Facetas do Tradicionalismo Católico no Brasil / Revista Brasileira de História das Religiões / 2013

Há muito tempo o tema do tradicionalismo católico foi relegado pelos estudiosos ao segundo plano no Brasil. Personagens históricos como Geraldo de Proença Sigaud, Antônio de Castro Mayer, Antônio Mazzarotto, Gustavo Corção, Plínio Corrêa de Oliveira, entre outros, foram postos no ostracismo da história do catolicismo brasileiro. Contextualmente, os tradicionalismos católicos – também chamados de integrismos e conservadorismos – originaram-se no século XIX no interior de grupos clericais e leigos em reação à ascensão de um catolicismo progressista, calcado em premissas da Revolução Francesa e das perspectivas abertas pela ciência moderna.

Em geral, os tradicionalistas baseiam seu pensamento político-religioso em documentos do Concílio de Trento (1543-1563) e em documentos de santos, filósofos, teólogos e pontífices que se destacaram pela crítica ou mesmo pela recusa do mundo moderno, principalmente os pontificados antiliberais do século XIX. Dessa forma, tais grupos formaram-se em oposição a outros, defensores de mudanças expressivas na vivência da fé, na interpretação da mensagem revelada e na atuação mais engajada em assuntos político-sociais (os chamados catolicismos moderno, progressista ou social).

É mister indicar que essa tendência do catolicismo contemporâneo não foi estudada em sua profundidade, principalmente no Brasil. Preocupados com as novas formas de atuação política, que convidavam os cristãos a uma atitude prática frente à vida social do país e que levaram à proximidade com a esquerda política, muitos estudiosos viam nesses personagens a encarnação do que havia de mais retrógrado e reacionário, e, por isso, não mereciam nem mesmo o olhar da academia. Contudo, nesse átimo histórico, esses mesmos personagens tradicionalistas e o pensamento vinculado a eles retornam como fantasmas quando o então papa Bento XVI tomou atitudes como o moto proprio Summorum Pontificum Cura, fazendo emergir questões de fundo que muitos achavam esquecidas ou superadas: a presença do latim na liturgia, a busca de uma fidelidade mais profunda ao Sumo Pontífice e o questionamento a qualquer tipo de transigência com a modernidade e seus valores.

Para muitos a situação configura-se como a de um retorno a modos de vivência e expressão de fé tidas como incompatíveis com os “tempos modernos”, mas que, num olhar atento, evidenciam sua permanência – mesmo que às margens da teologia dominante – e, por que não, sua consistência teológica. Dessa forma, o dossiê Facetas do tradicionalismo católico no Brasil visa responder às necessidades historiográficas e conjunturais que, indubitavelmente, se impõem. Por iniciativa de um grupo de pesquisadores que estudam o tema mais detidamente, a obra visa demonstrar, sob várias perspectivas e olhares, alguns momentos importantes da história do tradicionalismo católico brasileiro.

O professor Ivan A. Manoel, no instigante texto que inicia esta coletânea, se propõe a discutir as origens do tradicionalismo católico, atentando para o fato de que as religiões – não somente a católica – são essencialmente tradicionalistas, no sentido de que a conservação da tradição está no fundamento de qualquer crença religiosa. O catolicismo é uma religião que está ancorada na tradição judaico-cristã e luta intensamente para preservar e reproduzir, especialmente quando se trata de conservar seu lugar destacado nas sociedades em que têm ou tiveram ascendência em dado contexto histórico. No ensaio “Origens do tradicionalismo católico: um ensaio de interpretação”, Manoel defenderá a tese de que o tradicionalismo católico, visando justamente manter e / ou forjar uma tradição, produziu uma concepção de história ancorada nos conceitos retilinear e pendular do processo histórico. A análise da doutrina elaborada pelo tradicionalismo bem como de suas implicações práticas e conceituais é o foco do texto em questão.

