A ilusão do fausto: Manaus, 1890-1920 – DIAS (RBH)

DIAS, Edinea Mascarenhas. A ilusão do fausto: Manaus, 1890-1920. Manaus: Valer, 1999, 189p. Resenha de: FIGUEIREDO, Aldrin. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.21, n.40, 2001.

Quando, em 1927, Mário de Andrade – então cacique do modernismo brasileiro – visitava a Amazônia em sua famosa viagem de Turista Aprendiz, ao ser questionado sobre o que achou da capital do Amazonas, respondeu sem titubear que de “virgem de luxo” a cidade estava se transformando em “mulher fecunda”1. As metáforas do poeta serviam para criticar os adornos que foram artificiosamente colocados sobre Manaus ainda “nos tempos áureos da borracha” e que, passado pouco mais de uma década, pareciam já legenda de um tempo remoto. As riquezas oriundas da exploração da goma elástica haviam criado uma época de fausto ilusório, de luxo efêmero, de um progresso inconstante. Nos anos 20, quando a produção amazônica respondia por apenas 5% do consumo mundial de borracha, Manaus amargou dias difíceis. Mário de Andrade viu com bons olhos esse duro aprendizado. Sem o dinheiro fácil da exportação do látex, os governantes locais teriam que ser criativos para produzir “uma nova florada de empreendimentos de alcance elevado”2. Mas essa visão do literato paulista não era partilhada pela maioria dos que viviam na Amazônia. Nessa época, vicejou na região uma verdadeira ideologia da decadência. Os que testemunharam essas mudanças passaram para os mais novos uma memória do “fim da grande vida” – como referiu o poeta amazonense Thiago de Mello, recompondo as lembranças de seus pais, parentes e antepassados. O registro é impressionante:

Do dia pra noite, se foram acabando o luxo, as ostentações, os esbanjamentos e as opulências sustentadas pelo trabalho praticamente escravo do caboclo seringueiro lá nas brenhas da selva. Cessou bruscamente a construção dos grandes sobrados portugueses, dos palacetes afrancesados, dos edifícios públicos suntuosos. Não se mandou mais buscar mármores e azulejos na Europa, ninguém acendia mais charutos com cédulas estrangeiras. O enxoval das moças ricas deixou de vir de Paris. Os navios ingleses, alemães e italianos começaram a escassear na entrada da barra. Muitas grandes firmas exportadoras, de capital europeu, começaram a pedir concordata. Das casas aviadoras (que forneciam dinheiro e mercadoria aos seringalistas do interior da floresta), as mais fracas faliram logo, algumas resistiram um pouco, mas não puderam evitar a falência. As companhias líricas de operetas italianas foram deixando de chegar para as suas temporadas exclusivas no sempre iluminado Teatro Amazonas. Os coronéis de barranco não podiam pagar com fortunas uma carícia mais quente das francesas importadas e refinadas na arte do amor comprado, as quais, por isso mesmo, foram logo tratando de dar o fora, substituídas nas pensões noturnas pelas nossas caboclas peitudas e de cintura menos delgada. Dar o fora foi também o que fizeram os comerciantes ingleses e alemães, os navios partiam carregados deles com a família inteira3.

Com um misto de saudosismo inconfesso e alegria conformada, Thiago de Mello guardou na memória que, com a tal decadência da borracha, Manaus voltou a ser como antes: “pôde ser ela mesma, a viver de si mesma”. A cidade havia, afinal, empenhado um valor muito alto pelos benefícios da riqueza oriunda da exploração da goma, “ao preço da miséria e da servidão de milhares de caboclos”. O fim dessa “virgem de luxo”, nas palavras de Mário de Andrade, era o consolo de quem não viveu os tempos eufóricos das folies du latex. De fato, todo esse luxo sempre pareceu aos visitantes uma espécie de anomalia surpreendente. Teatros, bancos, magazines, palacetes, boulevards, praças e monumentos não combinavam (e ainda não parecerem combinar) com as imagens da floresta, do labirinto de rios e da propaganda ecológica do mais rico ecossistema do planeta. Se essa ambigüidade persiste com força nos dias de hoje, não é de surpreender que não fosse diferente há quase um século. Enquanto já na década de 1920 as histórias da belle époque amazônica passaram a vicejar apenas nas memórias do passado, a imagem do “anfiteatro” amazônico coberto pela verdejante floresta voltou a ocupar a literatura sobre a região4. Tanto em Mário de Andrade como em Raymundo Moraes, preferido entre os literatos locais pelo poeta paulista5, é a natureza amazônica – com sua “autenticidade” selvagem e primitiva – que tomou o lugar de destaque, entronizada até hoje na mídia, em qualquer parte do dito mundo globalizado.

