Modernity in Black and White, art and image, race and identity in Brazil, 1890–1945 | Rafael Cardoso

Pensar modernidade nos grandes centros urbanos nas primeiras décadas do século XX é, principalmente quando se leva em consideração a perspectiva dos trabalhadores nacionais de origem afrodescendente, acompanhar o processo de reorganização do espaço urbano de forma a reproduzir os padrões europeus em detrimentos de influências culturais negras. As principais cidades do Brasil foram buscar inspiração, principalmente, nas referências francesas e mobilizaram os recursos possíveis para controlar as manifestações de origem africanas ou indígenas. Em cidades como São Paulo e Rio de Janeiro, em nome da modernidade, as populações empobrecidas foram empurradas para os locais mais distantes e sem estruturas, iniciando um processo histórico de marginalização nos principais centros urbanos.
Os pesquisadores do campo da História Social, a partir de diferentes olhares e fontes, observaram o entusiasmo de estadistas com a construção de grandes avenidas, o empenho de sanitaristas com o combate às epidemias que assolavam a população, além de práticas do cotidiano que possibilitaram a contenção de indivíduos não brancos em espaços que representariam o progresso da nação brasileira1. Entre os temas debatidos também destacaram o impacto dos imigrantes europeus nas dinâmicas sociais daquele período, que convergiam para a construção de um Brasil moderno embranquecido. A partir de ideias concebidas no pensamento raciológico europeu, parte da classe política e da intelectualidade brasileira passou a condicionar o lugar do país na modernidade à constituição de uma nação branca nos trópicos em um período de longo prazo. Leia Mais

Culturas do passado-presente: modernismos, artes visuais, políticas da memória – HUYSSEN (AN)

HUYSSEN, Andreas. Culturas do passado-presente: modernismos, artes visuais, políticas da memória. Trad. Vera Ribeiro. 1. ed. Rio de Janeiro: Contraponto; Museu de Arte do Rio, 2014. Resenha de: MACHADO, Diego Finder. Imaginar o futuro em um mundo globalizante: paisagens transnacionais dos discursos do modernismo e das políticas da memória. Anos 90, Porto Alegre, v. 23, n. 44, p. 371-379, dez. 2016.

Como imaginar futuros em um mundo cada vez menos confiante em relação às promessas de progresso de uma época anterior? As sociedades contemporâneas do Ocidente, em contraste com outras sociedades, têm manifestado um renovado interesse pelo passado e pelos seus vestígios. Frente ao que podemos considerar uma “crise de futuro”, o presente vem ocupando uma posição dominante em nossas experiências de tempo. Contudo, trata-se de um presente que procura, insistentemente, enraizar-se em um passado apropriado às suas ansiedades, em uma tentativa de barrar a efemeridade dos nossos dias. Neste contexto, ainda é possível imaginar futuros alternativos que não sejam apenas o futuro da memória?

O crítico literário alemão Andreas Huyssen, em seu último livro traduzido para o português, a coletânea de ensaios intitulada Culturas do passado-presente: modernismos, artes visuais, políticas da memória, aproxima duas temáticas centrais em suas pesquisas: as consequências do modernismo na obra de alguns artistas contemporâneos e as políticas da memória, do esquecimento e dos direitos humanos. Estabelecendo trânsitos pelas fronteiras que demarcam essas temáticas, a afinidade entre os diferentes capítulos do livro é construída em torno da problematização da memória em contextos transnacionais. Para o autor: A afirmação mais geral deste livro é que tanto o discurso do modernismo quanto a política da memória se globalizaram, mas sem criar um modernismo global único ou uma cultura global da memória e dos direitos humanos (HUYSSEN, 2014, p. 12-13).

Para além das experiências históricas da Alemanha e dos Estados Unidos, que lhes são mais familiares, buscou interpretar conexões transnacionais que ultrapassam as geografias do Atlântico Norte, aproximando-se de geografias alternativas das paisagens de memórias traumáticas e de experimentações estéticas modernistas na América Latina, Ásia e África.

Diante da evidência contemporânea de um declínio do debate sobre o “pós-modernismo”, o autor chama atenção para o retorno dos discursos sobre a modernidade e o modernismo na arquitetura e nos estudos urbanos, assim como na literatura, nas artes plásticas, na música, nos estudos midiáticos, na antropologia e nos estudos pós-coloniais. Para ele, aquele debate foi “uma tentativa norte-americana de reivindicar a liderança cultural”, a partir dos anos de 1920, por isso marcado por um “provincianismo geográfico” (HUYSSEN, 2014, p. 11).

