Uma introdução à metafísica da natureza: Representação, realismo e leis científica – GHINS (P)

GHINS, Michel. Uma introdução à metafísica da natureza: Representação, realismo e leis científicas. Curitiba: Editora UFPR, 2013. Resenha de: CANI, Renato C. Principia, Florianópolis, v. 22, n2, p.359–370, 2018.

Há razões para acreditar que as teorias científicas mais bem-sucedidas representam a realidade? Aliás, em que consiste uma teoria científica? Os resultados e os relatos fornecidos pelas ciências acerca do mundo legitimam a crença na existência de leis da natureza? Caso admitamos o discurso sobre as leis, que tipo de ontologia devemos adotar a fim de explicar a necessidade envolvida nas leis científicas? Essas perguntas resumem algumas das principais questões discutidas em filosofia e metafísica da ciência ao longo das últimas décadas. Elas resumem, também, os temas tratados pelo Professor Michel Ghins (2013) no livro Uma introdução à metafísica da natureza. A obra possui um duplo objetivo — e, podemos acrescentar, um duplo mérito.

Em primeiro lugar, trata-se de uma excelente introdução a alguns dos problemas mais relevantes e instigantes da filosofia da ciência contemporânea. O livro é dividido em quatro capítulos, que abordam as seguintes questões, respectivamente: (i) a estrutura das teorias científicas e o problema da representação; (ii) o debate entre realismo científico e antirrealismo; (iii) o estatuto ontológico e epistemológico das leis científicas; e, finalmente, (iv) a metafísica das propriedades categóricas e disposicionais.

Cada tema é tratado com notável consistência e em diálogo estreito com a literatura filosófica mais recente na área. As posições dos demais autores são reconstruídas e criticadas por Ghins com grande precisão. De fato, o segundo objetivo (e mérito) da obra é apresentar ao leitor uma versão direta e clara das principais posições defendidas pelo autor ao longo de sua carreira. Desse modo, o livro representa a culminância (mas não o ponto final) das investigações que tem animado o Professor Ghins ao longo de diversos artigos e conferências. Com efeito, o formato e a organização do livro—em quatro capítulos—resulta do curso ministrado pelo autor durante a Escola Paranaense de História e Filosofia da Ciência, evento organizado pelo Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Paraná, em 2011. Como dissemos, as teses avançadas pelo autor são construídas e expostas a partir do diálogo com interlocutores e colaboradores frequentes, dentre os quais destacamos: Bas ⃝c van Fraassen, David M. Armstrong, Alexander Bird, Brian Ellis, Anjan Chakravartty e Stathis Psillos.

No primeiro capítulo, Ghins caracteriza as teorias científicas como conjuntos de modelos (estruturas) e proposições (as leis científicas). Os modelos são capazes de representar estruturas de determinadas propriedades abstraídas dos fenômenos (como a pressão e o volume de um gás, por exemplo) e, assim, tornar verdadeiras as proposições (leis) que atribuem tais propriedades a certas entidades. A partir dessa interpretação das teorias, Ghins dedica o segundo capítulo à defesa de uma forma de realismo moderado e seletivo, sustentando que é possível formular bons argumentos não apenas em favor da adequação empírica das teorias científicas, mas também da sua verdade parcial e aproximada. No que tange às entidades inobserváveis postuladas pelas teorias, o autor considera que a convergência de diferentes métodos de mensuração permite legitimar o compromisso com a existência de, ao menos, algumas dessas entidades, tais como átomos e campos eletromagnéticos. O terceiro capítulo, por sua vez, centra-se na problemática das leis científicas. Após reconstruir e criticar as concepções de lei fornecidas por regularistas (Mill, Ramsey e Lewis) e necessitaristas categorialistas (Dretske, Tooley e Armstrong), Ghins propõe a identificação das leis a proposições universais pertencentes a teorias empiricamente adequadas e explicativas. Desse modo, a teoria desenvolvida nos dois primeiros capítulos serve para explicar a verdade das leis científicas. No entanto, sabemos que, a fim de atribuir o estatuto de lei a uma proposição universal verdadeira, é preciso argumentar em favor do seu caráter necessário e explicar de que modo ela acarreta a verdade de contrafactuais. Afinal, são esses os fatores que distinguem as leis das generalizações acidentais. Para completar essa tarefa, Ghins elabora, no quarto capítulo, uma metafísica das propriedades categóricas e disposicionais. Nesse sentido, o autor sustenta uma ontologia mista — i.e. tanto certas propriedades categóricas quanto disposicionais são admitidas como irredutíveis — em que o caráter nomológico das leis é fundamentado na existência de disposições intrínsecas às entidades físicas. Por fim, a conclusão do livro é dedicada à formulação de argumentos favoráveis à existência das disposições, especialmente endereçados a filósofos menos propensos às discussões puramente metafísicas e mais sensíveis à abordagem empirista.

A seguir, detalharemos alguns aspectos da argumentação de Ghins, destacando questões problemáticas que, na nossa visão, merecem uma discussão mais detalhada. Faremos isso em duas partes. Na primeira, trataremos da representação e do realismo; na segunda, das leis e das propriedades.

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Logo no início da obra, Ghins declara que o objetivo da ciência é predizer e explicar os fenômenos. A fim de tornar isso possível, precisamos adotar uma atitude objetivante (cf. van Fraassen 2002) diante dos fenômenos. Trata-se de encará-los não como totalidades singulares, mas como sistemas, isto é, “como conjuntos de elementos organizados por meio de relações” (Ghins 2013, p.15). Nisso consiste a abstração primária, por meio da qual o cientista se coloca à distância das entidades e processos que busca representar. Em seguida, é preciso selecionar as propriedades — quantidades ou parâmetros — relevantes para um estudo científico particular. Se vamos estudar um gás de um determinado ponto de vista—para seguirmos o exemplo mais mencionado pelo autor—interessam-nos o seu volume e temperatura, mas não o seu cheiro. Esse passo é denominado abstração secundária (Ghins 2013, p.17).

Uma vez identificados os parâmetros de interesse, o cientista procede com o processo de modelização. Em geral, um modelo é definido pelo autor como “uma estrutura que torna verdadeira ou ‘satisfaz’ certas proposições” (Ghins 2013, p.19). A primeira dessas estruturas a ser construída é a estrutura perceptiva, que consiste na organização por meio de relações envolvendo as propriedades perceptivas em questão (o volume e o grau de calor de um gás ou os períodos orbitais de planetas).

Quando introduzimos instrumentos de mensuração a fim de tornar mais precisas e exatas essas propriedades, somos capazes de elaborar um modelo de dados. Contudo, se quisermos explicar o comportamento de um gás, por exemplo, não basta elaborar um catálogo com os valores mensurados de sua pressão, temperatura e volume. É preciso embutir esse modelo de dados numa estrutura teórica mais ampla. De acordo com Ghins, essa estrutura nos permite, mediante o cálculo, construir uma subestrutura empírica (e teórica, porque também faz parte de uma estrutura teórica) a fim de representar o modelo de dados. No caso dos gases, essa subestrutura é dada pelos valores de pressão, volume e temperatura obtidos mediante a relação pV = kT (em que k é a constante de Boltzmann). O processo de modelização se encerra quando incluímos essa estrutura teórica numa classe de modelos, isto é, numa teoria (no caso dos gases, trata-se da mecânica estatística de partículas).

Podemos resumir esse processo, portanto, da seguinte maneira (Ghins 2013, p.27s): a partir dos (i) fenômenos, nós abstraímos as (ii) estruturas perceptivas, que são representadas pelos resultados das mensurações, isto é, os (iii) modelos de dados.

Estes, por sua vez, são representados pelas (iv) subestruturas empíricas (e teóricas).

Assim, as relações de representação se dão entre (ii), (iii) e (iv), o que equivale a dizer que, quando a teoria é empiricamente adequada, tais estruturas são isomórficas (ou homomórficas).1 Por sua vez, a relação entre a subestrutura empírica, o (v) modelo teórico e a (vi) classe de modelos é meramente a inclusão conjuntista.

A ênfase de Ghins no papel dos modelos e na noção de adequação empírica entre estruturas não significa que o autor subscreva a abordagem semântica das teorias. De acordo com essa abordagem, as teorias são caracterizadas como famílias de modelos, em oposição à abordagem sintática, que define as teorias como conjuntos de proposições.

Ghins busca uma terceira via, defendendo o que chama de abordagem sintética, segundo a qual “uma teoria científica é um conjunto de modelos e de proposições satisfeitas (tornadas verdadeiras) por esses modelos” (Ghins 2013, p.26).

Ao formular a concepção sintética das teorias, o objetivo de Ghins é estabelecer sua posição no espectro do realismo científico. Para o autor, o problema do realismo compreende dois níveis. No primeiro, há a questão “sobre a relação entre as estruturas por nós construídas e os fenômenos observáveis” (Ghins 2013, p.33). Trata-se do problema que van Fraassen (2008, p.240) denominou objeção da perda de realidade.

Visto que os modelos e estruturas representacionais por nós desenvolvidos são entidades abstratas, que garantias possuímos de que tais estruturas guardam algum tipo de relação com os fenômenos observáveis? A resposta de Ghins a essa objeção se dá em duas etapas: primeiramente, o autor assume a concepção da verdade como correspondência. Essa concepção “implica a existência de realidades que tornam as proposições verdadeiras” (Ghins 2013, p.39), mas não exige que se formule uma teoria para explicar a natureza de tal correspondência. Assim, é possível encarar as proposições não como representações, mas como a atribuição de propriedades a determinadas entidades.

Logo, a próxima etapa da resposta à objeção é enfatizar que os modelos não representam diretamente os fenômenos, mas somente as estruturas perceptivas (Ghins 2013, p.21; p.39). Portanto, a atividade representacional repousa sobre proposições verdadeiras, o que garante que “nosso contato com a realidade jamais foi nem será suspenso” (Ghins 2013, p.40). Não temos certeza de que essa resposta é plenamente satisfatória, uma vez que ela parece muito mais assumir o realismo científico de teorias — isto é, a tese de que há razões para considerar as teorias científicas como verdadeiras — do que efetivamente demonstrá-lo. Como veremos adiante, consideramos mais satisfatórios os argumentos do autor em favor do realismo de entidades — a afirmação da existência das entidades postuladas pelas melhores teorias.

Passemos ao segundo nível da problemática do realismo científico, que corresponde ao problema de determinar se nossas superestruturas de propriedades inobserváveis guardam relação com a realidade externa. Em outros termos, a adequação empírica de uma teoria — o isomorfismo entre valores mensurados e calculados de certas grandezas — implica que os seus modelos teóricos sejam verdadeiros sobre os aspectos inobserváveis do mundo? Se levarmos em conta o argumento antirrealista da subdeterminação das teorias pelos dados empíricos, responderemos negativamente a essa pergunta. Trata-se da afirmação de que, em princípio, é sempre possível construir diferentes teorias empiricamente adequadas, mas que sejam incompatíveis entre si na parte inobservável. Assim, não haveria razões empíricas para preferir determinada teoria em detrimento das outras.