O vínculo intelectual entre o pensamento conservador tradicionalista ou conservador contrarrevolucionário e a Revolução Francesa é o mote de análise do texto “Expoentes do pensamento conservador: conservadores tradicionalistas e contrarrevolucionários”, de Cândido Moreira Rodrigues. Lançando luzes ao pensamento de Joseph de Maistre, Louis de Bonald, Juan Donoso-Cortés e Edmund Burke, o autor apresenta os elementos de condenação desses intelectuais à Revolução Francesa e aos seus desdobramentos, enfatizando como tais consequências afetaram o pensamento e a vivência católicos contemporâneos e sucessórios de forma indelével. Evidenciando que fora, sobretudo, a partir desses pensadores que se pautou o pensamento católico conservador dos séculos XIX e XX, Rodrigues finda o texto evidenciando a atualidade do debate mais pormenorizado sobre as próprias raízes do ideário do tradicionalismo católico contemporâneo.

Patrícia Carla de Melo Martins, por sua vez, atenta para a normatização religiosa pautada pelo ideário do tradicionalismo católico, com base na análise de regulamentos instaurados durante o bispado de Dom Antônio Joaquim de Melo (1831-1861) no contexto paulista. No artigo “Moralidade e tradicionalismo católico no século XIX: Códigos de conduta do Seminário Episcopal de São Paulo”, a autora destaca a importância das reformas efetivadas no Seminário Episcopal de São Paulo que, de certa forma, acabaram por refletir a própria reforma conservadora do clero paulistano.

A proposta da professora Tereza Malatian no ensaio “Tradicionalismo monarquista (1928-1945)” é discutir as relações existentes entre a doutrina católica conservadora e o contexto de renovação cristã vigente a partir dos anos 1920 com a formação e atuação dos membros da Ação Imperial Patrianovista Brasileira (AIPB), entidade que reuniu um grupo de intelectuais preocupados em analisar as relações entre Igreja e Estado, bem como em criticar as bases do regime republicano instaurado no país. Ao analisar os elementos basilares do patrianovismo, entre eles a eleição da religião como fundamento de sua proposta política, a autora evidencia a singularidade desse movimento monarquista, nacionalista e cristão, no contexto das primeiras décadas do século XX.

No texto intitulado “Em defesa da Ação Católica: Plínio Corrêa de Oliveira, um baluarte da tradição”, o pesquisador Rodrigo Coppe Caldeira analisa a obra Em defesa da Ação Católica (1943), redigida pelo católico leigo Plínio Corrêa de Oliveira. Com base em uma concepção ultramontana de catolicismo, Plínio teria feito da obra um baluarte da defesa de uma proposta de catolicismo antimoderno, tido como “fiel” às propostas do que chama de “Igreja de sempre”. O autor analisa suas fontes doutrinárias e teológicas, bem como os principais elementos defendidos por Plínio Oliveira, a partir de uma obra que se tornou expoente do pensamento ultramontano ou tradicionalista católico no Brasil.

O artigo redigido por Gizele Zanotto, “Paz de Cristo no reino de Cristo: ideal teológico-político da Sociedade Brasileira de Defesa da Tradição, Família e Propriedade (TFP)”, destaca o encadeamento de uma proposta política com a doutrina religiosa defendida pelos membros da TFP no Brasil. Partindo de uma atitude soteriológica pautada no catolicismo das primeiras décadas do século XX, os membros do movimento católico tefepista empenham-se numa luta pela defesa da reedificação da cristandade em nossos dias, como resposta aos problemas do mundo contemporâneo que tanto afligem os católicos ditos tradicionalistas.

Christiane Jalles de Paula analisará o percurso intelectual do líder católico Gustavo Corção, figura de destaque do final dos anos 1940 nos meios católicos, mas que, em função das novas diretrizes defendidas pelo grupo hegemônico da instituição, viu-se cada vez mais questionado em suas posições, especialmente após o Concílio Vaticano II (1962-1965). Em seu artigo “A descoberta da ‘outra’: Gustavo Corção e a recepção do Concílio Vaticano II”, a autora aborda o processo de deslegitimação da postura de Corção, especialmente investigando as relações entre religião e política, situação que o “enquadrou” como um dos representantes do chamado conservadorismo católico no país.

