Entre a razão e a experiência: ensaios sobre tecnologia e modernidade – FEENBERG (FU)

FEENBERG, Andrew. Entre a razão e a experiência: ensaios sobre tecnologia e modernidade. Tradução, ensaios e notas adicionais de Eduardo Beira com Cristiano Cruz e Ricardo Neder. Vila Nova de Gaia, Portugal: Inovatec, 2019. Resenha de: SZCZEPANIK, Gilmar Evandro. Filosofia Unisinos, São Leopoldo, v.21, n.1, p.124-126, jan./abr., 2020.

Trata-se de uma importante obra filosófica escrita em forma de ensaios sobre tecnologia e modernidade. A obra, publicada originalmente em 2010 pela MIT Press, ganhou uma versão em português de Portugal em 2019 cuja tradução foi realizada por Eduardo Beira, Cristiano Cruz e Ricardo Neder, que acrescentaram três ensaios introdutórios e esclarecedores àqueles ainda não familiarizados com os pressupostos filosóficos do autor. Os tradutores e ensaístas fornecem algumas chaves de leitura que são imprescindíveis para uma adequada compreensão dos pontos apresentados. Chama a atenção, por exemplo, que Feenberg desenvolve uma análise filosófica sob uma perspectiva crítica que, por sua vez, se distancia de uma abordagem pessimista, determinista e catastrófica da tecnologia. Embora sua concepção de tecnologia não seja tecnofóbica, o autor também não pode ser considerado um otimista ingênuo que tende a ficar encantado com as fartas maravilhas fornecidas pelo desenvolvimento tecnológico. Em vez de ficarmos inertes e/ou apartados do desenvolvimento dos novos projetos tecnológicos, somos incitados a participarmos das mais diferentes formas, pois, para Feenberg, a tecnologia não pode ficar restrita apenas aos tecnocratas; ela precisa ser democratizada e novos atores devem ser incluídos no processo de gestação, criação e desenvolvimento de novas tecnologias. Além disso, são apresentados a teoria da dupla instrumentalização e os elementos constitutivos da racionalidade sociotécnica. Trata-se de uma abordagem bastante ajustada e inspiradora que tranquilamente pode ser utilizada para pensarmos e compreendermos as relações entre ciência, tecnologia e sociedade no Brasil e na própria América Latina. A obra encontra-se dividida em três partes, sendo que cada uma delas contém três ensaios. Tais partes são precedidas por um prólogo de Brian Wynne e, ao final delas, há um posfácio de Michel Callon. Passo agora a apresentar as partes que compõem a obra de modo mais sistemático.

A primeira parte da obra é chamada de “Para além da distopia” e é composta de três capítulos, cujos títulos são: i) racionalização democrática: tecnologia, poder e liberdade; ii) paradigmas incomensuráveis: valores e ambiente; e iii) daqui a cem anos, revendo o futuro: a imagem variável da tecnologia. No primeiro capítulo, Feenberg (2019, p.27) “apresenta os temas centrais deste volume: distopia e democracia, a dupla dimensão – técnica e social – da democracia, a reforma ambiental dos sistemas técnicos e a contribuição do construtivismo social para a filosofia da tecnologia”. Além disso, combate tanto o determinismo tecnológico quanto o determinismo econômico, mostrando que o projeto da sociedade é politicamente contingente. Utilizando-se de exemplos históricos (p. ex., trabalho infantil, a regulamentação das caldeiras, etc..), o autor demonstra a ambivalência dos projetos técnicos e defende que a democratização da tecnologia não se resume à democratização do acesso aos bens de consumo, mas envolve necessariamente uma efetiva participação nas decisões tecnológicas. No segundo capítulo, Feenberg recusa a versão do ambientalismo pautado em trocas compensatórias, pois não acredita que seja possível e/ou adequado lidarmos com questões ambientais tendo como pano de fundo a relação entre custo e benefício. Como é característico de sua postura reformista e/ou reprojetista, Feenberg julga necessário incorporar valores sociais e ambientais em futuros códigos técnicos, sendo preciso até mesmo, em muitos casos, uma regulamentação, pois est a pode fornecer um cenário favorável à economia sem necessitar ainda de uma estratégia compensatória. “Não é o ambientalismo que irá empobrecer a nossa sociedade”, diz Feenberg (2019, p.80). O terceiro capítulo, por sua vez, estabelece uma análise crítica comparativa entre as utopias e as distopias tecnológicas dos séculos XIX e XX que tinham como propósito traçar o destino da humanidade mediado pelas tecnologias. Entretanto, utópicos e distópicos dos séculos passados não conseguiram prever em suas profecias os desdobramentos da moderna tecnologia e, por esse motivo, muitos de seus diagnósticos carecem de verossimilhança.