Ghins admite a força desse argumento, reconhecendo que a “adequação empírica não constitui, por si mesma, uma garantia de verdade de uma teoria” (Ghins 2013, p.42). Porém, a fim de sustentar a sua posição realista, o autor apresenta críticas à subdeterminação, quais sejam: (i) os céticos antirrealistas, muitas vezes, apenas acenam para a possibilidade de teorias alternativas incompatíveis, mas não mostram casos concretos em que isso efetivamente ocorre (Ghins 2013, p.41); (ii) se levarmos em conta condições suplementares, é possível quebrar a subdeterminação. Isto é, Ghins afirma que, diante de teorias incompatíveis, devemos preferir aquela que possua leis que descrevam mecanismos causais, sendo que “essas leis possuem termos que assumem a forma de derivadas temporais e que propomos identificar a efeitos” (Ghins 2013, p.43). As leis da teoria cinética de Maxwell-Boltzmann são exemplos dessa definição.

O recurso à teoria correspondentista da verdade e ao poder explicativo das leis causais fundamentam as respostas de Ghins às objeções antirrealistas. No entanto, que argumento positivo em favor do realismo científico é oferecido pelo autor? Para Ghins, o único argumento razoável em favor da existência dos inobserváveis é a convergência de mensurações em analogia com a experiência sensível ordinária. Assim como legitimamos nossa crença nas entidades observáveis quando podemos acessálas intersubjetivamente por diferentes ângulos e sentidos, “nossa crença na existência dos elétrons é justificada pela possibilidade de medir suas diversas propriedades [. . . ] por meio de métodos independentes que proporcionam resultados precisos e convergentes” (Ghins 2013, p.45).

Ademais, Ghins sustenta a superioridade de sua defesa do realismo em relação ao argumento do milagre (no-miracle argument), o mais usual em favor do realismo.

O argumento do milagre afirma que, em virtude do sucesso empírico das nossas melhores teorias, seria uma coincidência altamente improvável que elas fossem falsas e que as entidades centrais postuladas por elas não existissem. A vantagem de Ghins é que seu argumento evoca a concordância entre mensurações, noção mais exigente que a de sucesso empírico (Ghins 2013, p. 47). Além disso, comumente é dito que o argumento do milagre repousa sobre o esquema conceitual da inferência para a melhor explicação (IBE).2 Em algumas passagens, Ghins enfatiza que seus argumentos não devem ser lidos como inferências desse tipo; afinal, “não há razão a priori para que a natureza se submeta aos requisitos explicativos que impusemos às nossas teorias” (Ghins 2013, p.48). De nossa parte, não vemos razões para deixar de considerar a IBE como esquema válido de raciocínio. Poderíamos considerar que a existência dos inobserváveis postulados pelas melhores teorias é a melhor explicação para a convergência entre mensurações independentes, sem que, com isso, voltemos ao argumento do milagre.3 Afinal, mesmo que o tipo de inferência seja o mesmo (a IBE) em ambos os argumentos, as premissas das quais eles partem são claramente distintas.

Em suma, Ghins considera sua versão de realismo como falibilista, seletivo e parcimonioso, uma vez que o requisito de convergência é exigente o bastante para admitir a crença apenas em um número escasso de entidades inobserváveis (Ghins 2013, p.50). Passemos para o tema das leis e das propriedades, apresentados nos capítulos finais da obra.

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A questão que norteia os últimos capítulos do livro de Ghins é a seguinte: leis científicas são também leis da natureza? Na concepção do autor, leis científicas dizem respeito às generalizações que desempenham função explicativa relevante no contexto de teorias científicas bem-sucedidas (cf. Ghins 2013, pp.51–2). Para que as leis científicas sejam identificadas a leis da natureza, é preciso articular uma metafísica da natureza que fundamente a sua verdade. O que Ghins busca demonstrar é que essa tarefa só pode ser cumprida por uma metafísica baseada em poderes causais ou disposições.

A fim de defender esse ponto de vista, o autor critica as principais concepções rivais acerca das leis, quais sejam, o regularismo e o necessitarismo categorialista.

Em linhas gerais, o regularismo é a teoria que encara as leis como regularidades, compreendidas como conjunções constantes, no sentido de Hume. Trata-se, portanto, de “proposições universais que são verdadeiras, sem dúvida, mas de modo meramente contingente” (Ghins 2013, p.53). Segundo Ghins, a principal dificuldade dessa concepção é o chamado problema da identificação, desafio que se impõe a qualquer concepção de lei que se pretenda defensável. Esse problema é originalmente formulado por van Fraassen (1989, p.39), mas Ghins o divide em dois aspectos. O primeiro deles é o problema epistêmico da identificação: devemos ser capazes de distinguir as generalizações nomológicas das acidentais. Nesse sentido, o regularista deve oferecer um critério para distinguir enunciados do tipo “Todas as esferas de urânio possuem diâmetro inferior a um quilômetro” (que parece remeter às propriedades radioativas do elemento urânio) e “Todas as esferas de ouro possuem diâmetro inferior a um quilômetro” (verdadeira de modo acidental). Ghins concede que, à primeira vista, a teoria do melhor sistema, de David Lewis (1973), fornece uma resposta a esse problema.

Nessa teoria, as leis são os teoremas ou axiomas presentes nos sistemas dedutivos que melhor equilibram os desiderata de simplicidade e força (cf. Ghins 2013, p.54).

Entretanto, a teoria de Lewis não tem a mesma sorte no que se refere ao segundo aspecto do problema da identificação, a saber: o problema ontológico da identificação.

Trata-se de identificar o “tipo de fato acerca do mundo” que torna as leis verdadeiras (Ghins 2013, p.55). Nesse sentido, Ghins argumenta que Lewis “permanece silencioso” acerca dessa questão, uma vez que ele não indica quais fatores ontológicos seriam os responsáveis por tornar certos sistemas axiomáticos mais satisfatórios que outros. Ora, essa crítica não é forte o bastante, pois alguém poderia objetar que o regularismo não precisa fornecer uma solução ao problema ontológico, uma vez que as uniformidades não carecem de explicação adicional, isto é, elas são encaradas como fatos brutos. O problema ontológico da identificação só faz sentido para as concepções realistas das leis, já que estas caracterizam as leis a partir de categorias metafísicas que se projetam para além das regularidades.

A fim de rejeitar o regularismo, portanto, é necessário mostrar que essa teoria não soluciona adequadamente o problema epistêmico da identificação, visto que é nesse âmbito que Lewis formula os seus principais argumentos. Para cumprir esse objetivo, Ghins (2013, pp.56–8) apresenta, de modo esquemático, algumas críticas a Lewis, dentre as quais destacamos: (i) a teoria do melhor sistema tem alcance restrito, pois só funciona para teoria axiomatizáveis; (ii) os critérios de equilíbrio, simplicidade e força, conforme tratados por Lewis, são meramente epistêmicos e subjetivos, sendo insuficientes para caracterizar as leis; (iii) se as leis são regularidades contingentes, a única maneira de explicar como elas sustentam os enunciados contrafactuais é apelando para a controversa noção de “similaridade entre mundos possíveis”.

De acordo com Ghins, esses problemas mostram que o regularismo é, na verdade, incapaz de distinguir as leis de generalizações acidentais. O autor passa a investigar, portanto, concepções de lei que se fundamentem em discussões de caráter metafísico.

É o caso do necessitarismo categorialista de Dretske, Tooley e Armstrong. Nessa visão, uma lei “é uma proposição singular que exprime um fato não empírico, a saber, uma relação de necessidade entre propriedades universais” (Ghins 2013, p.60). Segundo Armstrong (1983), que articulou a versão mais sofisticada de necessitarismo, as leis possuem a forma N(F,G), em que F e G são universais de primeira-ordem e N é, ao mesmo tempo, um universal de segunda-ordem e uma relação de necessitação entre universais. A solução necessitarista ao problema ontológico da identificação depende, portanto, da metafísica de universais elaborada por Armstrong.

Todavia, Ghins aponta que a maior dificuldade dessa teoria é o problema da inferência, que consiste na tarefa de que explicar de que modo é possível que “uma proposição que descreve uma relação da segunda ordem N entre universais [. . . ] implique logicamente uma proposição que descreve uma relação de necessitação entre as instâncias desses universais” (Ghins 2013, p.61). Em outros termos, Armstrong deve justificar a inferência N(F,G)→(x)N(F x Gx) A solução de Armstrong consiste em identificar a relação N, que se dá entre types, e a relação de causalidade entre tokens. Assim, da mesma forma que os universais F e G são obtidos por abstração a partir dos estados de coisas particulares {Fa, F b, . . .} e {Ga,Gb, . . .}, também a lei N(F,G) é obtida a partir da observação das sequências causais particulares {(Fa,Ga), (F b,Gb), . . .}. Para Armstrong, esse argumento mostra que a solução do problema da inferência é automática. A objeção de Ghins a esse raciocínio consiste em afirmar que, mesmo que se admita a hipótese de que a relação de causalidade entre tokens seja observável (tese negada por autores empiristas), a relação de causalidade entre types não o é (Ghins 2013, p.62). Logo, a resposta de Armstrong se encontra comprometida, uma vez que não há razões para supor que N seja idêntica à relação de causalidade entre particulares.4 Após discutir os problemas do regularismo e do necessitarismo categorialista, Ghins apresenta sua própria concepção das leis, derivada do essencialismo disposicional.

Vimos anteriormente que o autor caracteriza as leis como proposições universais pertencentes a teorias empiricamente adequadas e explicativas. Conforme a teoria desenvolvida nos primeiros capítulos, o que torna as leis verdadeiras são as regularidades da natureza, descritas pelas estruturas perceptivas e pelos modelos de dados.

Mas como explicar a existência de regularidades na natureza? Em que aspecto da realidade está fundamentado o caráter nômico das leis? É aí que entram as disposições: “o que funda a nomicidade de uma lei ou, em outras palavras, o que torna verdadeira a proposição ‘p é uma lei’ é a existência de poderes causais intrínsecos, reais e irredutíveis” (Ghins 2013, p.69).

Desse modo, a visão de Ghins também pode ser classificada como necessitarista.

A diferença é que Armstrong aceita apenas as propriedades categóricas (isto é, não modais) como irredutíveis. Ghins e os outros disposicionalistas — como Ellis e Bird — admitem a existência de propriedades disposicionais irredutíveis. Afinal, o que são disposições? Ghins oferece a seguinte definição: “Uma entidade x possui a disposição D de manifestar a propriedade M em resposta ao estímulo T nas circunstâncias A, se e somente se, na eventualidade da entidade x ser submetida a T no ambiente A, x necessariamente manifestar M” (Ghins 2013, p.69). O autor explicita essa definição por meio da menção à análise condicional proposta por Bird (2007, pp.36–7): □Dx↔((T x&Ax)□→ Mx)] Exemplos comuns de disposições são a disposição da água para dissolver o sal nas condições apropriadas ou a capacidade de certa anfetamina para, quando ingerida, melhorar o desempenho de um atleta (cf. Ghins 2013, p.70). No entanto, o estatuto ontológico preciso das propriedades disposicionais é assunto de um intenso debate em filosofia da ciência. Vejamos de que modo Ghins se situa nesse espectro.