Revirar a história desse tempo, há muito mitificado, passou a ser assunto de memória ou negócio de historiador. Sabendo disso, Edinea Mascarenhas Dias, historiadora paraense há tempos radicada em Manaus, professora aposentada da Universidade do Amazonas, impôs-se a tarefa de questionar muitas das histórias contadas sobre a Manaus do fin-de-siècle. Seu livro, originalmente uma dissertação de mestrado defendida em 1988 na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, sob a orientação de Déa Fenelon, deve ser uma grata surpresa ao mais exigente dos leitores. A capital do Amazonas apresentada por Edinea Dias revela detalhes de uma história já anunciada em algumas memórias sobre a virada do século XIX, justamente o tempo em que Manaus sofrera o “primeiro grande surto de urbanização” graças aos investimentos oriundos da exploração da seringueira, como nos informa a autora logo na introdução6. A partir daí, os argumentos da obra são desenvolvidos em duas partes: primeiramente, passamos a vista no processo de construção da “cidade do fausto”, com uma análise detida sobre as origens dessa pretensa urbe moderna no meio da floresta. Na segunda parte, Edinea volta-se para analisar os beneficiados e os excluídos nessa política de melhoramentos públicos. Com isso, a autora percorre os meios utilizados pelas elites do Amazonas na constituição das políticas públicas que ambicionaram transformar uma pequena “aldeia” em uma cidade moderna, tal e qual suas propaladas congêneres européias. Das notícias de viajantes, como Henry Walter Bates, Robert Avé-Lallemant ou Louis Agassiz, que por lá aportaram nas décadas de 1850 e 1860, aos relatórios administrativos dos governos municipais das décadas seguintes, a historiadora acompanhou esse processo de transformação no “rosto” da cidade, imiscuído num projeto de modernização alicerçado em estratégias de exclusão social da pobreza urbana.

Em 1890, em pleno apogeu da exploração da goma, de cada 10 moradores de Manaus, 8 eram analfabetos. Passadas duas décadas, o fosso entre ricos e pobres aumentou ainda mais a constituição de um espaço privilegiado para as reformas sanitárias e para a segregação da cidade eleita. As ruas e logradouros centrais ganharam outros contornos, com novo embelezamento e com uma forte política de higienização do espaço público central. A idéia dos intendentes municipais era mesmo a de disciplinar o transeunte, o vendedor ambulante, o mendigo, o trabalhador comum. Edinea Mascarenhas Dias mostra o porquê de tudo isso não ter dado certo. Os inúmeros projetos de modernização só foram completamente exeqüíveis na cabeça dos governantes de então, embebedados que estavam com as façanhas de Haussmann na capital francesa. Se Manaus preservou alguns desses símbolos do fausto, como o seu famoso teatro, seu porto flutuante, o elegante prédio da alfândega, o palácio da justiça e tantos outros, também possibilitou que ficasse oculta, nesses mesmos relatórios oficiais, uma outra cidade que recebia as imensas levas de imigrantes que vinham de toda a parte em busca das tais riquezas do látex. Edinea visitou essa cidade oculta, recuperou seus números, revolveu seus insucessos, e nos apresentou suas estratégias de lutas pela sobrevivência. Se há uma crítica para ser feita a esse livro é que o mesmo ainda se recente das histórias miúdas dessa população anônima, rejeitada nas estatísticas oficiais. Mas, apesar disto, a autora soube muito bem criticar, sem os habituais excessos anacrônicos, os percursos e as estratégias políticas dos administradores da capital do Amazonas, tomando, um a um, seus nomes e seus feitos.

Por tudo, A ilusão do fausto é um livro necessário não somente a historiadores interessados nas histórias “belepoquianas” das capitais brasileiras do final do século XIX, mas também, e especialmente, a todos aqueles que ainda mantêm intocadas suas imagem sobre a selva amazônica, suas cidades anômalas, com sua gente vivendo à margem da história, como naqueles dias quis Euclides da Cunha7. O trabalho de Edinea Mascarenhas Dias não recaiu (e talvez essa seja uma de suas grandes virtudes) no usual recurso de contrapor a floresta, o ambiente selvagem e primitivo dos rincões amazônicos às vicissitudes da experiência humana nas cidades da região. Por mais incrível que possa parecer, essa é uma grande lição para os pesquisadores mais versados no assunto, sem falar naqueles que propagandeiam a região como laboratório para pesquisas e para a divulgação de seus projetos que pouco, ou quase nada, têm a ver com o dia-a-dia amazônico. Refiro-me aqui, especialmente, ao modo com a imprensa brasileira ainda teima em tratar esses “paraísos” ecológicos, sempre acompanhados de suas desastradas experiências sociais. É justamente contra essa visão da presença humana como “anomalia” na selva amazônica que se insurge o livro de Edinea Mascarenhas Dias. Em vez de acreditar piamente que estava ingressando no éden perdido, “resgatando” a história do homem e suas infrutíferas tentativas de domar a natureza, a autora preferiu trilhar esse mesmo caminho desconfiando dessa velha formulação tirada de velhos e bonitos manuais de história natural, tão ao gosto dos literatos e cientistas dos tempos da borracha.

Notas

1 Diário Oficial. Manaus, 8 de julho de 1927, p.1

2 Idem.

3 MELLO, Thiago de. Manaus, amor e memória. Rio de Janeiro: Philobiblion, 1984, pp. 27-28.

4 Ver MORAES, Raymundo. Cartas da floresta. Manaus: Livraria Clássica, 1927, p.2.

5 ANRADE, Mário de. “A Raymundo Moraes”. In Diário Nacional. São Paulo, 20 de setembro de 1931, p. 2.

6 DIAS, Edinea Mascarenhas. A ilusão do fausto: Manaus, 1890-1920. Manaus: Valer, 1999, p.19.

7 CUNHA, Euclides da. À margem da história. Porto: Livraria Chardron, 1909.

Aldrin Moura de Figueiredo – Universidade Federal do Pará.

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