A segunda parte da obra é intitulada “construtivismo social” e contempla três capítulos (iv, v e vi), chamados, respectivamente: “teoria crítica da tecnologia: uma visão geral”; “da informação à comunicação: a experiência francesa com videotexto” e “tecnologia num mundo global”. No capítulo quatro, o autor parte dos estudos construtivistas da tecnologia para desenvolver sua teoria crítica e procura romper com a imagem de que a tecnologia é uma atividade independente do contexto social no qual ela é gestada e produzida, pois argumenta que os códigos técnicos sistematizam tanto a especificação técnica disponível quanto as exigências sociais. Em outras palavras, os códigos técnicos são estabelecidos pelos valores dos atores dominantes. Assim, compete à teoria crítica explicitar quais os atores e os valores que são predominantes nos projetos tecnológicos, pois as decisões tomadas nesse processo possuem enormes implicações políticas. Para Feenberg, as decisões tecnológicas não podem ser tomadas exclusivamente pelos tecnocratas, pois elas são ações de poder que acabam influenciando, direta e indiretamente, o restante da sociedade. Por esse motivo, faz-se necessário democratizar a tecnologia, e esse processo de democratização somente será possível através da inclusão de novos atores e de novos valores que sejam capazes de pensar para além das capacidades técnicas, abarcando, por exemplo, possíveis consequências sociais, culturais e ambientais.

O capítulo cinco destina-se a descrever de forma pormenorizada a relação entre a máquina e seus usuários a partir da experiência dos franceses com o minitel, uma primitiva rede de computadores que teve seu propósito inicial alterado: de um sistema de busca de dados para um sistema doméstico de bate-papo entre usuários anônimos que identificaram no artefato técnico um canal de paquera e de encontros sexuais. Em linhas gerais, pode-se dizer que o minitel é um dos casos favoritos (juntamente com a proibição do trabalho infantil e a regulamentação das caldeiras) utilizados por Feenberg para demonstrar o aspecto não determinista e construtivista dos projetos tecnológicos.

O sexto capítulo relata o processo de modernização tecnológica ocorrido no Japão, sendo est e um dos primeiros países não ocidentais a se modernizar. Para entender as transformações ocorridas no país do sol nascente, Feenberg recorre a Kitaro Nishida, tido como fundador da moderna filosofia japonesa, que esclarece, de forma pormenorizada, o processo de globalização e as transformações dos hábitos e da cultura japonesa, apontando também para as resistências e para as adaptações pelas quais a ciência e a tecnologia ocidental tiveram de passar para atender as necessidades dos japoneses. Em síntese, pode-se dizer que os valores que orientam as escolhas técnicas ocidentais eram quase imperceptíveis para os pertencentes a est a cultura, mas tornaram-se gritantes e, em muitos casos, incompatíveis quando a tecnologia ocidental chegou ao Japão.