Em primeiro lugar, o autor considera que as disposições são propriedades de primeira ordem, isto é, são instanciadas pelas próprias entidades físicas. Elas não são, portanto, “propriedades de propriedades”. Em segundo lugar, o autor adota uma ontologia mista, diferentemente do monismo disposicional defendido por Bird. Segundo Ghins, todas as propriedades capazes de figurar nos modelos científicos são propriedades categóricas. Essa visão abrange não apenas as propriedades espaçotemporais (distância, estrutura molecular, etc.), mas todas “as propriedades matemáticas e quantificáveis referidas pelos símbolos matemáticos que figuram nas leis científicas” (Ghins 2013, p.85).

Por fim, Ghins sustenta que essa ontologia de propriedades permite responder aos problemas da identificação e da inferência. No que tange ao segundo, o autor afirma: “Se p é uma lei, então p é uma proposição universal e as situações e os processos descritos por p ocorrem efetivamente no mundo” (Ghins 2013, p.65). A teoria da representação de Ghins, desenvolvida na parte inicial do livro, tem por objetivo explicitar essa solução. Além disso, limitar as leis ao contexto de teorias científicas aproximadamente verdadeiras e explicativas visa a responder ao problema epistêmico da identificação (Ghins 2013, pp.63–4). Quanto ao problema ontológico da identificação, Ghins afirma que “as regularidades descritas nas várias disciplinas encontram seus fundamentos nas naturezas relacionais, reais, de certas entidades e em suas disposições a submeter-se a processos específicos” (Ghins 2013, p.85). A metafísica das disposições implica, pois, que as leis científicas mereçam o título de leis da natureza, uma vez que sua verdade é fundamentada por uma metafísica da natureza.

Compartilhamos das motivações que levam o professor Ghins a defender uma metafísica disposicionalista e, em grande medida, simpatizamos com a solução do autor à problemática das leis. No entanto, temos algumas dúvidas com relação à sua metafísica da natureza, em especial à preferência pela ontologia mista. Essas incertezas se tornam explícitas quando analisamos a seguinte passagem: Uma entidade possui, por exemplo, uma carga de certo valor independentemente da força que pode exercer ou sofrer. Em outras palavras, a carga não é uma propriedade disposicional. [. . . ] Ao lado de suas propriedades categóricas, o elétron possui igualmente propriedades disposicionais, tal como a capacidade de interagir com partículas e campos em conformidade a certas equações matemáticas como, por exemplo, a lei de Maxwell (Ghins 2013, p.84).

Acreditamos que esse modo de ver as coisas obscurece as relações entre as leis e as disposições, dando margem a críticas categorialistas. De fato, estamos de acordo com o fato das disposições serem irredutíveis às suas manifestações. Entretanto, consideramos que é em virtude de possuir determinada carga que o elétron pode participar das interações de que participa. Aliás, o próprio autor admite que não há como determinar a carga do elétron a não ser com base nas suas interações, o que envolve elementos disposicionais. Logo, não vemos motivos para afirmar que haja duas propriedades distintas em jogo, como o faz Ghins. Dito de outro modo, Ghins afirma que o elétron possui carga (propriedade categórica) e, “ao lado” de tal propriedade, disposições essenciais. Ora, se quisermos argumentar que as leis da natureza são metafisicamente necessárias em razão de serem fundamentadas em disposições essenciais, então o vínculo entre as propriedades categóricas e disposicionais precisa ser esclarecido.

Sustentamos que a desvinculação entre as propriedades categóricas e disposicionais torna estas últimas misteriosas, comprometendo o caráter metafisicamente necessário das leis e a irredutibilidade das disposições. Essa consequência favorece o monismo categórico, segundo o qual as disposições dos objetos podem ser reduzidas às suas propriedades categóricas e às leis da natureza (impostas externamente aos objetos. Nesse sentido, Cid (2016, p.242s) aponta que a teoria de Ghins e o categorialismo fornecem explicações similares às leis e aos contrafactuais. Em última análise, o que Cid e outros críticos apontam é o fato de que, se nosso objetivo é explicar a necessidade das leis da natureza, é mais simples fazer isso admitindo apenas um tipo de propriedade irredutível (as categóricas) em vez de dois (como na ontologia mista).

De fato, a ontologia mista parece levar a problemas adicionais. Suponhamos que, conforme afirma Ghins, a carga do elétron (Q) seja uma propriedade categórica e seus poderes causais para participar de determinadas interações (D) consistam numa disposição.

Ghins afirma que D é essencial ao elétron. Naturalmente, é razoável supor que, se a carga Q do elétron fosse diferente, a disposição D também o seria. Então, qual a relação entre essas propriedades? Q também é essencial ao elétron? D é superveniente a Q? Gostaríamos de indicar um caminho para uma solução disposicionalista (e monista) a este problema, inspirada na visão de Heil (2003) acerca das propriedades.

Em primeiro lugar, devemos considerar que, de acordo com o disposicionalismo, as leis são metafisicamente necessárias precisamente porque os objetos, em virtude de possuírem as propriedades que possuem, não poderiam se comportar de forma diferente.

Portanto, D e Q correspondem, na verdade, a uma única propriedade, apenas descrita de duas maneiras diferentes ou, mais precisamente, em níveis de abstração distintos. Conforme o contexto de investigação no qual estivermos inseridos, será mais relevante enfatizar as possíveis interações do elétron ou simplesmente o valor de sua carga. Entretanto, não há razão para considerar que se trata de duas propriedades de naturezas distintas. Com efeito, essa sugestão de resposta — que certamente precisa ser detalhada — está alinhada com os argumentos de Ghins, não exigindo maiores alterações em sua ontologia. Além disso, essa caracterização evita os embaraços envolvidos na noção de superveniência, bem como explicita a origem da necessidade metafísica das leis.

*** Nesta resenha, procuramos abordar os principais temas tratados pelo Professor Ghins ao longo de sua obra, atestando que ela funciona como uma excelente introdução tanto ao realismo científico quanto ao realismo nomológico. Ao mesmo tempo, discutimos alguns dos argumentos formulados pelo autor, com vistas a fazer avançar, ainda que modestamente, o debate para o qual Ghins tanto contribuiu.

Referências

Armstrong, D. M. 1983. What Is a Law of Nature? Cambridge: Cambridge University Press.

Bird, A. 2007. Nature’s Metaphysics: Laws and properties. Oxford: Clarendon Press.

Cani, R. C. 2017a. O Dilema Central é suficiente para refutar a visão disposicionalista das leis da natureza? In: J. D. Carvalho et al. (eds.) Filosofia da natureza, da ciência, da tecnologia e da técnica, pp.356–69. São Paulo: ANPOF. (Coleção XVII Encontro ANPOF).

———. 2017b. Realismo nomológico e os problemas da identificação e da inferência. Curitiba, PR. Dissertação de Mestrado. Universidade Federal do Paraná.

Cid, R. R. L. 2016. Uma crítica à metafísica conectivista de Ghins. Filosofia Unisinos 17(2): 233–43.

Ghins, M. 2017. Defending Scientific Realism Without Relying on Inference to the Best Explanation.

Axiomathes 27(6): 635–651.

Heil, J. 2003. From an Ontological Point of View. Oxford: Oxford University Press.

Lewis, D. 1973. Counterfactuals. Cambridge: Harvard University Press.

van Fraassen, B. 2002. The Empirical Stance. New Haven: Yale University Press.

———. 2008. Scientific Representation: Paradoxes of perspective. Oxford: Oxford University Press.

Notes

1 A distinção entre isomorfismo e homomorfismo corresponde, respectivamente, à diferença entre uma função bijetiva — em que há correspondência um-para-um entre todos os elementos do conjunto de partida e do conjunto de chegada da função — e uma função injetiva— em que a única exigência é que, para um valor no conjunto de chegada, não haja dois valores distintos no conjunto de partida. O homomorfismo, portanto, é uma noção menos exigente do que o isomorfismo.

2 A sigla se refere à formulação em inglês — inference to the best explanation (IBE) — frequentemente utilizada pela literatura.

3Num artigo recente, Ghins (2017) adverte que sua posição, nesse caso, é encarar a convergência entre mensurações como um fato que não demanda explicações ulteriores. Em linhas gerais, isso significa afirmar que o simples fato de a convergência ser verificada é o suficiente para argumentar em favor da visão realista.

4 Conforme salienta Cid (2016), é importante ressaltar que a crítica de Ghins ao necessitarismo categorialista se aplica somente à versão aristotélica dos universais, tal como defendida por Armstrong. Em linhas gerais, Cid tenta mostrar que é possível argumentar, de modo independente, que uma versão de necessitarismo baseada na concepção platonista dos universais (à la Tooley) escapa às objeções apresentadas. No entanto, parece-nos que a objeção mais forte ao necessitarismo categorialista não é o problema da inferência, mas o quidditismo. Em outros textos (Cani 2017a, pp.361–7; 2017b, pp.83–7), argumentamos que esse problema perpassa tanto a teoria de Armstrong quanto a de Tooley. Trata-se da objeção de que, se somente as propriedades categóricas são irredutíveis, então pode haver mundos possíveis em que as mesmas propriedades categóricas possuam perfis causais absolutamente distintos.

Nesse cenário, seria impossível fixar a identidade das propriedades (e, por conseguinte, das leis). É uma pena que Ghins não tenha discutido diretamente o quidditismo — ainda que o autor aborde a questão lateralmente — pois isso daria mais força a seu argumento.

Agradecimentos Ao Professor Michel Ghins, agradeço pelo incentivo, por comentários a uma versão anterior deste texto, bem como pelos diálogos acolhedores e instigantes acerca das temáticas aqui tratadas. O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001.

Renato C. Cani – Universidade Federal de Santa Catarina, BRASIL [email protected]

Uma introdução à metafísica da natureza: Representação, realismo e leis científicas – GHINS (FU)

GHINS, M. Uma introdução à metafísica da natureza: Representação, realismo e leis científicas. Curitiba: Editora Universidade Federal do Paraná, 2013. Resenha de: CID2, Rodrigo Reis Lastra. Uma crítica à metafísica conectivista de Ghins. Filosofia Unisinos, São Leopoldo, v.17, n.2, p.233-243, mai./ago., 2016´.

O livro de Michel Ghins (2013), Uma introdução à metafísica da natureza, é uma interessante tentativa de produção de uma metafísica das ciências. Esse é um projeto relevante, pois, se as nossas teorias científicas têm alguma relação com o mundo, gostaríamos de saber qual é. Uma metafísica das ciências nos diria o que fundamentalmente há no mundo e como isso se relaciona com os objetos teóricos das ciências. Este livro pretende justamente isso a partir de quatro capítulos. No primeiro, o autor introduz o problema da objetividade das nossas teorias científicas, vistas como modelos e leis para explicar fenômenos. No segundo capítulo, explora o debate entre realismo e antirrealismo em filosofia das ciências, defendendo que o mundo pode fazer as nossas teorias aproximadamente verdadeiras. No terceiro, mostra duas das principais concepções em metafísica das leis da natureza, as quais considera inadequadas para fundamentar a regularidade e a contrafactualidade, expondo, posteriormente, sua própria concepção das leis como sustentadas em propriedades disposicionais. Finalmente, no quarto capítulo, apresenta o debate sobre quais são as propriedades fundamentais, as categóricas ou as disposicionais, defendendo um realismo científico moderado com uma metafísica mista, tendo propriedades irredutíveis de ambos os tipos, sendo as leis científicas fundadas nos poderes causais existentes no nosso mundo, o que legitimaria que sejam chamadas de leis da natureza. Embora não tenhamos encontrado problemas em sua concepção de teoria científica, temos algumas críticas à sua adoção de uma metafísica dos poderes.

