10 Lições sobre Gadamer – KAHLMEYER­-MERTENS (ARF)

KAHLMEYER­-MERTENS, Roberto S. 10 Lições sobre Gadamer. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 2017. Resenha de: SILVA, Claudinei Aparecido de Freitas da. Aufklärung – Revista de Filosofia, João Pessoa, v.4, n.1, p.187-­192, jan./jun. 2017.

Não é tarefa simples rastrear um percurso filosófico, sobretudo, quando suas sendas, uma vez abertas, conduzem o leitor floresta adentro no intuito contingente de enredar­-se em seus mistérios. Tal é a experiência de pensamento que uma obra do porte da de Hans­- Georg Gadamer (1900­-2002) lega a seu intérprete. É, pois, assumindo, um peculiar exercício hermenêutico que10 Lições sobre Gadamerbrinda o público de língua portuguesa na já consagrada Coleção 10 Lições da Vozes. O autor, Roberto S. Kahlmeyer-­Mertens, que assinara pela mesma série,10 Lições sobre Heidegger (2015), novamente leva a bom termo tal projeto. Afinal, quais seriam, em seu quadro geral, as Lições perseguidas por esse pioneiro e notável estudo introdutório sobre Gadamer?

Na Primeira Lição, “Quem é Gadamer?”, Mertens sumariza a gênese do pensamento gadameriano, destacando suas influências de formação, bem como sua fecundidade intelectual. Gadamer é revivido desde a juventude quando, acercado por Paul Natorp, travaria contato, já no início dos anos 1920, com Heidegger. Malgrado os encontros e desencontros com o autor de Ser e Tempo 1927), fato é que Gadamer jamais deixará de reconhecer a força inspiradora desse projeto acalentado na segunda década. Quer dizer: o magnetismo da fenomenologia e, particularmente, a estreita verve hermenêutica do programa heideggeriano exercerá, de maneira intrépida, uma atração distintiva no itinerário gadameriano. Como avalia Mertens (p. 28), “a vocação hermenêutica de Gadamer, inicialmente, cultivada por Heidegger é algo que se reaviva”. Outro aspecto, porém, não se perde de vista no curso dessa primeira lição: a posição política do jovem filósofo. É o que se pode avaliar por conta da ascensão do partido social nacionalista, nos anos 1930, na Alemanha. É certo que Gadamer buscou resguardar-­se em relação a isso, adotando uma postura mais prudencial, tanto no sentido de não colaborar com o regime quanto em não resistir como um “intelectual engajado”. Ele, antes, preferiu recolher­se, dedicando­-se, exclusivamente, ao magistério, em que pese, à época, os ossos do ofício. Vale, contudo, observar, mostra Mertens (p. 32), que, “em Leipzig, Gadamer desenvolveu até seminários sobre Husserl (desobedecendo à proibição oficial de estudar autores de origem semita), sem que fosse incomodado pelo patrulhamento ideológico do partido”. De todo modo, o que chama atenção é o fato de que, malgrado tais tempos bicudos, Gadamer se envolve em inúmeros projetos acadêmicos: em 1953, funda, com Helmuth Kuhn, a Revista Philosophische Rundschau. Ele também presidirá a Sociedade Alemã de Filosofia além de tornar­se, membro da Academia de Ciências de Heidelberg. Nos anos cinquenta e sessenta, o filósofo edita sua magnum opus:Verdade e Método (I e II)na qual advoga a tese de que “a hermenêutica nasce da práxisdialógica” (Gadamer apud Mertens, p. 39).

