Tempo Presente, história oral e imagens / Territórios & Fronteiras / 2019

Este dossiê da revista T&F reúne artigos que apresentam reflexões de historiadores e historiadoras que lidam com a “história oral” e com a linguagem visual, sejam elas vestígios visuais como imagens fotográficas ou imagens narrativas que dependem do testemunho escrito e da memória e que, por isso mesmo, não deixam de se articular com os documentos escritos. Os artigos contemplam temas das pesquisas desenvolvidas pelas autoras e autores e nos oferecem debates metodológicos sobre o corpus documental utilizado como referência. Destacam-se, nessa linha, a metodologia que escolhem e valorizam passagens das entrevistas orais, temáticas ou histórias de vida, e das imagens visuais, como fotografias, assim como de outros documentos que registram eventos significativos na vida dos entrevistados e dos acontecimentos analisados. Do tecido narrativo que constitui o texto dos artigos emergem histórias, trançadas como experiências pela memória e testemunhos.

Não poderíamos deixar de assinalar, que há um especial interesse em vários artigos do dossiê em explorar algumas possibilidades de análise do tempo presente e instigar os leitores ao diálogo. Ao debaterem questões que não se circunscrevem apenas à especificidade dos temas abordados, oferecem uma rica contribuição para a análise da história recente do Brasil, em especial, eventos relacionados à memória da ditadura militar e dos movimentos sociais e políticos do período da redemocratização do país.

O dossiê abriga temas, pesquisas e abordagens historiográficas bastante diversas e inovadoras. Assim, suscitam leituras e reflexões que se apresentam imprescindíveis à produção do conhecimento histórico. Nessa trilha, o artigo “Uma garota propaganda para o império: o caso de Rosinha na Exposição do Porto de 1934”, de Franco Santos Alves da Silva, apresenta um estudo acerca da relação entre etnia e gênero no contexto específico da 1ª Exposição Colonial Portuguesa de 1934, através da análise de imagens fotográficas. Argumenta o autor que a utilização da fotografia e de outras imagens visuais não deve ter cunho ilustrativo. Em seu texto, as imagens são indiciárias, possibilitam múltiplos olhares e provocam estranhamentos, já que trazem “à baila imagens que eram elas mesmas inseridas e produzidas em uma conjuntura que gerava e perpetuava as relações de gênero / colonialismo / etnia durante o recém reformulado projeto colonialista do Estado Novo Português”.

Em seu artigo, “O futuro do passado no tempo presente: memórias e narrativas amazônicas nas encruzilhadas do tempo”, Erinaldo Cavalcanti utiliza relatos de memória para refletir sobre a história do tempo presente. Neste escopo, analisa entrevistas orais com trabalhadores e trabalhadoras rurais, afetados pela experiência da Guerrilha do Araguaia, realizadas na cidade de Xambioá / TO, para o projeto de pesquisa “História Oral e Narrativas Amazônicas”. Sublinha a importância da memória histórica numa dimensão política. As reflexões sobre tempo, memória e história são, segundo o autor, imprescindíveis à escrita dos relatos orais na produção textual.

O artigo de Pablo Porfírio, “Memória de imagens de trabalhadores rurais: marchas das Ligas Camponesas, Pernambuco, 1960”, com base nas fotografias produzidas no início dos anos 1960, focaliza as manifestações políticas de trabalhadores rurais, integrantes das Ligas Camponesas, em Pernambuco. Reflete com acuidade a produção das imagens, de forma a apreender discursos e práticas que criminalizam as ações dos trabalhadores e, sobretudo, nos discursos oficiais e na imprensa, desqualificam as iniciativas de resistência. Para o autor, as fotografias analisadas constituem “uma memória de imagens que oferece novas narrativas sobre o Golpe-civil militar de 1964”.

Em “Imagens depois da catástrofe: outras memórias do desenvolvimento no Vale do São Francisco”, Elson de Assis Rabelo se detém sobre as imagens visuais produzidas em desenhos do artista juazeirense Antônio Carlos Coelho de Assis. As imagens dão acesso a camadas diferentes de temporalidade e de experiências de espaço do rio São Francisco, nos anos 1980. Além disso, aparecem implicadas às práticas de cunho desenvolvimentista direcionadas para o “interior do Brasil”, especialmente aquelas que se baseavam na agricultura irrigada das zonas semiáridas e na exploração do rio São Francisco como recurso natural. O autor dialoga, também, com outros vestígios documentais, como notícias de jornal e o material produzido pelo Movimento de Defesa do São Francisco, que lutava contra a degradação ambiental daqueles espaços. Pauta-se pelo diálogo entre as memórias individuais e o cenário político do período, a partir do recorte sobre as manifestações artísticas e a preservação do meio ambiente.

Os irmãos Daniel e Guilherme dos Santos Fernandes, iniciam seu texto, “Imagens e palavras na escritura da narrativa etnofotográfica: notações metodológicas”, destacando o uso de imagens nas pesquisas antropológicas, especialmente na obra Balinese Character (1942), e os trabalhos pioneiros no Brasil no uso das imagens fotográficas a partir das expedições do Marechal Rondon. Para os autores deste artigo, a antropologia visual e a utilização de uma narrativa etnofotográfica -sem desmerecer o risco da subjetividade na escolha de imagens no registro imagético pelos etnógrafos -possibilitam o registro de uma realidade que ultrapassa os traços culturais isolados e potencializam a memória singular da cultura como discurso narrativo.