Ghins começa dizendo que a motivação principal da pesquisa científica é explicar e prever fenômenos. Para isso, os cientistas precisam ter uma atitude objetificante (chamada de “abstração primária”), na qual tomam o objeto do estudo separado de seu contexto holístico e tentam realizar observações independentes de suas subjetividades individuais. Com essa finalidade, eles abstraem algumas propriedades dos fenômenos dignas de interesse (o que se chama de “abstração secundária”) – apreensíveis por outras pessoas nas mesmas condições – e as organizam por meio de relações, formando um sistema. De modo mais específico, um modelo teórico é uma estrutura que satisfaz certas proposições, e ele é construído da seguinte forma, segundo Ghins: (i) estrutura perceptiva – primeiro selecionam-se as propriedades relevantes do fenômeno; (ii) modelo de dados – depois, são feitas medições particulares dessas propriedades com os instrumentos apropriados e esses dados são coletados, sendo os modelos de dados homomórficos à estrutura perceptiva; (iii) (sub)estruturas empíricas (também teóricas) – as informações obtidas nos modelos de dados são generalizadas e relacionadas numa subestrutura teórica de um modelo, de modo a permitir a previsibilidade; (iv) modelo teórico – relaciona as subestruturas empíricas com condições específicas (ceteris paribus); (v) teoria – uma classe de vários modelos que visam a dar conta de todo um domínio abrangente de tipos de objetos. “Por exemplo, a estrutura das medidas dos períodos orbitais pode ser embutida na classe dos modelos de dois corpos da mecânica clássica de partículas” (Ghins, 2013, p.22). Vejamos as Figuras 1 e 2 apresentadas por Ghins.

Para ser científica, além de empiricamente adequada, uma teoria precisa respeitar as condições de universalidade, simplicidade e poder explicativo (Ghins, 2013, p.24). O que será privilegiado depende de critérios pragmáticos, dados os objetivos da teoria, mas ainda assim uma teoria será mais empiricamente adequada quanto mais suas previsões forem precisas em relação às mensurações3. Uma teoria é empiricamente adequada “quando, para qualquer modelo de dados relevante, ela contém subestruturas empíricas homomórficas adequadas” (Ghins, 2013, p.22); é por isso que ela permite a previsibilidade. E ela não é empiricamente adequada “se as predições da teoria não forem conformes às observações nem for possível construir, com base na teoria, uma estrutura empírica homomórfica aos novos resultados” (Ghins, 2013, p.23).

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Figura 1. Abordagem de Ghins da formação de teorias científicas. Figure 1. Ghins’ account on the formation of scientific theories. Fonte: Ghins (2013, p.23).

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Figura 2. Abordagem de Ghins da formação de teorias científicas.

Figure 2. Ghins’ account on the formation of scientific theories. Fonte: Ghins (2013, p.27).

Sobre a universalidade, para Ghins (2013, p.25), quanto mais geral a teoria, mais preferível. Por exemplo,

a mecânica de Newton unifica a mecânica celeste de Kepler e a mecânica terrestre de Galileu […] A teoria unificadora, além de aumentar em muitas vezes a exatidão das predições, permite também predizer novas observações e, com isso, aumentar o poder preditivo, ou seja, em última instância, construir teorias empiricamente adequadas a um maior número de observações.

Com relação à simplicidade, ao poder explicativo e sua relação, eles geralmente são pensados como opostos, pois, quanto mais poder explicativo uma teoria possui, mais complexa ela se torna; no entanto, a complexidade dificulta o trabalho teórico, de modo que mais simplicidade seria preferível. Todavia, simplicidade demais – como uma teoria que apenas descreve os fatos do mundo – é inadequado, pois nada seria explicado.

Mesmo tendo a relação entre simplicidade e poder explicativo em vista, esta última noção não é facilmente caracterizável, dadas as distinções nas concepções sobre o que é uma teoria. “Hempel e Oppenheim identificam justamente o poder explicativo de uma teoria à sua capacidade de efetuar predições a partir de leis gerais” (Ghins, 2013, p.25); contudo, eles possuem uma concepção sintática de teoria, isto é, pensam uma teoria como um conjunto de proposições, dentre as quais contam as leis como proposições mais gerais. Há também uma outra visão, chamada de “concepção semântica” das teorias, que subestima o papel das leis e toma as teorias como classes de modelos. A alternativa desenvolvida por Ghins, chamada por ele de “teoria sintética”, é híbrida, no sentido de que uma teoria científica é vista como “um conjunto de modelos e de proposições satisfeitas (tornadas verdadeiras) por esses modelos” (Ghins, 2013, p.26)4. Em sua abordagem, uma teoria só é explicativa quando descreve mecanismos causais. Mas o que é um mecanismo causal?

Para Galileu e Descartes, um mecanismo é um conjunto de partes dotadas de formas geométricas cujas posições e velocidades estão relacionadas entre si. […] Para a ciência matematizada, um mecanismo nada mais é que um conjunto de grandezas – posições, velocidades, acelerações, formas geométricas, massas etc. – que mantêm entre si relações matemáticas. […] De modo bastante amplo, um mecanismo é um modelo, uma estrutura de elementos quantificáveis organizados por relações matemáticas, isto é, leis – e, agora acrescento, leis causais (Ghins, 2013, p.30).

O que são leis causais e o que são leis não causais? Um dos exemplos de lei trabalhado no livro de Ghins é a lei geral dos gases (PV=KT), fundamentada na teoria cinética dos gases. Ela é considerada uma lei de coexistência, por não ser temporal; portanto, ela não seria uma lei causal. Segundo Ghins, uma lei causal deve ser uma equação diferencial com uma derivada em relação ao tempo, já que

um mecanismo explicativo no sentido geral é um sistema cujo domínio, isto é, o conjunto das grandezas que são seus elementos, satisfaz leis de natureza causal. […] [Um] mecanismo não é mais que um sistema de propriedades quantificadas que tornam verdadeiras as leis causais, as quais descrevem a evolução dos valores daquelas propriedades ao longo do tempo. (Ghins, 2013, p.31).

Mesmo assim, a teoria cinética dos gases é explicativa, porque, ainda que a lei dos gases ideais não seja causal e, consequentemente, não descreva mecanismo algum, a teoria cinética explica como a variação nômica indicada na fórmula ocorre, a saber:

[…] a pressão resulta dos choques das moléculas com a parede do recipiente e a temperatura é proporcional à energia cinética média das moléculas do gás. […] A explicação da lei dos gases perfeitos repousa sobre leis5 fundamentais e causais que descrevem o comportamento de corpos considerados como pontos massivos sem extensão (Ghins, 2013, p.28).

Segundo Ghins, “a lei de Boyle-Mariotte não descreve um processo causal. Ela descreve uma situação num estado de equilíbrio. Para obter uma explicação, é necessário se referir às leis causais que descrevem os processos microscópicos” (2013, p.44). Por outro lado, as leis da teoria cinética de Maxwell-Boltzman, sobre a qual a explicação da lei de Boyle-Mariotte se apoia, são leis causais, já que são proposições que descrevem processos causais possíveis. As leis dessa teoria cinética são leis causais, porque as leis da mecânica são temporais, porque elas permitem explicar as variações temporais de propriedades determinadas ao longo de um processo ao reportá-las a causas definidas e porque “essas leis possuem termos que assumem a forma de derivadas temporais e que propomos identificar a efeitos. As variações de velocidade – as acelerações – são efeitos cujas causas são as forças pelas quais são produzidas as acelerações” (Ghins, 2013, p.43).

Mas em que medida pode-se aceitar que os modelos de nossas teorias representam corretamente a realidade? Em que medida pode-se acreditar que as leis científicas são verdadeiras? Essas são tanto questões ontológicas sobre a realidade dos objetos teóricos quanto questões epistemológicas sobre os limites do conhecimento científico. Construímos estruturas teóricas para dar conta de fenômenos, que, na realidade, são holisticamente apreendidos, e não isoladamente como o objeto científico. A dúvida, tal como expôs Bas van Fraassen, segundo Ghins, é “como uma entidade abstrata, como uma estrutura matemática, pode representar uma coisa que não é abstrata, uma coisa na natureza?” (2013, p.34). Essa objeção é conhecida pelo nome de “objeção da perda da realidade”.

A resposta de Ghins é dizer que ela se funda na ideia equivocada de que o cientista representa a realidade em seu modelo de dados e, consequentemente, nas subestruturas teóricas, nos modelos e nas teorias. “Quando um cientista afirma que o volume de um gás é igual a 1 dm3, ele pretende afirmar uma verdade a respeito de certas entidades fenomênicas. Asserções desse tipo não são representações” (Ghins, 2013, p. 35), mas são antes tentativas de descrição de certos aspectos da realidade. Para haver qualquer representação possível de uma entidade, tem de haver uma descrição anterior de suas propriedades. Tomar essas descrições de propriedades como se fossem representações implica criar uma distinção difícil de ser sustentada entre a contemplação do fenômeno do ponto de vista de lugar nenhum e as próprias construções representacionais. Toda contemplação de fenômeno é a partir de um ponto de vista, por mais que o ponto de vista seja intersubjetivo. As estruturas perceptivas, embora abstraídas dos objetos, não são estruturas abstratas, mas antes concretas, já que são apreendidas de situações particulares. Por exemplo, observamos uma bola de bilhar e vemos que ela tem a propriedade volume; não estamos representando a propriedade presente na bola como volume, mas estamos abstraindo uma propriedade da bola, a qual chamamos de “volume”, e depois medindo sua quantidade de acordo com uma medida convencionada. O que promove a objetividade, nessa concepção, é o acordo intersubjetivo com relação às estruturas perceptivas e aos modelos de dados (Ghins, 2013, p.38). E a posição metafísica defendida sobre a verdade, em Ghins, é a correspondentista (uma proposição é feita verdadeira – ou aproximadamente verdadeira – por algo do mundo), ainda que se assuma que nenhuma teoria da verdade como correspondência atualmente é satisfatória.

Poder-se-ia contra-argumentar a Ghins dizendo que não são apenas as propriedades abstraídas que têm de ser remetidas ao mundo, mas também as operações matemáticas. Sabemos que “volume” diz respeito a uma certa propriedade observável de um objeto, mas ao que diz respeito o termo “+”? Certamente, não significa “juntar”, pois podemos somar sem juntar coisas. Pode significar “reunir num conjunto”; mas conjunto é também um objeto matemático, que ainda não está se relacionando com a realidade. A objeção da perda da realidade, quando entra no domínio dos operadores matemáticos, leva a difíceis problemas… Não temos uma solução satisfatória para eles, mas cremos que Ghins também não. Talvez ninguém tenha. Se for o caso que ninguém tenha, então a melhor solução é deixarmos o nosso juízo em suspenso enquanto não obtivermos uma resposta satisfatória e continuarmos utilizando as operações matemáticas até lá.

Uma outra objeção que poderia ser feita, expressa pelo próprio Ghins, é que, embora não haja representação na estrutura perceptiva, nem no modelo de dados, nem na subestrutura teórica, existe representação quando começamos a criar modelos teóricos e teorias nas quais falamos sobre entidades inobserváveis.