A terceira parte do livro denomina-se “modernidade e racionalidade” e inclui os capítulos vii, viii e ix, cujos títulos são, respectivamente: “teoria da modernidade e estudos tecnológicos: reflexões sobre como os aproximar”; “da teoria da racionalidade à crítica racional da racionalidade” e, por fim, “entre razão e experiência”, capítulo est e que dá nome ao livro. No sétimo capítulo, Feenberg observa que as teorias da modernidade e as teorias da tecnologia realizaram grandes avanços nas últimas décadas, embora ainda permaneçam isoladas, mesmo tratando basicamente dos mesmos objetivos. O grande desafio apresentado pelo autor consiste em encontrar meios e desenvolver estratégias para que esses dois ramos possam se aproximar. O viés cultivado pelo autor para fazer essa ponte consiste na retomada das abordagens hermenêuticas comuns, nas quais “tecnologia” e “sociedade” não pertenceriam a esferas separadas, pois os seres humanos fazem, criam, desenvolvem tecnologias que, por sua vez, ajudam a moldar e a configurar os próprios seres humanos. Trata-se de um processo de “co-construção” tanto dos seres humanos quanto da própria sociedade.

No oitavo capítulo, Feenberg investiga os tipos de racionalidades existentes nas sociedades modernas, estabelecendo uma análise comparativa entre os modelos de racionalidades das sociedades pré-modernas. Ademais, introduz o conceito “racionalidade social” que se encontra fundamentada nos princípios de troca de equivalentes; classificação e aplicação de regras; e, por fim, na otimização do esforço e cálculo dos resultados. Além disso, chama a atenção para a teoria geral da instrumentalização e para os códigos de projeto que se referem à est andardização de sistemas racionais que são duráveis, mas passíveis de revisões devido àsalterações nas leis, nas condições econômicas, nos desejos públicos e no próprio gosto dos usuários e consumidores.

O nono capítulo trata da temática central da obra, a saber, da tecnologia como a aplicação da racionalidade técnica e científica tendo como pano de fundo o mundo da experiência cotidiana. Feenberg destaca que nas sociedades pré-modernas, por exemplo, o domínio do conhecimento e o domínio da experiência eram próximos, enquanto nas sociedades modernas tais domínios se encontram isolados. No intuito de promover uma adequada compreensão da técnica, Feenberg retoma as abordagens da essência da técnica de Heidegger e da transformação da técnica através da est ética de Marcuse para, a partir delas, tecer sua abordagem crítica e democrática em torno da tecnologia.

Em síntese, a presente obra de Feenberg mantém os pressupostos filosóficos de sua abordagem crítica presente em seus textos anteriores e enaltece os aspectos políticos e democráticos envoltos nas tomadas de decisões tecnológicas. Como muito bem observa Callon (p. 321) noposfácio de Entre a razão e a experiência, “não há democracia boa sem democracia técnica! Inversamente, não há boa técnica sem democracia”. Enfim, encontramos em Feenberg uma genuína e fértil reflexão filosófica sobre a tecnologia. Genuína, pois apresenta uma forma original de ver e compreender o processo tecnológico. Fértil, porque lança luzes sobre problemas e questões que ainda permanecem em aberto, desafiando a comunidade filosófica a encontrar respostas adequadas aos desafios suscitados pela tecnologia.

Gilmar Evandro Szczepanik – Professor Adjunto do Departamento de Filosofia da Unicentro/ PR – Universidade Estadual do Centro-Oeste. Guarapuava, PR, Brasil. E-mail: [email protected]

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Filosofia da tecnologia: um convite – CUPANI (P)

CUPANI, Alberto. Filosofia da tecnologia: um convite. Florianópolis: Ed. da UFSC, 2011. Resenha de: SZCZEPANIK, Gilmar Evandro. Principia, Florianópolis, v.16, n. 3, p.505–510, 2012.