A fim de melhor situar esse princípio nuclear faz-­se necessário que passemos às lições seguintes. Na Segunda Lição,“Hermenêutica como a ‘coisa de Gadamer’”, Mertens restitui o estatuto proeminentemente hermenêutico da obra gadameriana. Para tanto, lembra que existem vários modelos hermenêuticos como o da escola de Schleiermacher, passando por Dilthey até chegar Heidegger. É notável que o movimento hermenêutico iniciado no século XIX é regido sob o signo da filologia como um instrumento de exegese que atraíra, inclusive, historiadores, juristas e teólogos. Dilthey, p.ex., encontrara nesse expediente metódico, uma ocasião oportuna para pensar o projeto de fundamentação das ciências do homem então emergentes. Mais que um simples filólogo, ele se via como um “teórico do método” como bem repara Gadamer; método esse fundado na distinção entre “explicar” (específico das ciências naturais) e “compreender” (próprio das ciências do espírito”). Não obstante, essa “arte da compreensão” permanece restrita, ainda, a um tradicional ofício filológico. Por isso, o salto vigorosamente filosófico tem ­se início com a fenomenologia. A figura de Heidegger, sob esse prisma, se torna, de fato, programática, à medida que, como diz Mertens (p. 48): “O autor de Ser e Tempo está circunspectamente comprometido com a questão do sentido do ser; não seria, portanto, em outro âmbito que a hermenêutica compareceria […]Com a hermenêutica da facticidade, nosso fenomenólogo se apropria da ideia de compreensão, enraizando-­a na vida fática enquanto contraposição a uma atividade abstrata e teórica”. Apesar de a compreensão exprimir, em termos heideggerianos, um existencial revestindo­-se de um caráter ontológico radicado na pergunta pelo sentido, o que temos é uma “filosofia hermenêutica, uma hermenêutica fenomenológica, mas que ainda não preenche a qualificação de uma hermenêutica filosófica propriamente dita” (p. 50). Esse alcance só sedará, efetivamente, com Gadamer que “tem em vista o acontecimento da compreensão e o horizonte de possibilidade da interpretação que apenas é possível a partir de tal acontecer” (p. 53). Ora, é precisamente tal aspecto agora visado que diferencia a hermenêutica de Gadamer como uma “coisa” peculiarmente sua, conforme a expressão de Heidegger. Com isso, é possível, enfim, compreender o elemento dialógico da hermenêutica. Com a palavra, Mertens (p. 53­54): “Uma hermenêutica filosófica, assim é distinta das outras, pois, tendo descoberto a linguagem como o terreno da experiência ontológica fundamental, se lastreia nessa experiência linguística ­viva desde a qual o ser­ no ­mundo compreende a si mesmo”. Como observaria Heidegger, a propósito: “esse traço filosófico se tornou um bom contrapeso à filosofia analítica e à linguística” (Heidegger, apud Mertens, p. 43). A visada de Gadamer se projeta, precisamente, aí: ele reconhece no fenômeno da linguagem (e, portanto, do diálogo) uma dinâmica onde reside a dimensão ontológica mais profunda de todo compreender.

É assim que a Terceira Lição reorienta o debate. Intitulando-­se,“Método, compreensão e acontecimento”, Mertens ressalta que essa nova “hermenêutica” é bem mais que uma simples metodologia aplicável; ela,rigorosamente,seinstituicomouma“doutrina­do­compreender”,transfigurando, por meio da linguagem, sua fundação ontológica originária. É preciso ver que Gadamer não desconsidera jamais a importância do método. Tanto é que ele próprio situa sua hermenêutica como uma teoria, uma doutrina, fazendo notar que “a verdade (que sustenta o fenômeno da compreensão e aideia das ciências humanas) não é apenas questão de método” (p. 61). A ideia de método difere, substancialmente, da acepção naturalista, clássica, por definição desvelando que o “acontecer é operante em toda compreensão”. Um dos melhores exemplos disso vem à luz na Quarta Lição.