No caso dos gases, é fácil verificar, por observações imediatas, que aquilo que está contido dentro de um recipiente tem de fato um volume, uma pressão e também o que podemos chamar de grau de calor. […] Por outro lado, a identificação de um gás com um conjunto de partículas que se movem e são dotadas das propriedades de possuir uma massa e de mover-se a certa velocidade é muito mais problemática. […] As partículas constitutivas de um gás não são visíveis e suas velocidades médias não são nem observáveis nem individualmente mensuráveis (Ghins, 2013, p.40-41).

Veja que a objeção aqui não é contra as observações imediatas, mas antes contra a explicação com inobserváveis que a teoria fornece para o fenômeno.

A resposta do autor é que, na medida em que a teoria tem adequação empírica, além das condições já descritas, isso é um forte indício, embora não uma razão suficiente, em favor de sua interpretação realista moderada, na qual as leis científicas podem ser aproximadamente verdadeiras. E não é razão suficiente por causa de uma objeção conhecida pelo nome de “argumento da subdeterminação da teoria” pelas estruturas perceptivas e pelos modelos de dados: “[…] visto que, em princípio, é sempre possível construir várias teorias incompatíveis entre si, mas que salvam as estruturas perceptivas relevantes, não temos nenhuma razão para acreditar na verdade, ao menos aproximada, de apenas uma dentre elas” (Ghins, 2013, p.41).

A resposta de Ghins (2013, p.41) é dizer que não basta indicar que pode haver teorias alternativas, mas deve-se fornecer alguma ou mostrar que uma já está sendo construída. Ele aceita que as teorias são realmente subdeterminadas pelos dados e, por isso, acaba aceitando que apenas a adequação empírica não garante a verdade de uma teoria. Ainda que se coloque a capacidade explicativa na história, haverá as dificuldades de dizer o que é uma boa explicação e como o fato de algo ser uma boa explicação, que é algo patentemente epistêmico, se relaciona com a verdade, que é algo metafísico. Pode-se dizer que uma teoria explicativa nos abre um acesso cognitivo a certas realidades externas e inobserváveis. E isso pode ser feito, sem muita dificuldade, segundo Ghins, ao aceitarmos a verdade das leis causais e uma noção de explicação baseada em mecanismos descritos por leis causais. O que Ghins defende é que (2013, p.45)

Nossas crenças na existência de objetos inobserváveis, tais como as moléculas, as partículas elementares, o campo gravitacional, os vírus, os genes, as placas tectônicas etc., encontram sua justificação a partir de considerações análogas àquelas que justificam nossas crenças na existência de entidades observáveis […] Da mesma forma, nossa crença na existência dos elétrons é justificada pela possibilidade de medir suas diversas propriedades de carga, spin e massa por meio de métodos independentes que proporcionam resultados precisos e convergentes.

A possibilidade do erro existe nessa concepção, e ela é remetida à própria possibilidade do erro no que diz respeito a entidades observáveis pelos nossos sentidos. Porém nós conseguimos diminuí-la ao repetirmos as observações, utilizando também outros sentidos além da visão e verificando se nossas observações são concordantes – o que, no caso do objeto científico, pode ser pensado como os instrumentos de mensuração. Por exemplo, no caso das moléculas (Ghins, 2013, p.44),

temos que dispor de métodos de mensuração que permitam determinar o valor da velocidade média, da massa e do número de moléculas. Além disso, é preciso que esses processos de medida da velocidade média e do número de moléculas sejam independentes dos métodos de mensuração da temperatura e da pressão.

Isso já ocorre, dado que podemos medir o mol de um gás por métodos independentes que fornecem resultados que convergem com um alto grau de precisão.

Outro argumento avaliado pelo autor é o conhecido “argumento do milagre” (ou no-miracle argument). Este nos diz que o realismo é a melhor explicação do sucesso empírico (previsões de mensurações bem-sucedidas) de nossas teorias, pois, se nossas teorias não são ao menos aproximadamente verdadeiras, então seu sucesso empírico é um milagre. Assim, ou aceitamos que as propriedades inobserváveis postuladas por uma teoria bem-sucedida seriam de entidades reais cuja existência é independente de nossos desejos, de nossas medidas e da nossa linguagem, ou aceitamos o sucesso, por milagre, da teoria.

Segundo Ghins, pode-se objetar a esse argumento que ele não é um argumento decisivo a favor do realismo e tem um caráter científico contestável, já que não tem a forma da explicação científica, baseada em leis causais, para dar conta da relação entre a verdade e o sucesso empírico. A solução de Ghins (2013, p.47) é dizer que a concordância entre as mensurações é mais exigente que o sucesso empírico, de modo que pode fundamentar melhor a verdade – ao menos a verdade aproximada – de uma teoria. Além disso, ele não pretende “explicar – e, certamente, não de modo científico – a concordância entre as mensurações de uma propriedade pela existência de uma entidade que a possui” (p. 47). O objetivo de Ghins, com o argumento do milagre, não é contrastar uma pseudoexplicação milagrosa com uma explicação de fato, mas fazer uma analogia entre razões para crer na existência de, por exemplo, um abacaxi, com diversas propriedades observáveis, e de um objeto, como um elétron, que só tem propriedades inobserváveis.

É possível, no entanto, objetar ainda que, na medida em que não conhecemos o mecanismo causal operante nos nossos instrumentos de mensuração, não podemos conhecer os mecanismos causais que viemos a conhecer a partir dos instrumentos de mensuração. Entretanto, isso não leva em consideração que, na experiência sensível ordinária, os mecanismos causais dos nossos sentidos (nossos instrumentos sensíveis de medição) não nos são totalmente conhecidos. Na experiência científica, diz-nos Ghins, os mecanismos causais dos instrumentos científicos de medição são bem conhecidos e descritos por meio de leis causais fundamentais. Ainda que isso não seja bem o caso e que não conheçamos perfeitamente o mecanismo causal dos nossos instrumentos de medida, conhecê-lo perfeitamente não é necessário para coletarmos dados com precisão; por exemplo, Galileu conseguiu dados precisos sobre os corpos celestes, mesmo sem conhecer as leis óticas envolvidas no telescópio.

O objetivo de Ghins até aqui é defender uma versão moderada – dado permitir a falsificação de teorias – de realismo cientifico, a qual ele pensa dar conta das objeções da perda da realidade e da subdeterminação da teoria, “argumentando [sobre entidades observáveis] que o êxito de nossas construções representacionais sustenta-se na verdade de proposições predicativas acerca dessas entidades” (2013, p.49-50). E sobre as entidades inobserváveis, Ghins crê que a razão pela qual as teorias têm poder explicativo permite-lhe falar verdadeiramente (aproximadamente) sobre elas. No entanto, o poder explicativo é uma exigência epistêmica, que o mundo não precisa cumprir, de modo que aquele não forneceria razões suficientes para crermos nas entidades inobserváveis das teorias. Por isso, Ghins critica o argumento do milagre como uma razão para crermos nas entidades inobserváveis postuladas pelas teorias. Embora esse argumento favoreça sua analogia entre razões para crer na existência de entidades observáveis e de não observáveis, ele não é aceito como conclusivo pelo autor. Sua razão principal a favor do realismo dessas entidades teóricas é que “estabelecemos nossas crenças na existência de entidades observáveis por observações repetidas e variadas, [e] defendemos a existência de entidades inobserváveis por meio de métodos de mensuração que sejam diversos e que proporcionem resultados concordantes” (Ghins, 2013, p.50). Seja qual for o caso, Ghins nos diz que, para crer na existência de certas entidades, seja um abacaxi ou um elétron, realizamos observações rigorosas e concordantes. Em nossas teorias científicas, segundo Ghins, expressamos, além de certas propriedades de certas entidades, também leis gerais que são satisfeitas pelos modelos teóricos de nossas teorias. Mas há uma grande divergência filosófica sobre a existência dessas leis científicas como leis da natureza. Por exemplo, segundo Ghins, Bas van Fraassen e Ronald Giere, seguidores da abordagem semântica das teorias científicas, defendem que o conceito de lei, além de ser problemático, é simplesmente inútil para compreender a natureza das teorias e da prática científica, que se utilizaria apenas de modelos. Outros filósofos, como Hempel e Oppenheim, defendem uma concepção sintática, na qual uma teoria é apenas um conjunto de proposições, das quais algumas são leis. Ghins discorda de ambos, por pensar que eles empobrecem as teorias científicas, já que não as representam adequadamente; por isso, ele constrói uma teoria híbrida, chamada por ele de “teoria sintética”, que aceita que as teorias são constituídas de modelos (teoria semântica) com leis (teoria sintática) satisfatíveis por tais modelos.

Mas o que seriam, na realidade, essas leis? Para responder essa pergunta, o caminho de Ghins é o seguinte: (i) avaliar a teoria regularista das leis; (ii) avaliar o necessitarismo contingencialista das leis; (iii) defender sua teoria necessitarista das leis metafisicamente necessárias como (Ghins, 2013, p.51, sic.)

proposições universais pertencentes a teorias empiricamente adequadas e explicativas, [e (…)] consideradas como sendo aproximada e parcialmente verdadeiras a propósito de sistemas reais. Uma teoria científica é composta de um conjunto de modelos e de proposições [d]entre as quais algumas alcançam o estatuto de leis.

Uma lei científica poderia ser considerada também uma lei da natureza, “se for possível elaborar argumentos em favor da existência de entidades metafísicas, tais como, por exemplo, disposições naturais ou poderes causais, que a tornassem aproximadamente verdadeira” (Ghins, 2013, p.52), e Ghins tenta fazer isso, mostrando que a regularidade e a contrafactualidade das leis se fundamentam nas propriedades disposicionais.

O regularismo (pelo menos na sua forma ingênua) toma as leis como proposições condicionais materiais, quantificadas universalmente, que são feitas verdadeiras pelos estados de coisas particulares, ou seja, toma-as como regularidades. Nessa concepção, as leis são verdadeiras, porém não necessárias. O primeiro problema que surge para o regularista é o chamado “problema da identificação”, que é a conjunção de dois problemas, a saber, (i) o problema (epistêmico) de saber como distinguir leis de regularidades meramente acidentais e (ii) o problema (ontológico) de indicar qual é o fato acerca do mundo que confere a uma regularidade seu estatuto nomológico. Por exemplo, seria dizer o que faz ser uma lei a regularidade de que toda pedra de urânio tem menos de 1 km3 e que não está presente na regularidade de que toda pedra de ouro tem menos de 1 km3 (já que consideramos este último como um mero fato contingente), e dizer quais critérios utilizaremos para distinguir um tipo de generalização de outro.