Já Rosângela Wosiack Zulian, no artigo “Entre a ortodoxia e a heresia: uma releitura da tradição católica polonesa na Diocese de Ponta Grossa (PR)”, que encerra esta coletânea, estuda a atuação do bispo Dom Antônio Mazzarotto, tido como defensor da fé e da hierarquia eclesiástica. O ensaio se detém no conflito discursivo entre o bispo e um grupo de católicos poloneses, tidos então como grupo “herético”. Por meio de análise de documentos primários, a autora se debruça sobre os argumentos da mencionada celeuma avaliando o quanto de tal situação está em consonância com o movimento de “romanização” empreendido pela Igreja Católica, visando uniformizar práticas e condutas. Com base na compreensão de que a romanização foi um processo plural, Zulian se debruça sobre os discursos produzidos pelo bispo e pelos poloneses em disputa pela manipulação do poder simbólico religioso.

Complementam esse dossiê as seções de artigos livres, comunicações e resenhas. A primeira delas inicia com artigos dedicados à análise da obra dos intelectuais Michel de Certeau, Edward Burnnet Tylor, Sêneca e Jacques Maritain. O artigo de Virgínia Buarque debruça-se a avaliar as contribuições de Certeau para a História das Idéias Religiosas quando chamado à colaboração com análises sobre a história inaciana no contexto posterior a Segunda Guerra Mundial. Já Vanda Fortuna Serafim avalia a repercussão da obra de Tylor para os estudos da religião, em especial, pela mobilização da obra Primitive Culture. Já José Carlos Silva de Almeida apresenta elementos da vida e obra de Sêneca sob a perspectiva de sua aproximação com a comunidade e as práticas hebraicas. Por fim, Névio de Campos estuda a questão da natureza humana na obra de Maritain, sobretudo em sua proposta de humanismo integral, em contraposição crítica ao denominado humanismo antropocêntrico.

Na sequência temos um artigo dedicado às práticas medievais a partir da ênfase na importância das letras e palavras no contexto cristão anglo-saxão. Em seu texto Elton Oliveira Souza de Medeiros se debruça sobre o Pater Noster em sua articulação entre elementos mágicos e cristãos. Roberto Bueno, por sua vez, pesquisa os elementos de argumentação autoritária derivadas das obras de Danoso Cortés, Jaime Balmes e Carl Schmitt. O último artigo da seção, de autoria de Cintia Régia Rodrigues dedica-se à análise da relação que a Igreja Católica – via atuação de capuchinhos franceses – e o governo estadual do Rio Grande do Sul mantiveram com as populações nativas em princípios do século XX.

O dossiê complementa-se com a seção Comunicações e o artigo de Sezinando Luiz Menezes, José Henrique Rollo Gonçalves e Saulo Henrique Justiniano Silva, que analisam o messianismo judaico no contexto da consolidação do Tribunal do Santo Ofício na metrópole portuguesa do século XVI. Já a resenha da obra Os mortos e os vivos: uma introdução ao espiritismo, de autoria de Reginaldo Prandi e aqui avaliada por Marcos José Diniz Silva, fecha este volume da RBHR.

Esperamos que a riqueza temática e analítica deste volume seja aproveitada por todos os nossos leitores. Junto a isso, desejamos que a Revista Brasileira de História das Religiões do Grupo de Trabalho de História das Religiões e Religiosidades da ANPUH consolide-se em sua nova plataforma, iniciada justamente com esse dossiê.

Boa leitura a tod@s!

Gizele Zanotto

Rodrigo Coppe Caldeira

ZANOTTO, Gizele; CALDEIRA, Rodrigo Coppe. Apresentação. Revista Brasileira de História das Religiões, Maringá- PR, v.6, n.16, maio, 2013. Acessar publicação original [DR]

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