Nessa, intitulada “Jogo da arte, jogo da compreensão”, Mertens discute um ponto de pauta na nova agenda hermenêutica: o fenômeno da arte e do jogo (Spiel). Com qual intenção Gadamer recorre à arte? “Para evidenciar o caráter de acontecimento da verdade do compreender” (p. 67). É que a arte não se dobra à racionalidade científicatout courttal como Merleau-­Ponty precisara em O Olho e o Espírito. Diferentemente do cientista que “manipula”, nota o fenomenólogo francês, o artista “habita” o mundo, se lançando num “lençol desentido bruto”, num “há prévio”, sem nenhum dever de apreciação. Ele vive, habita o acontecimento! Gadamer parece não só estar cônscio disso, mas, sem qualquer pretensão de elaborar uma teoria estética, quer pensar, em sua estrutura íntima, a experiência da obra de arte como uma dimensão sui generis. É nesse sentido que o jogo passa a exercer um papel especial. O hermeneuta alemão compreende que entre arte e jogo há uma relação recíproca. Há todo um movimento de vaivém, ou se, quiser, dialético no fenômeno lúdico, desconstruindo, pois, toda relação de conhecimento do tipo clássico: sujeito/objeto. A compreensão da verdade nesse acontecimento único “só se cumpre quando o jogador se abandona completamente ao jogar” já que “todo jogar é um jogado” (p. 72). É essa dinâmica, aquém e além de todo subjetivismo ou objetivismo que torna o jogo uma forma especial de arte, imprimindo o ritmo de uma significação sempre aberta, dado o seu caráter imprevisível. Sob esse espectro, impossível não ver, em tais formulações, presenças impactantes não só de Huizinga em seu Homo Ludens, mas tambémde F. J. J. Buytendijk, em Essência e sentido do Jogo, Wittgenstein em Investigações Filosófica se Eugen Fink, em O Jogo como Símbolo do Mundo. Este último considera, portanto, que o “homem que joga não pensa e o homem que pensa não joga” (p. 73).

A Quinta Lição, “Preconceitos, autoridade, tradição”, situa outra temática cara ao pensador alemão. Ele pretende melhor delinear o movimento hermenêutico resguardando a autoridade da tradição e o recurso prévio dos pressupostos ou preconceitos que a funda. Eliminando qualquer depreciação de cunho moral, tais preconceitos são inerentes a um contexto específico no qual toda compreensão se anuncia. O que significa que dependemos sempre de uma “pré­compreensão” quando se trata de se situar “num terreno aberto pelo projeto do ser que somos ao ‘aí’ do mundo” (p. 78). É nesse “espaço de jogo” que se transfigura o horizonte hermenêutico propriamente dito. Observa Gadamer (ApudMertens, p. 85): “sempre intervém, em nossa compreensão, pressupostos que não podem ser eliminados […]. A compreensão é algo mais que a aplicação artificial de uma capacidade. É sempre também o atingimento de uma autocompreensão mais ampla e profunda. Isso, porém, significa que a hermenêutica é filosófica e, enquanto filosofia, filosofia prática”. Ademais, Gadamer se reporta à noção de autoridade removendo nela toda conotação, à primeira vista, moralmente impositiva ou conservadora. Trata­-se de reconhecera autoridade de saberes e de tradições (como a retórica, filosofia prática, hermenêuticas jurídica e teológica) que se engendram a partir desses preconceitos na contramão, p. ex., do racionalismo esclarecido do séc. XVIII.

Uma vez postos esses elementos estruturantes, Mertens revisita outra categoria- chave para pensar, em termos gadamerianos, o projeto hermenêutico. É o que aborda aSexta Lição,“A história das repercussões e sua consciência”. Trata­-se da assim denominada Wirkungsgeschichte, isto é, a história das repercussões. Do uso desse conceito, Gadamer entende que, em regra, “as compreensões, ao serem transmitidas, contam com preconceitos fáticos que (por serem também históricos) exercem seus influxos sobre novas compreensões e interpretações” (p. 94). Afinal, que “história” seria essa? “Uma história das posições e dos caminhos que as compreensões assumem no horizonte da tradição e da maneira como elas, uma vez interpretadas, logram sua posteridade” (p. 94). Não há, fundamentalmente, como ignorar a história e seu trabalho tácito no seio da tradição: a história é, a um só tempo, um horizonte aberto. Por isso, a verdadeira consciência histórica como exigência hermenêutica, inscreve Gadamer (Apud Mertens, p. 98), “é algo distinto da investigação da história”. O que mostra que inexiste imparcialidade nesse processo uma vez que “toda e qualquer compreensão sempre acontece embebida na história” (p. 100). O fato último é o de que nossa consciência histórica é, desde sempre, circunstanciada, lançada na finitude como acontecimento.