O regularismo sofisticado de Mill-Ramsey-Lewis, para responder 1, o problema epistêmico, diz-nos que uma lei é uma proposição universal que figura “como teorema (ou axioma) em todos os sistemas dedutivos verdadeiros que combinam simplicidade e força da melhor maneira” (Ghins, 2013, p. 54). Como simplicidade e força explicativa são opostos, seria adequado que mantivéssemos a melhor combinação entre eles. E ser um teorema ou axioma faz as leis serem algo mais que meras regularidades, a saber, elas são regularidades que estão presentes em todos os sistemas dedutivos verdadeiros equilibrados. Leis vácuas, como a lei newtoniana, que não são satisfeitas por nenhum sistema real, seriam leis na medida em que contribuem para maior simplicidade da totalidade da construção axiomática. Essa resposta certamente alivia um pouco o problema da identificação para o regularista, ao menos em sua parte epistêmica; porém, com relação à parte ontológica, “Lewis permanece silencioso sobre o que, na realidade do mundo, torna um sistema axiomático mais satisfatório que outro segundo seu critério de ‘melhor equilíbrio de simplicidade e força’” (Ghins, 2013, p.55). Outros problemas dessa forma de regularismo são que: (a) poucas teorias são axiomatizadas no sentido de Lewis e algumas não são nem axiomatizáveis, (b) o equilíbrio entre os critérios de simplicidade e força não foi precisado adequadamente, (c) e esses critérios são subjetivos, já que são epistêmicos e que não há necessidade alguma de a realidade os respeitar.

O neorregularismo de Psillos (2002, p.154 in Ghins, 2013, p.57), por sua vez, “defende uma posição realista segundo a qual a simplicidade de um sistema axiomático reflete a simplicidade objetiva da organização das regularidades fatuais”. Isso salva o regularismo do problema ontológico, mas, supostamente, segundo Ghins, o deixa à mercê do problema epistêmico, pois, ainda que identifique as leis com um tipo de regularidade e atribua simplicidade e uma estrutura nomológica para o próprio mundo, a contrapartida objetiva da lei não é acessível à observação direta, tal como desejaria que fosse o espírito empirista do regularista, e, consequentemente, não seria possível para o regularista distinguir as leis das regularidades que não são leis.

Não sabemos se esse argumento é bom, pois, se já aceitamos que o regularista pode distinguir leis de acidentes pelo fato de as leis possuírem uma posição especial nos melhores sistemas dedutivos, então o fato de ele atribuir a simplicidade desses sistemas dedutivos à existência de simplicidade no mundo não o impede de manter a distinção que resolveria o problema epistêmico. Ele não precisa de uma contraparte empiricamente acessível da lei; precisa somente de uma distinção, que, a princípio, poderia ser mantida, ao manter-se o espírito lewisiano, pela distinção de a lei ser um teorema ou axioma dentro de todos os melhores sistemas dedutivos para os fatos do mundo.

Um outro problema sério e persistente para qualquer forma de regularismo – na verdade, para qualquer forma de contingencialismo com relação às leis – é o problema da contrafactualidade. Se as leis do regularista são contingentes, elas não podem garantir a verdade de condicionais contrafactuais – condicionais cujo valor de verdade do antecedente é o falso. Tais condicionais são considerados trivialmente verdadeiros segundo a lógica de predicados de primeira ordem, se vistos como condicionais materiais comuns, já que um condicional material só é falso no caso de a antecedente ser verdadeira e a consequente ser falsa, e verdadeira em qualquer outra situação. Mas, na literatura filosófica, há muito trabalho sobre as condições de verdade dos contrafactuais que não os trivializariam. O fato de as leis regularistas não garantirem a verdade não trivial dos contrafactuais as deixa mais afastadas das leis científicas, já que estas garantiriam a contrafactualidade, diz-nos Ghins.

No entanto, pensamos nós, há uma objeção realizável por Lewis (1973), que tem uma teoria na qual ele tenta dar condições de verdade para os contrafactuais em termos de o que é o caso no mundo possível mais próximo. Um dos critérios para a proximidade entre os mundos é a semelhança de leis. Assim, no regularismo lewisiano, um contrafactual tal como “se Fa fosse o caso, Ga teria sido o caso” seria verdadeiro, se no mundo possível mais próximo Fa e Ga são o caso. Esse mundo possível é aquele com as mesmas leis que o nosso, mas com a antecedente do contrafactual sendo verdadeira. Uma objeção ao pensamento de Lewis é que seu contrafactual seria verdadeiro em muito menos situações do que as que esperaríamos. Um contrafactual cuja verdade surge a partir da verdade em todos os mundos possíveis relevantes, em vez de apenas no mais próximo, garante essa abrangência da verdade contrafactual, que não está presente na garantia da verdade contrafactual de Lewis. A abrangência científica da verdade dos contrafactuais chega a casos em que até algumas das leis não se mantêm (i.e., no caso de alguns contrafactuais contralegais), enquanto o mesmo não podemos dizer da teoria de Lewis.

O necessitarismo de Dretske-Armstrong-Tooley também não escapa das críticas do autor. Aquele nos diz que uma lei da natureza é uma relação universal contingente de necessitação entre universais imanentes, que garante (mais que a total contingência) a verdade no mundo atual, mas não em todos os mundos possíveis. E a relação de necessidade que opera ao nível dos universais implica também uma relação de necessidade ao nível dos indivíduos particulares que os exemplificam: N(F,G) → (x) N(Fx,Gx). Mas, a partir dessa definição, temos um problema, conhecido pelo nome de “problema da inferência”, de explicar a conexão entre a necessidade armstronguiana (necessitação) no nível dos universais e a do nível dos particulares6. A resposta de Armstrong é que a relação causal do domínio dos particulares e a necessitação são uma e a mesma relação, dado que os universais estão presentes nos particulares – o que tornaria a inferência acima, em algum sentido, analítica. Diferentemente do regularismo, o necessitarismo de Armstrong permitiria que a necessitação fosse observável, já que ele diz que observamos a necessitação, isto é, a causalidade, quando, por exemplo, sentimos o peso do nosso corpo. Um governista ante rem (teórico das leis como relações universais entre propriedades universais transcendentes), pensamos nós, também poderia dar conta desse problema ao dizer que a causalidade singular é instância da necessitação e que observamos, indiretamente, a necessitação por meio da observação da causalidade singular, tal como observamos, indiretamente, o azul universal ao observarmos uma instância sua em algo particular. De todo modo, observar os poderes das coisas também não é algo tão incontroverso assim.

Além de tomar essa observabilidade como bastante controversa, Ghins julga que há um problema não resolvido por necessitaristas (problema esse também para regularistas), a saber, distinguir propriedades naturais de não naturais. O problema é que, se não houver distinção e as propriedades de Goodman (propriedades como verzul) forem avaliadas pelos cientistas, teremos leis mutáveis no nosso sentido, embora imutáveis no de Goodman.7 Outros problemas, ainda, para o necessitarismo de Armstrong é que ele não dá conta de leis probabilísticas adequadamente – segundo Ghins, van Fraassen, em Laws and symmetries (1989, p.109-116), mostrou que a solução armstronguiana não era adequada – e nem de leis não causais (como as leis de conservação), além de não mostrar que a necessitação e a causalidade singular são a mesma relação.

Pensamos que é possível, tanto para teorias aristotélicas como a de Armstrong quanto para as teorias platônicas como a de Tooley, dar conta de leis de conservação como deriváveis de outras leis; por exemplo, se toda lei diz como uma forma de energia se transforma em outra, mas não há leis que determinem como a energia se extingue ou aumenta, então, por lógica apenas, chegamos à conclusão de que a quantidade total de energia deve ser sempre a mesma. Há proposições necessárias (se as leis forem necessárias) implicadas por leis que não são elas próprias leis, pois não são relações de necessitação entre universais. As leis probabilísticas, no entanto, são problemáticas; mas acreditamos que são problemáticas para qualquer teórico que seja: regularista, conectivista (metafísico dos poderes), governista in rebus (leis como universais imanentes) ou governista ante rem (leis como universais transcendentes).

Dados os problemas que Ghins (2013, p.64) aponta nessas concepções, sua proposta é

identificar epistemicamente as leis científicas como sendo proposições de forma lógica universal e (aproximadamente) verdadeiras, empregadas para construir teorias científicas explicativas empiricamente bem sucedidas. […] Segundo essa proposta, proposições universais podem ser chamadas de leis somente no contexto de uma teoria, como na concepção de Mill-Ramsey-Lewis. […] [Sua ideia é que] não se resolve o problema da identificação determinando o fundamento da necessidade das leis, mas estabelecendo sua verdade no contexto de uma teoria científica.

Assim, uma proposição é uma lei científica se ela fizer parte, como um teorema ou axioma, de uma teoria científica, interpretada realisticamente, que contém, entre outras coisas, proposições gerais com o status de lei. E essas leis científicas seriam leis da natureza na medida em que a verdade aproximativa das leis científicas é sustentada em poderes universais realmente existentes, que se expressam nas disposições essenciais das entidades naturais. Acreditamos que a proposta de identificar a lei científica com um teorema/axioma de alguma teoria científica é interessante, pois captura nossas intuições sobre a lei científica, mas identificar as leis científicas com poderes, e não com leis da natureza, essa proposta já é um tanto debatível.

A ideia de uma metafísica dos poderes é justamente apresentar qual é o fundamento modal que as leis científicas teriam, já que, a princípio, se elas são proposições descritivas, não podem logicamente implicar proposições que contenham modalidades, como os contrafactuais. Portanto, se há algo que conecta leis e proposições contrafactuais, temos de saber o que é. E, além disso, temos de explicar a existência de regularidades na natureza. As teorias anteriormente apresentadas têm problemas com a contrafactualidade, por causa da contingência; o regularismo, mais especificamente, têm problemas também com explicar a existência de regularidades na natureza, pois, se o que torna as leis verdadeiras são meras regularidades, aquelas apenas descrevem estas e não explicam por que estas acontecem; e o necessitarismo de Armstrong, embora dê conta da explicação da regularidade, tem os problemas indicados anteriormente, acredita Ghins. Se tivermos conseguido fugir dos problemas que afetam também a concepção conectivista de Ghins, então a posição governista seria, pelo menos, equivalente, em poder explicativo, àquela.8

A concepção de Ghins é de que o que torna verdadeira a proposição ‘p é uma lei,’ fundamentando assim a força modal de p, é a existência de poderes causais irredutíveis e essenciais às entidades que os têm (constituem necessariamente suas identidades). Mas o que é ter um poder causal, isto é, uma propriedade disposicional? Diz-nos Ghins (2013, p.69-70):

Uma entidade x possui a disposição D de manifestar a propriedade M em resposta ao estímulo T nas circunstâncias A, se e somente se, na eventualidade da entidade x ser submetida a T no ambiente A, x necessariamente manifestar M. Formalmente, temos (Bird, 2007, p.36-37):

D A,T,M x ↔ (Ax ˄ Tx) □→ Mx      (a)

Esse último enunciado pode ser considerado uma definição da propriedade disposicional D A,T,M . Então, é analiticamente verdadeiro e necessário que □DA,T,M x ↔ (Ax ˄ Tx) □→ Mx     (b)

Por exemplo, os copos de certos tipos de vidro têm a capacidade de se quebrar em certos tipos de circunstâncias (como quando sofrem certa quantidade de impacto e estão ausentes circunstâncias que agiriam como “antídotos” do processo causal). É em virtude dessa capacidade, poder ou propriedade disposicional que é necessário que o copo se quebre quando submetido a uma tal circunstância. E a relação entre essas disposições e a identidade de certos objetos é necessária; elas fazem parte da essência de tais objetos. Assim, seria parte da essência dos corpos frágeis que eles tenham uma disposição para se quebrar em certas circunstâncias. Se algo não tem esse poder de se quebrar, simplesmente não é um corpo frágil.