A obra Filosofia da tecnologia: um convite, publicada em 2011 pela editora da Universidade Federal de Santa Catariana, apresenta os autores fundamentais e as principais correntes filosóficas que perpassam a filosofia da tecnologia. Além de divulgar o debate filosófico existente em torno da tecnologia de forma convidativa, instiga e desafia a realização de novas pesquisas sobre esse tema ainda pouco estudado no contexto brasileiro. Trata-se de uma das melhores referências sobre a temática existentes em língua portuguesa. A clareza argumentativa com a qual a obra foi escrita permite que pessoas não iniciadas nessa área tenham um entendimento adequado do assunto e pessoas já inseridas na tradição filosófica conheçam a pluralidade e a complexidade dos problemas filosóficos vinculados à tecnologia. Muito mais do que um recorte ou uma simples reconstrução da história da filosofia da tecnologia e de seus problemas, a obra traz um olhar crítico e reflexivo sobre as questões filosóficas despertadas pela tecnologia.

O livro encontra-se dividido em 9 capítulos nos quais são apresentados os principais temas e problemas que permeiam a filosofia da tecnologia. No primeiro capítulo da obra, Cupani enfatiza a complexidade que envolve o estudo filosófico da tecnologia.

As dificuldades iniciam quando os investigadores se propõem a responder a seguinte questão: o que é a tecnologia? Diferentes filósofos profissionais buscaram respostas para essa indagação. Dentre as múltiplas definições e caracterizações existentes sobre a tecnologia, Cupani destaca aquela apresentada pelo filósofo norteamericano Carl Mitcham (1994) que compreende a tecnologia i) como objeto, ii) como conhecimento, iii) como atividade humana e iv) como volição. Além da problemática conceitual, o autor considera que a tecnologia tem implicações filosóficas distintas que repercutem de diferentes formas nas diversas áreas da filosofia. Assim, muitas teses filosóficas desenvolvidas ao longo da tradição poderiam ser repensadas e/ou reavaliadas a partir de ponto de vista tecnológico.

O segundo capítulo é dedicado aos pensadores clássicos da área, como o espanhol José Ortega y Gasset (1939), os alemães Martin Heidegger (1954) e Arnold Gehlen (1949) e o francês Gilbert Simondon (1958), que contribuíram para a consolidação da filosofia da tecnologia como uma disciplina. Cupani apresenta as peculiaridades argumentativas desenvolvidas por cada um deles para fundamentar uma concepção de tecnologia. Apresenta-nos assim, um Ortega y Gasset que concebe a tecnologia como um tipo específico de reforma que o homem impõe à natureza com o objetivo de satisfazer suas necessidades, sejam elas básicas ou supérfluas, pois o homem não quer apenas viver, mas deseja viver bem. Em seguida, expõe de forma precisa o enfoque ontológico e metafísico desenvolvido por Heidegger sobre a técnica, reconstruindo a crítica heideggeriana à concepção antropológica e instrumental da técnica. As ideias do filósofo e sociólogo Arnold Gehlen sobre a tecnologia são apresentadas logo após e Cupani retoma as principais teses relacionadas à ambigüidade da técnica, às relações e semelhanças da técnica com a magia, ao prolongamento técnico dos membros e das capacidades humanas. Por fim, Cupani apresenta a posição do filósofo francês Gilbert Simondon que chama a atenção para a falta de compreensão do mundo tecnológico e a necessidade de se filosofar sobre a técnica. Perspectivas otimistas são contrapostas com abordagens críticas e não-otimistas. Todos os autores apresentados consideram fundamental direcionar o pensamento filosófico à tecnologia.

O terceiro capítulo é dedicado principalmente às ideias do historiador norteamericano Lewis Mumford (1934, 1967 e 1970), um dos mais expressivos estudiosos da filosofia da tecnologia pelo seu viés historiográfico, que esboça uma história do progressivo desenvolvimento tecnológico da espécie humana e analisa o papel que a técnica exerceu na civilização ocidental, apontando diferentes estágios de seu desenvolvimento.

Neste capítulo, Cupani apresenta o interessante argumento de Mumford segundo o qual o relógio (e não a máquina de vapor) é a máquina-chave da era industrial.

Um dos principais pontos deste capítulo está relacionado à compreensão da relação entre o homem e a máquina, pois “vivemos numa civilização da máquina”, diz Cupani, mas seria um exagero considerá-las uma maldição ou a causa de todos os nossos problemas.