A Sétima Lição, “Circularidade, fusionalidade e dialogicidade” reúne três outros aspectos fundantes desse projeto filosófico. O primeiro é a noção de “círculo hermenêutico” que, como esboça Gadamer, consiste num “movimento de compreensão que se dá no conjunto para a parte e, novamente, para o conjunto” (Gadamer Apud Mertens, p. 106). O que se revela aí é um processo global de sentido; processo esse que leva em conta a experiência existencial do tempo. Tal como em Heidegger, o tempo é o que funda todo acontecimento descortinando uma “fusão de horizontes”. Este é o segundo aspecto. Como explicita Mertens (p. 111): “horizonte é a estrutura de base que, consolidada na chave de posições, visadas e conceptualidades prévias, se alarga e se refina significativamente em cada novo projeto compreensivo”. Em razão disso, “todo compreender se dá como fusão de horizontes” (p. 112). O terceiro aspecto é o diálogo. Gadamer reconhece na dialética do perguntar e do responder o caráter essencial da linguagem compreendida via a dinâmica peculiar do jogo como arte. É essa espécie de um “logos compartilhado” que se anuncia como componente ontológico e, portanto, originário do experimento hermenêutico.

A Oitava Lição, “Hermenêutica e ontologia da linguagem” se destina a aprofundar o sentido e alcance desse logos. Para tanto, Mertens reconstitui, a partir de Verdade e Método, duas teses capilares: a primeira, de que “não há compreensão fora da linguagem” (p. 126). Para além, pois, de todo nominalismo, essencialismo ou positivismo lógico, a obra de Gadamer acentua o caráter originário da linguagem como inseparável de uma experiência hermenêutica. A alusão à metáfora de que vivemos na linguagem assim como o peixe na água em muito lembra a experiência sentida pelo escritor, seja ele romancista ou poeta. É por meio desse gesto que Clarice Lispector pressentira o caráter contingencial ou indigente da linguagem visto por certa tradição canônica como algo desprovido de qualquer brio ontológico. A segunda tese, complementar à anterior, é a de que “o próprio objeto da compreensão é linguístico” (p. 129). Compreensão e linguagem se mesclam numa só experiência. Ao postular esse princípio parece claro que Gadamer se afasta, consideravelmente, de uma crítica que se tornou lugar comum, qual seja, a de advogar um idealismo linguístico, já que “não é o ser da totalidade que interessa a Gadamer, mas o ser do que pode ser compreendido na linguagem”(p. 132).

Em “Filosofia prática e hermenêutica”, o leitor é conduzido à Nona Lição. Neste instrutivo estudo, percebemos o interesse gadameriano com a filosofia prática tendo, em Aristóteles, uma fonte digna de interpretação. A prioridade da práxis, tão bem acentuada por Gadamer, sugere um passo a mais que o estágio de uma consciência ético ­política, situando-­se, na verdade, num nível decididamente hermenêutico. Como corrobora o pensador alemão, trata-­se “de uma atitude teórica frente a práxis da interpretação, da interpretação de textos; porém, também das experiências interpretadas neles e nas orientações domundo” (Gadamer, Apud Mertens, p. 147).

Na Décima Lição, “Em campo contra Gadamer”, Mertens contextualiza algumas críticas de que fora alvo nosso pensador alemão. Uma das mais conhecidas é a provinda de Habermas que teria diagnosticado em Verdade e Método certo “conservadorismo” ou, ainda, uma boa dose de “relativismo”. O ponto nevrálgico da hermenêutica gadameriana residiria no reconhecimento da tradição e no argumento da autoridade como sinais incontestes de uma forma de filosofia que permanece arraigada ao racionalismo oitocentista. Trata-­se de um dogmatismo canônico em que Gadamer não teria inteiramente se libertado. Ao mesmo tempo, em sua réplica, Gadamer jamai sabre mão da atividade crítica, tão fortemente cobrada por Habermas. A hermenêutica não faz apologia à tradição em favor de preconceitos ilegítimos. Ela apenas parte do pressuposto de que não há subjetivismo e que toda compreensão não existe sem preconceitos, desde que estes sejam, é claro, legitimáveis.

Enfim, o livro encerra com um oportuno balanço não só sobre as lições precedentes, mas acerca de um espectro mais amplo em torno desse insigne mestre que é Gadamer, cuja obra impacta, indelevelmente, o cenário contemporâneo das ideias. Aqui, o leitor menos familiarizado terá, especialmente, em primeira mão, um retrato vivo e pujante de um dos projetos filosóficos mais densos e fecundos que tem justo na figura de Hermes uma fonte da mais alta inspiração helênica.

