática de classe; 4-classe é uma categoria histórica ainda para o próprio Marx d’O capital; 5-recuperar a classe como categoria histórica permitirá aos historiadores realizar observações empíricas além de utilizá-la como categoria heurística; 6-heuristicamente classe é inseparável de “luta de classes”. Este último conceito é prioritário, já que traz embutida a idéia de processo, é um conceito histórico que indica movimento. “Classe e consciência de classe são sempre o último e não o primeiro degrau de um processo histórico real;” 7-a classe configura-se segundo o modo em que os homens vivem as relações de produção, segundo suas experiências no conjunto das relações sociais; 8-sobre a “falsa consciência”, é uma construção absurda dos partidários das elites. A consciência designa uma cultura global desprendida da formação da classe, que não pode ser nem verdadeira nem falsa.

A publicação brasileira de “As peculiaridades dos ingleses e outros artigos” responde a uma necessidade acadêmica e política, duas instâncias que não se separam. Compõem esta coletânea textos de grande densidade conceitual que nos alertam sobre os perigos das simplificações. A mais atacada delas: a metáfora base—superestrutura. Mas outra leitura também é possível, sobretudo sabendo do convencimento que a respeito desta última afirmação têm os leitores thompsonianos: a economia não pode ser abolida. Ela está presente em todas as construções e explicações dos artigos, na forma de economia cultural e socialmente construída.

Em 1933, por motivos semelhantes aos de Thompson, Caio Prado tentava explicar a evolução política do Brasil e escrevia sobre o instante do nascimento da nação brasileira:

Erradamente entenderam alguns, que nossas condições fossem idênticas ou mesmo semelhantes às daquelas nações. Basta lembrar que as idéias do sistema político adotado por nossos legisladores constitucionais exprimem na Europa as reivindicações do Terceiro Estado, especialmente da burguesia comercial e industrial, contra a nobreza feudal, a classe dos proprietários. Até certo ponto, é o contrário que se dá no Brasil. São aqui os proprietários rurais que as adotam contra a burguesia mercantil daqui ou do reino.1

Talvez seja esta uma “peculiaridade brasileira” bem próxima da inglesa, no que diz respeito às origens agrárias do capitalismo, e que evidentemente tampouco se “encaixa” no modelo francês.

Aconteceu de um jeito na Inglaterra e de outro no Brasil. Na ilha, disseram Anderson e Nairn, um capitalismo prematuro deu origem a uma burguesia apática æ serva da arcaica tradição aristocrática æ, e a burguesia então deu origem a um proletariado subordinado, sem vocação hegemônica. No Brasil, se diz que um tardio capitalismo se viu construído por um Estado forte, que tomou o lugar da burguesia, porque que esta “falhou” em ser revolucionária. Como resultado, predominou a arcaica tradição oligárquica e o Estado subjugou a classe trabalhadora. Se a mistura capitalista-agrária brasileira não foi única, mas certamente excepcional, e se não há lugar para ela no modelo, o que deve ser mudado é o modelo.

Nota

1 PRADO, Caio, Evolução política do Brasil: Colônia e Império. São Paulo: Editorial Brasiliense, 1999, p. 54.

María Verónica Secreto – Departamento de História-UFC.

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