No quarto capítulo da obra, nos deparamos com uma abordagem analítica da filosofia da tecnologia fundamentada predominantemente nos escritos do filósofo Mario Bunge (1974, 1985a e 1985b). Um dos primeiros pontos explorados é a distinção entre “técnica” e “tecnologia”. Ambas são caracterizadas pela produção de algo artificial, isto é, de um artefato. No entanto, a primeira designa um controle ou transformação da natureza com elementos pré-científicos e a segunda envolve necessariamente um embasamento científico moderno. O enfoque analítico da filosofia da tecnologia busca compreender a tecnologia como uma atividade planificada, que possui métodos, que utiliza e ao mesmo tempo desenvolve conhecimentos e que é orientada por um conjunto de valores, normas e regras específicas. Neste capítulo, Cupani concede espaço à discussão sobre a distinção entre ciência pura, ciência aplicada e tecnologia. Este debate vem sendo realizado há um longo período, mas as fronteiras entre essas áreas ainda não foram definidas com precisão. Além das linhas demarcatórias serem tênues, há posições alternativas que questionam a viabilidade da manutenção das mesmas. A tecnociência, por exemplo, sustenta que a ciência e a tecnologia encontram-se fundidas de tal modo que é inviável tentar compreendê-las separadamente. Na parte final do capítulo, há duas seções dedicadas as i) questões ontológicas e epistemológicas; e ii) as questões axiológicas e éticas suscitadas pela tecnologia. Desta forma, Cupani demonstra como podemos abordar analiticamente a tecnologia.

Como vimos até aqui, a filosofia da tecnologia comporta diferentes abordagens. A abordagem fenomenológica da tecnologia é desenvolvida no quinto capítulo do livro no qual Cupani discute predominantemente com Don Ihde (1990), Hubert L.

Dreyfus (1992) e Albert Borgmann (1984). O autor ressalta a forma como o filósofo norte-americano Don Ihde i) rejeita a noção de neutralidade científica e o modo como o mesmo ii) explora a relação entre eu — tecnologia — mundo que faz com que a tecnologia deixe de ser compreendida como um instrumento neutro e passe a ser compreendida como “encarnada” ou “incorporada”, interferindo diretamente nas experiências que temos. Em relação ao pensamento de Dreyfus, Cupani reconstrói as críticas do filósofo norte-americano ao programa de Inteligência Artificial (IA) que tinha a ambição de produzir supermáquinas tão ou mais inteligentes que o próprio homem. No entanto, “o nosso risco não é o advento de computadores superinteligentes, mas o de seres humanos subinteligentes” (Dreyfus 1992, p.280). A postura que Albert Borgmann exerce perante a tecnologia é de uma riqueza impressionante, pois ele consegue captar e descrever detalhadamente muitos aspectos que não são percebidos ou valorizados em um enfoque “objetivista”, afirma Cupani. Nesse contexto, a tecnologia é concebida como um modo de vida específico da Modernidade e deve ser compreendida como um fenômeno básico e não como consequência de fatores sociais, econômicos ou políticos. São particularmente interessantes as duas formas de vida humana geradas pelo paradigma das coisas e o paradigma dos dispositivos apresentados originalmente por Borgmann e retomados aqui pelo autor do livro.

O vínculo entre tecnologia e poder é o tema central do sexto capítulo. Nele Cupani recorda que a relação entre tecnologia e poder já tem uma longa tradição dentro do cenário filosófico, mas concentra a sua análise sobre tecnologia e poder nos filósofos norte-americanos Langdon Winner (1986) e Andrew Feenberg (1999) com intuito de explorar as discussões filosóficas mais recentes. O primeiro ficou famoso pela abordagem sustentada em seu prestigiado artigo Do artifacts have politics? no qual concebeu a tecnologia como possível portadora de qualidades políticas, como aquelas que condicionam o modo de vida das pessoas ou aquelas outras que parecem impor condições sociais e estruturas de poder. Se Winner — e seus diversos exemplos — exploram a dominação e o poder que a tecnologia exerce sobre o homem, Feenberg trilha um caminho alternativo, buscando apresentar propostas para resistirmos ao poder exercido pela tecnologia, argumenta Cupani. A forma como essas duas teses são apresentadas, permitem ao leitor — seja ele iniciante ou esteja ele inserido há mais tempo na tradição filosófica — compreender e indagar sobre os possíveis pressupostos políticos que determinados artefatos tecnológicos ostentam ou representam.