Claudinei Aparecido de Freitas da Silva – Professor dos Cursos de Graduação e de Pós­Graduação (Stricto Sensu) em Filosofia da UNIOESTE – Campus Toledo com Estágio Pós­Doutoral pela Université Paris 1 – Panthéon­Sorbonne (2011/2012). Escreveu “A carnalidade da reflexão: ipseidade e alteridade em Merleau­Ponty” (São Leopoldo, RS, Nova Harmonia, 2009) e “A natureza primordial: Merleau­Ponty e o ‘logos do mundo estético’” (Cascavel, PR, Edunioeste, 2010). Organizou “Encarnação e transcendência: Gabriel Marcel, 40 anos depois” (Cascavel, PR, Edunioeste, 2013), “Merleau­Ponty em Florianópolis” (Porto Alegre, FI, 2015), “Kurt Goldstein: psiquiatria e fenomenologia” (Cascavel, PR, Edunioeste, 2015) e Festschrift aos 20 anos do Simpósio de Filosofia Moderna e Contemporânea da UNIOESTE (Cascavel, PR, Edunioeste, 2016). E-mail: [email protected]

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Ontologia e dramma: Gabriel Marcel e Jean Paul Sartre a confronto – ALOI (ARF)

ALOI, Luca. Ontologia e dramma: Gabriel Marcel e Jean Paul Sartre a confronto. Prefácio de Franco Riva. Milano: Albo Versorio, 2014. Resenha de: SILVA, Claudinei Aparecido de Freitas da. Ontologia e drama: Gabriel Marcel e Jean Paul Sartre em tête-à tête. Aufklärung – Revista de Filosofia, João Pessoa, v.3, n.1, p.171-­174, Jan./jun. 2016.

Se há dois autores em que, filosofia e teatro harmoniosamente se mesclam, é Gabriel Marcel (1889­1973) e Jean ­Paul Sartre (1905­1980). Ambos transfiguram, no cenário da cultura contemporânea, um estilo realmente único para não dizer paradigmático de interrogação da condição humana. E isso, seja ao advogar as próprias teses, seja ao dar vida aos seus personagens. Partilham, em grande medida, das questões candentes que, peremptoriamente, assolariam, de maneira crucial, um momento decisivo na história do século passado: o período entre­guerras. Aliás, para eles, a guerra jamais fora um evento geopolítico circunscrito, apenas, numa escala de interesses macro­econômica. Ao contrário, a guerra assume, do ponto de vista, sobretudo, fenomenológico, um agenciamento próprio como questão, o que se torna ,pois, evidente, tanto em virtude da atividade filosófica quanto da multifaceta da produção estética (dramatúrgica, literária, musical) que um e outro dão vazão em suas reflexões. Nesse contexto, o legado deixado por suas obras é, indiscutivelmente, de um valor teórico­-literário emblemático. Fato é que, muito embora Sartre tenha sido uma figura que “roubara a cena” intelectual de então (sem falar de sua carismática personalidade política que, midiaticamente, passa cobrir parte expressiva da segunda metade de século), nem por isso, a presença de Marcel deixa de ocupar um espaço pujante e decisivo. Este último é um autor que também terá o seu público e os seus leitores. Cabe atentar, antes de tudo, que ele é um mestre de cuja inspiração afeta toda uma geração de intelectuais do porte de Merleau- ­Ponty, Ricœur, Lévinas, e, é claro, o próprio Sartre. É Marcel, por exemplo, quem põe na ordem do dia, pela primeira vez, a noção de engajamento como signo de um debate que marcaria, para sempre, o espírito da época; espírito este encarnado numa nova forma de se fazer filosofia: uma filosofia “militante” embebida no “concreto”. Trata-­se de um modus operandi que toma corpo como estilo único de reflexão instituindo, pois, em solo francês, uma nova tradição de pensamento: a tradição fenomenológico­existencial.