Um primeiro problema que vemos nessa concepção é a imaterialidade de um poder. Um copo de vidro tem o poder de se quebrar. Onde está esse poder? Você pega o vidro, leva para o microscópio e tudo que você vê são moléculas, uma junto à outra. Não vê poder algum de se quebrar; na verdade, não vê poder algum. Se há poderes nas coisas, eles são imateriais, estão presentes de algum modo estranho nas coisas. O teórico dos poderes tem de explicar como as coisas têm poderes. O teórico das leis, se for também categoricalista, dirá que a capacidade dos objetos advém de suas propriedades categóricas estarem submetidas a leis da natureza, e não que há capacidades ocultas em cada um dos objetos. É contra-argumentável que a imaterialidade das leis também atesta contra elas. Duas respostas são possíveis. Se defendemos o substantivismo armstronguiano, as leis podem ser cridas como materiais, pelo fato de os universais estarem presentes nas coisas particulares, e, se defendemos o substantivismo ante rem, ao estilo de Tooley (1977), podemos dizer que a imaterialidade das leis é menos problemática que a imaterialidade dos poderes, pois os poderes se movem junto com seus hospedeiros, enquanto as leis não se movem, e o movimento de algo imaterial é algo que, patentemente, precisa de explicação.

Uma objeção que consideramos ainda mais poderosa contra o teórico dos poderes é que ele não consegue descrever algo que um teórico categoricalista conseguiria, como, por exemplo, o resultado do contato de duas partículas como um resultado do contato das capacidades ou potencialidades ou poderes dessas partículas. Veja a seguir (Cid, 2011, p.40).

O conectivista poderia tentar dizer que as partículas do tipo X têm o poder de manifestar F quando interagem com as partículas do tipo Y9 e que as partículas do tipo Y têm o poder de manifestar F quando interagem com as partículas do tipo X, e que não há nada mais para a lei de que XY manifesta F do que esses poderes de X e de Y. O problema de dizer tal coisa é que a manifestação de F estaria sobredeterminada, já que ambas as partículas fariam F ser manifestado. Uma forma de tentar solucionar tal problema é dizendo que as partículas do tipo X têm o poder de manifestar F1 quando interagem com as partículas do tipo Y, que as partículas do tipo Y têm o poder de manifestar F2 quando interagem com as partículas do tipo X, e que (F1˄F2)→F. Poderíamos objetar a essa resposta dizendo que teríamos que explicar, então, como (F1˄F2)→F; e o conectivista não é capaz de explicar isso sem cair novamente no problema da sobredeterminação ou num regresso ao infinito. Pois se (F1˄F2)→F, então: (i) ou F1 está disposto a manifestar F quando estimulado por F2, e F2 está disposto a manifestar F quando estimulado por F1, (ii) ou F1 está disposto a manifestar F3 quando estimulado por F2, F2 está disposto a manifestar F4 quando estimulado por F1, e (F3˄F4)→F. O caso (i) faria F estar sobredeterminado. E com relação ao caso (ii), o problema seria ter que explicar a implicação de F3˄F4 para F, que só seria possível criando um caso como (i), que sobredeterminaria F, ou criando um outro caso como (ii) ad infinitum.

Ainda uma objeção, esta apontada por Ghins, contra uma teoria das disposições é chamada de “objeção da virtude dormitiva”: explicar a capacidade do vidro de se quebrar recorrendo a uma disposição para se quebrar (fragilidade) não nos explica nada sobre a capacidade de se quebrar; é apenas nomear a capacidade que já sabíamos que lá estava. A resposta de Ghins é dizer que, embora atribuir uma disposição não explique o fenômeno, ela nos fornece uma informação importante, de modo que permite que, por exemplo, nos previnamos da manifestação da disposição (protegendo o copo, talvez), além de constituir um convite a buscar o processo físico, químico, psicológico, etc. subjacente à manifestação das disposições. Com essa atribuição de propriedade disposicional, “acrescentamos um elemento suplementar, a saber, que a base desse comportamento regular é uma propriedade disposicional enraizada numa entidade. Ao afirmar tal coisa, operamos uma transição do nível puramente descritivo para o nível modal” (Ghins, 2013, p.73, grifo meu). Como pensamos ter mostrado, um teórico categoricalista, que não aceita a existência de disposições, descreveria a atribuição de propriedade disposicional de uma outra forma, com propriedades categóricas e leis (embora, em seu discurso superficial, possa achar conveniente apenas falar como se houvesse disposições, mas mantendo, em seu discurso profundo, que não há).

Contudo, Ghins sabe o quão debatível é falar de propriedades disposicionais irredutíveis e ele acaba adentrando na discussão sobre se, fundamentalmente, o que há na realidade são propriedades disposicionais irredutíveis ou se são propriedades categóricas irredutíveis. As propriedades categóricas seriam as propriedades primárias das coisas sobre as quais estariam fundamentadas todas as outras propriedades. Por exemplo, Armstrong (1983) pensa que as propriedades primárias são a forma, o tamanho e a organização interna, e que cores, sabores e disposições em geral são qualidades secundárias fundadas nas primárias. A ideia é que “as qualidades primárias, conforme se supõem, são definíveis independentemente de qualquer disposição das entidades que as possuem […] as qualidades primárias tornam possível a ação dos corpos uns sobre os outros e, em particular, a ação deles sobre os nossos órgãos sensoriais” (Ghins, 2013, p.75); elas seriam propriedades espaçotemporais.

Algumas objeções a essa ideia, feitas por Ghins, são que quantidades, tais como a carga ou a constante de Coulomb, não poderiam ser reduzidas a propriedades espaçotemporais e que é duvidoso que a estrutura do elétron, se ela existir, seja espacial. Para sanar esse problema, ele sugere que, na classe das propriedades categóricas, devemos incluir as propriedades e relações correspondentes aos símbolos matemáticos empregados na formulação das teorias científicas. Isso permitiria ainda a distinção entre propriedades categóricas e disposicionais, já que um elétron possuiria uma massa e uma carga, independentemente da possibilidade de interagir com outras massas e cargas. A dificuldade que prevemos com essa concepção é explicar o que seriam cargas, por exemplo, sem reduzi-las a algo que contenha uma disposição para atrair/repelir. Certamente o categoricalismo estrito não poderia aceitar cargas como propriedades categóricas. Ele teria de reduzir essas capacidades de atrair/repelir a propriedades categóricas governadas por leis. Sobre os símbolos matemáticos, a dificuldade é explicar o que, ontologicamente, são eles; mas essa é uma dificuldade, inserida no seio da filosofia da matemática, que todos os teóricos, das leis e dos poderes, enfrentam.

A teoria de Ghins, diferentemente de teorias estritamente categoricalistas (como o regularismo e o necessitarismo armstronguiano), é mista, por aceitar a existência tanto de propriedades categóricas, pensadas de modo abrangente, quanto de propriedades disposicionais – em vez de tentar reduzir estas últimas a propriedades categóricas. Ele pensa assim, porque, por exemplo, “ao lado de suas propriedades categóricas, o elétron possui igualmente propriedades disposicionais, tal como a capacidade de interagir com partículas e campos em conformidade a certas equações matemáticas como, por exemplo, as leis de Maxwell” (Ghins, 2013, p.84).

A razão para essa concepção mista é que, embora seja razoável supor o categoricalismo e, consequentemente, que as propriedades A, T e M – de DA,T,M x ↔ (Ax ˄ Tx) □→ Mx – possam ser caracterizadas exclusivamente por propriedades categóricas, ainda seria preciso que a definição não recorra a modalidades, já que as propriedades categóricas não seriam propriedades modais. O categoricalismo toma as propriedades como tendo uma natureza passiva; nele, “as propriedades modais não são inerentes às entidades que exemplificam as propriedades F e G, mas lhe são externamente impostas. Se o sal possui a disposição a dissolver-se em água, é porque existe uma relação de necessitação que liga a propriedade de ser sal à propriedade – complexa – de dissolver-se em água” (Ghins, 2013, p.81-82). Assim, o categoricalista deveria dar conta da implicação modal □→, à direita da bicondicional, sem usar, no lado esquerdo, propriedades modais. Isso parece uma tarefa impossível de realizar, segundo Ghins. Ele nos diz que isso é o “suficiente para fazer fracassar toda tentativa de reduzir inteiramente o significado de uma propriedade disposicional àquele de propriedades categóricas” (Ghins, 2013, p.81) e para fornecer razões para a crença em poderes irredutíveis a propriedades categóricas.

O que poderíamos responder a isso é que, em primeiro lugar, a tentativa de redução não é semântica, mas ontológica. Os categoricalistas estritos querem reduzir toda disposição a propriedades categóricas governadas por leis, e não o significado desses termos. Eles têm do lado esquerdo a necessitação conectando as propriedades, constituindo assim a lei. A lei, junto com as instâncias das propriedades governadas pela lei, fazem as coisas terem de acontecer em conformidade com a lei. A disposição do vidro de se quebrar é reduzida à lei sobre como se quebram conexões físicas entre certos tipos de moléculas junto com as instâncias das propriedades da lei presentes no copo de vidro. Nenhum dos universais da lei é ele mesmo modal, nem a necessitação e nem as propriedades relacionadas. As razões para uma lei ser necessária não estão na forma da lei, mas em outros argumentos (alguns deles apresentados em Cid, 2016). Assim, o substantivismo também pode respeitar o requisito de mostrar como algo naturalmente não modal implica frases modais. De todo modo, é ainda possível de se responder que não há necessidade alguma de redução das modalidades, que elas são um aspecto primitivo. Não acreditamos que este seja o melhor caminho de resposta – preferimos o primeiro –, mas também é viável.

As disposições, diz-nos Ghins, por conectarem necessariamente certos tipos de ocorrências com certos tipos de manifestações, dão conta da contrafactualidade. Elas também fornecem uma explicação das regularidades descritas pelas leis científicas. De fato, as leis científicas são suscetíveis de nos informar sobre a natureza interna das coisas de certos tipos de um modo preciso. Além disso, as disposições também podem dar conta das leis probabilísticas de modo elegante, diz-nos o autor, pois podemos identificar as tendências das coisas com as disposições probabilísticas.

Mas todas as entidades têm disposições irredutíveis? Precisamos postular a existência de poderes causais? Ghins pensa que sim, por causa de três argumentos (2013, p.89), os quais apresento a seguir.

  • Argumento I:

Se somos dotados de poderes causais, então temos a capacidade de agir sobre sistemas que são prima facie “inanimados” e “inertes”, isto é, sistemas que são à primeira vista passivos e desprovidos de poderes internos. […] Visto que reagem de modo diferenciado e previsível a determinadas ações nossas, parece razoável supor que os sistemas externos sejam dotados de uma capacidade interna de reagir de uma maneira específica.

Diríamos aqui que, se somos dotados de poderes causais, nada se segue sobre se os objetos também são dotados de poderes causais. Pode ser o caso que poderes causais venham apenas do livre-arbítrio e que apenas seres com livre-arbítrio os tenham (já que os exemplos paradigmáticos de capacidades que temos envolvem situações com opções, como a capacidade de se levantar, quando se está sentado). Além disso, se esse for um argumento a favor de adotar poderes causais irredutíveis, ele assume que somos dotados de poderes causais. Mas um categoricalista estrito nunca aceitaria isso. O que temos são propriedades categóricas, e sua subsunção a leis torna existente a ilusão de que temos capacidades. O modo diferenciável e previsível em que as coisas reagem pode igualmente ser explicado por propriedades categóricas governadas por leis.