A primeira parte da obra é dedicada a interpretar geografias alternativas do modernismo em um mundo globalizante, colocando em discussão as maneiras como a cultura metropolitana de um modernismo clássico foi traduzida e apropriada criativamente em países colonizados e pós-coloniais na Ásia, África e América Latina, antes e após a Segunda Guerra Mundial. Um diálogo crítico com alguns artistas e seus experimentos estéticos é tramado: o argentino Guillermo Kuitca e seus experimentos cartográficos como um pintor do espaço; o sul-africano William Ketridge e a indiana Nalini Malani e os seus teatros de sombras como arte memorial; o vietnamita Pipo Nguyem-duy e sua série de fotografias de ruínas ecológicas da modernidade; e a colombiana Doris Salcedo com sua instalação artística que convida à reflexão sobre as continuidades entre colonialismo, racismo e imigração. Não deixa de lado outros artistas de diferentes nacionalidades, fazendo-nos compreender que a geografia do debate deve focar como o modernismo, nas artes visuais, é reiterado e reinterpretado.

Inspirado no antropólogo indiano Arjun Appadurai (2004), Huyssen procura analisar como a modernidade e o modernismo foram disseminados por fluxos culturais complexos que aproximaram as ideias de local e global em constante negociação. Para ele, é preciso escapar da crença inocente em uma cultura local autêntica que deveria ser preservada dos encantos homogeneizantes da globalização.

Como afirma, “[…] o binário global-local é tão homogeneizante quanto a suposta homogeneização cultural do global à qual se opõe” (HUYSSEN, 2014, p. 23). Esse olhar dualista, atado ao local, impede a compreensão transnacional das práticas culturais e o reconhecimento dos fluxos desiguais de traduções, transmissões e apropriações locais de um “modernismo sem entraves”.

Outra questão apontada é a necessidade de retomar, sob novos ângulos, o modelo superior e inferior pelo qual o espaço cultural do início do século XX foi hierarquicamente clivado entre cultura de elite e cultura de massa. Segundo o autor, este modelo, prematuramente descartado nos estudos norte-americanos sobre o pós- modernismo, ainda pode servir como paradigma para analisar modernismos alternativos e culturas globalizantes que assumiram formas distintas em diferentes momentos históricos. A reinscrição desta problemática nas discussões da modernidade cultural em contextos transnacionais pode estimular novos tipos de comparação que vão além das dicotomias clichês – tais como global versus local, colonial versus pós-colonial, moderno versus pós-moderno ou centro versus periferia –, recolocando em debate hierarquias e estratificações sociais que atravessam as culturas de acordo com as circunstâncias e as histórias locais. Além disto, repensar a relação superior-inferior hoje nos remete aos debates sobre os novos vínculos entre estética e política, bem como entre experiência e história.

A segunda parte do livro é dedicada à problematização das políticas de memória, de esquecimento e de direitos humanos na contemporaneidade, retomando, sob novos matizes, questões já apresentadas ao público brasileiro em Seduzidos pela memória: arquitetura, monumentos, mídia (HUYSSEN, 2000). Antes, como um entremeio que estabelece conexões entre modernismos e culturas de memória, Huyssen lança um debate instigante que se desloca entre a nostalgia contemporâneas das ruínas e as memórias traumáticas dos escombros da modernidade. Esta diferenciação entre ruína e escombro, que faz eco aos escritos do filósofo alemão Walter Benjamin (2012), nos convida a pensar sobre às diferentes maneiras como, em um presente globalizado, olhamos para a decadência dos vestígios do passado. Por um lado, há um olhar nostálgico que se aproxima do encantamento pitoresco dos românticos pelas ruínas, uma utopia às avessas que demonstra a saudade de um outro lugar localizado no passado. Segundo o autor, “[…] essa obsessão contemporânea pelas ruínas esconde a saudade de uma era anterior, que ainda não havia perdido o poder de imaginar outros futuros” (HUYSSEN, 2014, p. 91). Por outro, a nossa contemporaneidade se depara cotidianamente com os escombros de uma modernidade cruel, marcada por atrocidades que soterraram os futuros sonhados pelos vencidos da história. Como lembra, os bombardeios nunca pretenderam produzir ruínas, mas escombros. Porém, em uma época seduzida pelo passado, tais escombros, muitas vezes, acabam estetizados enquanto ruínas, alimentando um mercado da memória como entretenimento que banaliza e envolve em sentimentos nostálgicos as marcas presentes de um passado traumático. Este imaginário das ruínas é, como destaca o autor: Central para qualquer teoria da modernidade que queira ser mais que o triunfalismo do progresso e da democratização, ou a saudade de um poder passado de grandiosidade (HUYSSEN, 2014, p. 99).