É esse panorama mais geral que Luca Aloi abre emOntologia e dramma:Gabriel Marcel e Jean­Paul Sartre a confronto. Com Prefácio de Franco Riva, editado em 2014 pela Albo Versorio de Milão, o livro transcende qualquer quadro meramente comparativo ou descritivo. Ele se propõe, antes, como incisivamente provocativo. O autor traz à cena as figuras de Marcel e Sartre como expressões de um alquímico experimento na seara da tradição em questão. Partindo de tal registro, Aloi põe na balança, dois pesos e duas medidas dessa viva e fértil cultura intelectual do século XX: uma herança, ainda, por ser mais bem inventariada. Nessa retrospectiva, o trabalho de Aloi reaviva o caloroso colóquio entre os dois pensadores travado num momento efervescente das mais variantes posições.

Em regra, malgrado a complexa análise de conjuntura balanceada nesse trabalho de fôlego, Aloi incita, no calor da discussão, um verdadeiro “fogo cruzado” que se propaga em múltiplas “labaredas”. Cada capítulo do livro é como uma “lenha na fogueira” a mais … A primeira chama já é acesa com a insidiosa polêmica de O Existencialismo é um Humanismo?, de 1946; conferência em que Sartre, deliberadamente, alcunha o termo existencialismo não só à própria obra, mas a um circuito mais amplo de autores. A repercussão do texto que simbolicamente ressoa mais como um manifesto tem, de imediato, uma recepção nada simpática por parte daqueles que são associados à signatária terminologia como Jaspers, Heidegger e o próprio Marcel. Este, veementemente, protesta, julgando que “o pensamento existencial degenera em existencialismo” (Marcel, La dignité humaine. Paris: Aubier, 1964, p. 10), tomando ainda partido, ao lado de Heidegger, contra o professo “humanismo” sartriano. Isso tudo, sem falar de sua indiscreta ojeriza a certas aderências lexicais como é o caso dos “ismos” comumente sufixados em muitas posições teóricas ou ideológicas. No fundo, essa querela deflagraria apenas a ponta de um iceberg cuja camada contém, por certo, dimensões maiores. Aloi “quebra o gelo” ao situar Marcel e Sartre como autores, em radical dissenso, o que desde já, também sela o que será a tônica do pensamento concreto em curso: seu caráter dissidente, multiforme e, por isso mesmo, heterodoxo.

Não há, portanto, como permanecer indiferente, retrata Eloi, a essa “constante frequentação polêmica com Sartre” (2014, p. 17). A próxima lenha na fogueira agora é o solipsismo. Será que Sartre realmente o supera? Ora, a sua posição tem sido, por vezes, manifesta: “meu pecado original é a existência do outro”, escreve em L’ Être et le Néant.Paris: Gallimard, 1943, p. 321. O outro, enquanto olhar, se torna “minha transcendência transcendida” (Ibidem) sendo, pois, a própria “morte oculta de minhas possibilidades” (Idem, 1943, p. 323). Ele é, ao mesmo tempo, “como todos os utensílios, um obstáculo e um meio. Obstáculo, porque o obrigará, certamente, a nova sações (avançar sobre mim, acender sua lanterna). Meio, porque, uma vez descoberto em um beco sem saída, ‘sou capturado’” (Ibidem). Em tais condições, “já não sou dono dasituação” (Ibidem): a aparição do outro desvela um aspecto não desejado por mim. É esta contingência que constitui, horrorosamente, “a parte do diabo” (Idem, 1943, p.324): ela me expõe à angústia inalienável, diante da qual, “o inferno são os outros” (Idem,Huis Clos. Paris: Gallimard, 1945, p. 122). Desse modo, “pelo olhar do outro, eu vivo como que fixado no meio do mundo, como em perigo, numa situação irremediável” (Idem, 1943, p. 327). Trata-­se de um “perigo” que me ronda perpetuamente: “o outro está presente agora por toda parte, debaixo e acima de mim” (Idem, 1943, p. 336). Em face dessa incômoda presença, será preciso, diversamente de Husserl, que “o outro não deve ser procurado primeiro no mundo, mas, sim, do lado da consciência” (Idem, 1943, p. 332). Ora, uma vez posto nessa relação lateral, cartesianamente imputada, “é curioso observar o quanto o pensamento de Sartre tende a fechar-­se num perfeito solipsismo”, avalia Marcel (Le déclin de la sagesse. Paris, 1954, p. 67). Nessa doutrina, outrem se reduz ao nível de um problema: a alteridade é captada sob o olhar medusado de um ego nadificante, objetivante. É preciso avançar para além dessa premissa monolítica e petrificante, realocando, pois, a intersubjetividade para outro plano, abdicado por Sartre: o da situação humana, in concreto. Marcel, então, inflama o debate: a possibilidade da percepção de outrem se transfigura como mistério. Outrem é mistério porque nele e com ele estou inexoravelmente engajado, numa só participação ontológica. Disso resulta a premente necessidade de despaginar o luciférico capítulo sartriano, parodiando-­a inversamente: “o inferno é o eu” (Aloi, 2014, p. 110). Afinal, “ser é ‘ser com’, existir é ‘co-­existir’” (Apud Aloi, 2014, p. 139); coexistência que atesta “o mundo como dimensão intersubjetiva originária” (Aloi,2014, p. 142).