A natureza do conhecimento tecnológico é o assunto apresentado no sétimo capítulo do livro. Cupani retoma o pressuposto de que a tecnologia não é apenas um prolongamento da ciência e reconstrói as diversas críticas apresentadas à concepção de tecnologia como ciência aplicada. Além disso, o autor busca apresentar algumas das peculiaridades do conhecimento tecnológico e faz isso utilizando autores como Javier Jarvie (1967), Henryk Skolimowski (1966), Walter Vincenti (1990) entre outros mais. O capítulo apresenta uma interessante comparação entre o conhecimento científico e o conhecimento tecnológico, demonstrando as sutilezas e as peculiaridades que há em cada uma dessas áreas. As questões clássicas relacionados ao conhecimento como “crença verdadeira justiçada” e a (in)viabilidade da manutenção desta concepção também são exploradas.

O capítulo oitavo é reservado à discussão dos impactos que a tecnologia produz nas diferentes culturas. Cupani (2011, p. 187) se propõe a “analisar o modo como os vários autores descrevem as diversas maneiras em que o saber tecnológico e suas produções influenciam a sociedade a que se incorporam, modificando sua cultura e, por conseguinte, a personalidade de seus membros”. Pontos como a supervalorização dos meios em relação aos fins, a universalização das normas técnicas, a mudança na percepção do tempo, a tendência de reduzir o conhecimento à informação, assim como a própria alteração da personalidade são explorados pelo autor. Assim, o autor apresenta um interessante cenário no qual a visão otimista tradicional em relação à tecnologia é questionada à medida que somos convidados a apreciar os impactos culturais provocados pelas diversas tecnologias nas mais distintas esferas culturais.

A questão do determinismo tecnológico é tratada no último capítulo do livro. São retomadas ideias de Winner (1986) e de Jacques Ellul (1954). Em relação a Ellul, Cupani desenvolve a hipótese de que a tecnologia esteja fora de controle por produzir consequências — muitas vezes não intencionais — imprevisíveis. Nesse sentido, Cupani considera que “a possibilidade de dirigir os sistemas tecnológicos para fins claramente percebidos, conscientemente escolhidos e amplamente compartilhados torna-se cada vez mais duvidosa”. Além disso, o autor explora as características da técnica moderna que a diferenciam da técnica antiga. O caráter autônomo da tecnologia acaba minimizando a possibilidade de escolha dos seres humanos, pois a ela se dá a partir daquelas opções fornecidas pela própria técnica. Em outras palavras, somos condicionados a escolher aquela opção que aparenta ser a mais eficiente. A autonomia da tecnologia é compreendia como uma espécie de autoimposição por ela ter suas próprias regras. Todas aquelas ações que são contrárias ou que não obedecem ao ideal de eficiência não parecem muito sensatas, considera o autor.

Por fim, cabe apenas ressaltar que o livro Filosofia da tecnologia: um convite contempla os principais temas e problemas relacionados à tecnologia, possibilitando que o leitor tenha contato com os principais referenciais teóricos da área e se sinta convidado a prosseguir com investigações filosóficas. O convite está feito.

Referências

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———. 2004. A tecnologia como problema filosófico: três enfoques. Scientiae Studia 2(4): 493–518.

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Gilmar Evandro Szczepanik – Doutorando em filosofia Programa de Pós-Graduação em Filosofia Universidade Federal de Santa Catarina BRASIL. E-mail: [email protected]