  • Argumento II:

Poucas pessoas duvidam que um elétron submetido a um campo eletromagnético se comportará em conformidade com as equações de Maxwell. Se admitirmos que tais contrafactuais sejam verdadeiros, seremos conduzidos a postular a existência de disposições internas, poderes ou potências, que obrigam os sistemas que as possuem a comportarem-se de certa maneira precisamente porque esse comportamento corresponde à sua natureza ou essência.

Tal como argumentamos no parágrafo anterior, não há razões para postular a existência de disposições internas para as coisas; só precisamos de leis da natureza (obrigando os sistemas) e as propriedades categóricas (constituindo os sistemas). Além disso, se postulamos disposições, postulamos infinitas disposições para cada objeto existente, pois são infinitas as situações nas quais podem ocorrer diferentes coisas com os objetos. Costumamos pensar que os objetos particulares têm um número finito de propriedades, e não um número infinito de propriedades disposicionais.

  • Argumento III:

Se postularmos a existência de poderes causais que se manifestam nos processos descritos pelas leis científicas, alcançaremos uma imagem geral e coerente da realidade cujo comportamento tem como base as essências das substâncias.

Isso pode até ser verdade. A imagem geral numa metafísica dos poderes é coerente; no entanto, de modo mais preciso, ela tem certos problemas com a noção de poder que têm de ser solucionados, para que essa coerência se mantenha nas perspectivas menos gerais. De todo modo, é argumentável que uma concepção que não se utilize de poderes e fique apenas nas propriedades categóricas é, além de coerente, mais simples e mais intuitiva. Não estou argumentando em favor disso aqui, neste texto, mas apenas dizendo que isso é argumentável, já que uma concepção governista pode dar conta dos problemas apresentados por Ghins.

Em resumo, a concepção de Ghins (2013, p.85-86) nos diz que

As propriedades categóricas são as propriedades matemáticas e quantificáveis referidas pelos símbolos matemáticos que figuram nas leis científicas. […] [As] disposicionais, em circunstâncias favoráveis, lhes permitem comportar-se em conformidade com leis. […] A modelização restringe-se às propriedades categóricas. O que torna as leis verdadeiras são, antes de tudo, os modelos, os quais são estruturas matemáticas. Somente quando consideramos a aplicação desses modelos a sistemas reais é que entram em jogo as propriedades modais de tais sistemas. […] As leis científicas são proposições universalmente verdadeiras que integram teorias científicas bem estabelecidas e que descrevem regularidades existentes na natureza. As regularidades descritas nas várias disciplinas encontram seus fundamentos nas naturezas relacionais, reais, de certas entidades e em suas disposições a submeter-se a processos específicos. De acordo com essa interpretação metafísica, o problema ontológico da identificação está solucionado, e as leis científicas também adquirem o estatuto de leis necessárias da natureza. Se as leis fossem outras, um campo eletromagnético ou um elétron não poderia continuar sendo a entidade que é pela simples razão de que uma mudança nas leis se traduziria ipso facto numa mudança nas essências das coisas.

No entanto, ainda que fosse possível mostrar que a existência de poderes causais na natureza nos oferece a melhor explicação possível das regularidades observadas e da verdade dos contrafactuais, isso não justificaria a crença na existência de poderes causais, simplesmente porque não há qualquer garantia a priori de que a realidade respeite nossos critérios de inteligibilidade. Por isso, diz-nos Ghins, para validar qualquer afirmação de existência, a evidência empírica é imprescindível. E, de fato, nós temos uma experiência pessoal dos poderes causais: enquanto sentado, por exemplo, estou consciente da minha capacidade de me levantar e caminhar. Ainda que os fundamentos metafísicos das leis sejam os poderes universais, o nosso acesso epistêmico a elas e às demais propriedades naturais depende exclusivamente do sucesso dos modelos científicos e da observação de regularidades recorrentes. Se há disposições irredutíveis, que fundamentam a verdade aproximada dos modelos teóricos, ao sustentar as leis científicas que seriam satisfeitas por esses mesmos modelos, que, por sua vez, foram criados a partir da abstração da realidade nas estruturas perceptivas e nos modelos de dados, então o objetivo de Ghins de criar uma teoria sintética, realista moderada e que fundamente metafisicamente as ciências terá sido cumprido. De modo geral, o que Ghins pretende com esse livro é mostrar que não é irracional acreditar nas disposições essenciais das entidades naturais como fundamentos da verdade aproximativa das leis científicas. E nós concordamos que irracional não é, embora a ideia de poder esteja cercada de mistérios e dificuldades; pensamos, ainda, que, mesmo que não existam poderes irredutíveis, toda a perspectiva de ciência de Ghins pode ser mantida, pois leis da natureza realmente existentes poderiam fundamentar a verdade aproximada das leis científicas, por sustentarem os mecanismos que as leis e os modelos científicos tentam descrever.

Notas

1 Agradeço à CAPES pela bolsa de doutorado sanduíche, na Université Catholique de Louvain (Louvain-la-Neuve, Belgique), com a qual foi possível obter a orientação do Dr. Alexandre Guay e ter conversas pessoais com o Dr. Michel Ghins.

2 Doutor em Lógica e Metafísica pelo Programa de Pós-Graduação Lógica e Metafísica da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Professor substituto no Instituto Federal de Minas Gerais. Av. Serra da Piedade, 299, Morada da Serra, Sabará, MG, Brasil. E-mail: [email protected]

3 Aqui vale uma nota, a saber, que uma teoria “mística” – como a previsão do futuro por meio dos búzios – pode acabar sendo empiricamente adequada, no sentido de Ghins, se ela obtém previsões bem-sucedidas e se mede algo no mundo para isso; no entanto, na medida em que essas teorias místicas não costumam ser estatisticamente bem-sucedidas em suas previsões, elas não são empiricamente adequadas. O fato de que elas poderiam ser bem-sucedidas e, assim, empiricamente adequadas nos mostra que ou o conceito de empiricamente adequado não é adequado para restringir o domínio das ciências e para justificar suas práticas ou, no caso de uma teoria mística ser bem-sucedida, teríamos que aceitá-la como empiricamente adequada (tão empiricamente adequada quanto as ciências). Mas o que justifica a prática científica, distinguindo-a de teorias místicas, acredito que nos diria Ghins, é a intersubjetividade da estrutura perceptiva e do modelo de dados.

4 Há um conflito aparente entre a ideia de que as leis são tornadas verdadeiras por modelos e a ideia de que os poderes causais são o fundamento das leis. Se os poderes causais fundam as leis, então são eles, e não os modelos, que as fazem verdadeiras. Além disso, se modelos e proposições têm o mesmo estatuto ontológico de serem entidades representacionais, portadores de valor de verdade (truth bearers) ou de algum outro valor (como adequação/inadequação), um não pode ser o veridador do outro, já que veridadores não são entidades representacionais. Mas é argumentável que um modelo é justamente o modelo de um poder causal. Se esse for o caso, então, se for o poder ou se for o modelo do poder que tornam a lei verdadeira, isso não fará diferença. O ponto, talvez, aqui, seja apenas um preciosismo terminológico, no qual diríamos que um modelo é feito verdadeiro (ou aproximadamente verdadeiro), tal como uma lei científica, por um poder causal, embora o modelo satisfaça sempre a lei científica. Embora uma lei científica e um modelo teórico só sejam aproximadamente verdadeiros, dada a distância entre a teoria e a realidade, a relação de satisfação entre o modelo e a lei não é aproximada. Se um modelo não satisfaz a lei, ele tem de ser mudado ou a lei tem de ser mudada. A escolha entre mudar o modelo ou a lei é pragmática.

5 Leis mais gerais da mecânica estatística de partículas.

6 O problema da inferência também pode ser expresso em outros termos, com menos compromissos ontológicos, se pensarmos que o que devemos explicar é a condicional: N(F,G) → (x)(Fx→Gx). Esta formulação é preferível, se quisermos tratar do problema sem a pressuposição de que há também o universal da necessitação no domínio dos particulares (o autor usa sua própria formulação, pois se direciona contra a concepção armstronguiana, que, de fato, pensa que a necessitação é idêntica à causalidade singular e, por isso, age também nos particulares). Um universalista transcendentalista crente da necessitação, por exemplo, poderia querer dizer que a necessitação, como universal, transcende os particulares, mas que a causalidade singular entre estados de coisas é apenas uma instância da necessitação. No entanto “(x)(Fx→Gx)” é neutro o suficiente para não pressupor nem a instanciação da necessitação. A condicional nos diz que a necessitação N, relacionando as propriedades universais F e G, implica que tudo que é um F é também um G. Como explicar essa implicação?

7 Michel Ghins, numa conversa privada, disse-me que tem plena noção de que esse problema também se aplica à sua metafísica dos poderes. Sua solução é dizer que ele identifica as propriedades naturais com as propriedades definidas pelas teorias científicas; no entanto, essa solução não é exclusiva ao metafísico dos poderes, mas logicamente possível também a qualquer teórico das leis. Por exemplo, Armstrong (1983), como defensor da necessitação contingente das leis, e Cid (2011), como defensor da necessidade metafísica das leis, sustentam, ambos, que devemos pensar as propriedades naturais como as propriedades indicadas pelas ciências.

8 De fato, eu acredito que o poder explicativo do conectivismo é menor que o do substantivismo, principalmente do substantivismo ante rem. Podem-se encontrar argumentos em Cid (2011). Vou apresentar alguns a seguir.

9 Ou, alternativamente, no caso do defensor dos átomos metafísicos, quando duas partículas do tipo X (do tipo átomo metafísico) interagem do modo Y, elas produzem F.

Referências

ARMSTRONG, D. 1983. What is a law of nature? Cambridge, Cambridge University Press, 180 p.

BIRD, A. 2007. Nature’s Metaphysics. Laws and Properties. Oxford, Clarendon Press, 246 p.

CID, R. 2011. O que é uma lei da natureza? Rio de Janeiro, RJ. Dissertação de Mestrado. Universidade Federal do Rio de Janeiro, 114 p.

CID, R. 2016. São as leis da natureza metafisicamente necessárias? Rio de Janeiro, RJ. Tese de Doutorado. Universidade Federal do Rio de Janeiro, 184 p.

LEWIS, D. 1973. Counterfactuals. Cambridge, Harvard University Press, 168 p.

PSILLOS, S. 2002. Causation and Explanation. Montreal, McGill-Queen’s University Press, 336 p.

TOOLEY, M. 1977. The Nature of Laws. Canadian Journal of Philosophy, 7(4):667-698. https://doi.org/10.1080/00455091.1977.10716190

VAN FRAASSEN, B. 1989. Laws and Symmetry. Oxford, Oxford University Press, 416 p.

Rodrigo Reis Lastra Cid – Doutor em Lógica e Metafísica pelo Programa de Pós-Graduação Lógica e Metafísica da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Professor substituto no Instituto Federal de Minas Gerais. Sabará, MG, Brasil. E-mail: [email protected]

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