É partindo desse argumento que o tema da liberdade toma forte impulso. Tal como uma brasa viva, a lenha da liberdade inflama outro confronto à queima-­roupa entre os filósofos. No frigir dos ovos, qual o problema? O ideal sartriano da liberdade como negatividade. Esse ideal, solipsista por princípio, é o que assenta a radical impermeabilidade entre o ser e o nada, deflagrada pelo caráter inerentemente negativo da existência. Disso emana uma noção niilista de liberdade, sintomaticamente cara a Sartre: o homem está, em absoluto, condenado a ser livre. Eis, em prima facie, o “mito central do sartrismo: uma liberdade edificada no nada” (Aloi, 2014, p. 46). É que, para Sartre, “estamos condenados a ser livres; a liberdade é o nosso destino, é a nossa servidão, mais que a nossa conquista […]. Ela é aqui concebida a partir de uma falta, não de uma plenitude” (Marcel,Homo viator. Paris: Association Présence de GabrielMarcel, 1998, p. 231). Trata-­se de uma “falta” que, “do ponto de vista do cogito, é consciência (de) falta” (Ibidem). Assim, mais uma vez, chega­-se a outro beco sem saída, como nota Aloi (2014, p. 40): “A minha liberdade se encontra com outra liberdade no signo da negação e da limitação recíproca: a natureza das relações entre eu e outrem se revela como intrinsecamente conflituosa”. O que esperar, para além dessa teoria do conflito? Outro modo de existência livre, ou seja, uma liberdade situada, imersa, originariamente, na própria abertura ao mundo e a outrem. Por isso, a referida “liberdade que defendemos in extremis, não é uma liberdade prometeica, não é a liberdade de um ser que seria ou que pretendia ser para si” (Marcel, Les hommes contrel’humain. Paris: Editions Universitaires, 1991, p. 151), mas “uma liberdade que seinsere na trama mesma de nossa existência” (Idem, 1964, p. 183).

Posto isso, o ponto de fricção com Sartre mal parece ainda ter fim. Ademais, é a candente questão do engajamento que passa a arder em chamas. Em sua produção literário-­dramatúrgica, Sartre acentua o caráter infundado e absurdo da existência. Como em A Náusea, a contingência radical permanece um ideal irrealizável, um objetivo completamente fora de alcance. Na contramão dessa tese, Marcel, uma vez mais, toma partido, optando por outra via: a de uma “fenomenologia da esperança”. Oque é a esperança? Ela é interrogada a partir de seu enraizamento e transcendência. “A esperança não tem, portanto, nada a ver com um otimismo de matriz ‘iluminista’”(Aloi, 2014, p. 101), ou, o que é pior, uma atitude passivamente estática. Ela é “tensão contínua”, “exposição, risco, impulso” (Aloi, 2014, p. 109), inflamando-­se, pois, na militância do concreto, isto é, em meio à itinerância humana; aquela do homo viator conforme metaforiza Marcel pondo a nu, visceralmente, o que o discurso filosófico é incapaz, de per se, expor. Aqui, sem maiores cerimônias, a criação dramática e a práxisfilosófica se solicitam. O ontológico se fenomenaliza. Entre o “ser” e o “aparecer” desconstrói­-se qualquer distinção ou sobreposição. Como na ágora grega, o discurso se inflama tragicamente, maieuticamente. O teatro se torna o solo, o húmus desde onde a reflexão se prepara e se cultiva. O drama é esse experimento, por excelência, que perfaza comunhão viva na qual se radica toda participação, todo engajamento, toda ação. Sartre avançara em seu projeto, mas, em virtude do recalcitrante cartesianismo, permanecera ainda prisioneiro de uma forma de humanismo, egologicamente, centrada. Ora, é tal humanismo que põe em risco a própria noção de engajamento, deixando ao sabor dos acontecimentos o sentido último da ação, imputada por certa cartilha ou plataforma político­-ideológica. Marcel vira o jogo: é preciso fazer a passagem do “espírito de abstração” (excludente, por princípio) para outro nível: o da participação ontológica (em rigor, inclusiva).