O artigo “História e acontecimento: imagens narrativas no relato oral de uma liderança dos trabalhadores rurais de Rondon do Pará”, de Regina Beatriz Guimarães Neto e Airton dos Reis Pereira, utiliza o relato oral de memória de uma líder rural, Maria Joel da Costa (Joelma), que descreve a violência cometida contra os trabalhadores rurais no Pará, em especial, o assassinato do Presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Rondon do Pará. O testemunho é social e estabelece relações com outras experiências, além disso, ao elaborar o “relato de si”, a narrativa testemunhal se torna indiciária. Para a autora e o autor, as imagens narrativas presentes nos relatos orais, em especial no testemunho de Joelma, são inseparáveis de sua dimensão visual e ressignificam, no fluxo da narrativa, os acontecimentos históricos.

Já Gerardo Necoechea Gracia, em seu artigo, “De enfermedades, historias y lecturas: imágenes narrativas de cultura obrera”, seleciona passagens de uma entrevista realizada a uma mulher que recorda sua infância em um povoado mineiro do norte de México. Analisadas, em detalhe, as imagens narrativas que emergem do relato o ajudam a refletir sobre a cultura da classe trabalhadora e suas transformações. Neste texto, o autor indaga sobre o significado e a importância das imagens narrativas para a compreensão dos relatos orais, que convertem imagens em recordações comunicáveis, em narrativas.

Em “Uma leitura sobre as novas configurações migratórias: análise no / do tempo presente em narrativas orais e de jornais”, os autores Leandro Baller e Jorge Pagliarini Junior tecem importantes considerações e análises sobre “migrações” para áreas de fronteira, sobretudo sobre os movimentos de retorno. Tomaram como base duas pesquisas que problematizam as migrações do Sul do Brasil, particularmente do Paraná, para o Paraguai e, em outra direção, para a Amazônia. Apresentam reflexões sobre a memória e narrativa, na configuração social das migrações no tempo presente.

No artigo, “Realismo maravilhoso e circularidade cultural: crença no invisível atordoa o pensamento? (Região Bragantina-PA)”, Ipojucan Dias Campos e Danilo Gustavo Silveira expõem diferentes narrativas de universitários da UFPA, em Bragança e Capanema, a respeito de histórias de “lendas”, “folclores”, “superstições”, “crendices”. Enredos que misturam a vida real, o trabalho e o cotidiano, com o imaginário e o extraordinário do sobrenatural e na interface entre as culturas “popular” e “erudita.

Nas páginas escritas por Magno Michell Marçal Braga e César Martins de Souza, em seu artigo “Transamazônica: terra, trabalho e sonhos”, que se alimentaram de diferentes fontes documentais, narrativas e fotografias, os autores nos apresentam as narrativas de alguns migrantes que se fixaram em terras amazônicas, além de discursos oficiais a respeito da construção da rodovia Transamazônica. Diante de uma produção discursiva e imagética, celebrativa dos feitos governamentais, justificava-se a ocupação humana e econômica da região amazônica, através da transposição de populações do Nordeste e do Sul do Brasil.

Em “Exorcizando o Passado: experiências de trabalhadores migrantes escravizados na Fazenda Brasil Verde / PA”, Cristiana Costa Rocha narra a trajetória de trabalhadores rurais migrantes do Piauí contratados pelo “gato” Meladinho para trabalhar no sul do Pará. Dois são os personagens principais do trabalho de Cristiana, José Pitanga e Luiz Sincinato, escravizados, no ano 2000, na fazenda Brasil Verde, fazenda que entre meados da década de 1980 até o ano 2000 foi alvo de sucessivas denúncias em relação ao uso de trabalho escravo.

No último texto do dossiê, “Da assistência patronal à disciplina da vida e trabalho operário: narrativas, imagens e denúncias do passado”, Marcelo Góes Tavares, usa como fonte principal Memória da vida e do trabalho, documentário dirigido e produzido por Celso Brandão, e, também, relatos de memórias de operários têxteis alagoanos. Por meio de alguns fotogramas e relatos orais o autor tece uma rica paisagem polissémica sobre as políticas de assistência, gestão do trabalho, sobrevivência e resistência, tendo como cenário principal a vila operária de Fernão Velho e a Fábrica Carmen, nomeada até 1943 de Companhia União Mercantil.

Agradecemos imensamente a dedicação dos autores e autoras que compuseram este dossiê. Tivemos o privilégio de contar com um grupo de historiadoras e historiadores de enorme rigor e profissionalismo. Nesse sentido, não se furtaram em atender as sugestões críticas dos pareceristas, enriquecendo os textos e contribuindo de forma decisiva para novas abordagens historiográficas. Em “tempos difíceis” a nossa melhor resistência política é o rico diálogo em nossa área de conhecimento e no campo interdisciplinar: “tudo o que nos alenta, renova nossas forças!

Pere Petit – Graduação em Geografia e História pela Universitat de Barcelona. Mestrado em História de América Contemporânea pela Universidad Central de Venezuela. Doutorado em História Econômica pela Universidade de São Paulo. Pós-doutorado na Universidad de Salamanca-Espanha. Docente dos Programas de Pósgraduação em História Social da Amazônia (Belém / UFPA), Linguagens e Saberes na Amazônia (Bragança / UFPA) e História (Marabá / Unifesspa). Presidente da Associação Brasileira de História Oral (ABHO). E-mail: [email protected]

Regina Beatriz Guimarães Neto – Doutora em História pela Universidade Estadual de Campinas (1996). É professora Adjunto IV do Departamento de História e do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Pernambuco. E-mail: [email protected]


PETIT, Pere; GUIMARÃES NETO, Regina Beatriz. Apresentação. Territórios & Fronteiras, Cuiabá, v.12, n.1, jan / jul, 2019. Acessar publicação original [DR]

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