Afora essas discrepâncias teóricas, um dos aspectos retratados pelo livro de Aloi é o fator de impacto da produção dramatúrgica tanto de Marcel quanto de Sartre. A projeção sartriana, nesse quesito, é, sem dúvida, patente, o que, por outro lado, cabe observar que “Marcel realiza uma intensa atividade de leitor e crítico teatral […] sem jamais deixar de reconhecer os méritos de Sartre como dramaturgo de quem, inclusive, elogia um talento extraordinário” (Aloi, 2014, p. 71). Se Marcel poupa a arte dramática de ser dogmática, apologética ou um “teatro de tese”, é para salvaguardar o que de mais reside nesta de real e de concreto. Um teatro de tamanho peso jamais se furta ao trágico. É essa lição que a criação estética de ambos revela, extraordinariamente, de catártico. O drama desvela o seu ardil: via o personagem, toca-­nos intimamente, ontologicamente. Atrama dramática inflama profundamente, pondo o dedo na ferida de nossos personalismos, narcisismos, misticismos. Essa é a razão pela qual o trabalho de Aloi também não ignora o lugar do dramaturgo como tema constante da reflexão de Marcel. O intérprete italiano mostra o quanto, para o pensador francês, o autor deve­-se cuidar para não intervir de maneira invasiva em seus personagens. Ao diretor, digno desse nome, convém manter, tão somente, certa “presença de ausência”, sem deixar de ser perspectivista ou de promover pontos de vista múltiplos.

Afinal, se o livro de Aloi é “incendiário” é porque, no fundo, ele também seja, propositivamente, heraclitiano. Como a filosofia, o teatro também enuncia um logos, um fogo vivo que não se apaga. O que o leitor presencia aí é um fogo ateado, a quatro mãos sem, no entanto, prescindir de suas origens gregas. Sob esse prisma, longe de ser uma simples aventura piromaníaca, Ontologia e drama exerce, com primor, uma práxis paradoxal: ao mesmo tempo em que tudo consome, como no fogo de Heráclito, tudo renova. A noção de “confronto” cotejada no subtítulo da proposta exprime bem não só uma dissonância, mas uma consonância digna de audiência. Como bem adverte seu autor, “esse confronto não fornece da relação Marcel ­Sartre uma interpretação excessivamente rígida e esquemática […] haja vista a sua complexidade interna” (Aloi,2014, p. 100); complexidade que, para além de uma “guerra dos opostos”, põe em cena uma harmonia essencial que faz do filosofar e da dramaturgia dois gestos concêntricos.

Claudinei Aparecido de Freitas da Silva – PósDoutor em Filosofia. Professor dos Cursos de Graduação e de PósGraduação (Stricto Sensu) em Filosofia da UNIOESTE – Campus Toledo, com Estágio PósDoutoral pela Université Paris 1 – PanthéonSorbonne (2011/2012). Escreveu “A carnalidade da reflexão: ipseidade e alteridade em Merleau-Ponty” (São Leopoldo, RS, Nova Harmonia, 2009) e “A natureza primordial: Merleau-Ponty e o ‘logos do mundo estético’” (Cascavel, PR, Edunioeste, 2010). Organizou “Encarnação e transcendência: Gabriel Marcel, 40 anos depois” (Cascavel, PR, Edunioeste, 2013), “MerleauPonty em Florianópolis” (Porto Alegre, FI, 2015) e “Kurt Goldstein: psiquiatria e fenomenologia” (Cascavel, PR, Edunioeste, 2015). E-mail: m@itlo: [email protected]

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