Para além de um otimismo cego, podemos nos defrontar com o lado obscuro e destrutivo da modernidade visível nas ruínas, os desastres do passado que continuam a assombrar a nossa imaginação.

Estabelecendo um diálogo crítico com os estudos consagrados sobre a memória, especialmente com a obra dos franceses Maurice Halbwachs (2006) e Pierre Nora (1993), Huyssen destaca que tais estudos inseriram a memória primordialmente em contextos nacionais, bem como procuraram demarcar uma fronteira que colocava em lados opostos a história e a memória. Atualmente, o divisor história/ memória tem sido superado, reconhecendo a interdependência entre as maneiras de narrar o passado. Além do mais, tais estudos se mostram insuficientes em um momento no qual os discursos sobre a memória e a análise das histórias traumáticas tornaram-se transnacionais.

É preciso, segundo o autor, abandonar o conceito de memória coletiva, tal como uma memória mais ou menos estável de um grupo ou uma nação como ideal, em busca de memórias conflituosas. Para ele, “[…] a memória é sempre o passado presente, o passado comemorado e produzido no presente, que inclui, de forma invariável, pontos cegos e de evasão” (HUYSSEN, 2014, p. 181). A memória “nunca é neutra” e “[…] está sempre sujeita a interesses e usos funcionais específicos” (HUYSSEN, 2014, p. 181). Neste sentido, para além do conflito entre memórias coletivas e memórias individuais, ou entre memória e historiografia, seria importante analisar “[…] os conflitos entre campos de memórias rivais que tentam eliminar ou, pelo menos bloquear um ao outro” (HUYSSEN, 2014, p. 182).

Esta virada teórica e metodológica faria com que atentássemos às batalhas entre passados, travadas não apenas em contextos nacionais, como também em contextos transnacionais. Portanto, pensar em políticas da memória em um mundo globalizante está para além da circunscrição do que seria uma “memória cosmopolita”. É preciso compreender as assimetrias e competições travadas nas trajetórias transnacionais da memória.

Em um mundo obcecado pela memória, o esquecimento, o duplo inevitável da memória, é malvisto, considerado uma falha ou uma deficiência que deveríamos combater. Mesmo em excesso, a memória é positivada, visto ser considerada fundamental para a coesão social e como alicerce para identidades. Neste contexto, pouco se refletiu a respeito da importância de uma política do esquecimento que, para além do “dever da memória”, pusesse em pauta uma ética do esquecimento.

Em diálogo com o pensamento do filósofo francês Paul Ricoeur (2007), Huyssen busca interpretar situações em que uma política de esquecimento foi importante na construção de um discurso politicamente desejável e de uma esfera pública democrática: o esquecimento das mortes causadas pela guerrilha urbana na Argentina em prol de um consenso nacional em torno da figura vitimada do desaparecido e o esquecimento dos bombardeios de cidades alemãs durante a Segunda Guerra Mundial para o pleno reconhecimento do horror do Holocausto. Em ambos os exemplos, uma forma de esquecimento foi necessária para atender reivindicações culturais, jurídicas e simbólicas em consonância com as políticas nacionais de memória.

Ao propor a discussão sobre uma ética do esquecimento público, o autor se aventura em um tema difícil que, sem dúvida, consiste no ponto mais audacioso e inovador da obra. No entanto, apesar de insistir no caráter residual de como o tema aparece nos escritos de autores que, como Paul Ricoeur, privilegiaram o estudo da memória, não deixa muito clara uma proposta original para refletir sobre o que considera um “esquecimento voluntário”, um tipo de esquecimento que exigiria esforço e trabalho. Mesmo ao complexificar a questão, situando as estratégias de esquecimento num campo de termos e fenômenos tais como “[…] silêncio, desarticulação, evasão, apagamento, desgaste, repressão” (HUYSSEN, 2014, p. 158), acaba não esclarecendo as diferenças entre estas estratégias.

Afinal, é possível dizer que algo silenciado ou reprimido foi de fato esquecido? Talvez, uma atenção maior às sutilezas de cada um destes termos poderia nos mostrar níveis intermediários entre a memória e o esquecimento, tal como já há alguns anos propôs Michael Pollak (1989) ao problematizar o silêncio não como uma forma de esquecimento, mas como uma “memória subterrânea” que, em disputas de memórias, resiste aos excessos das memórias oficiais.

A emergência à esfera pública de memórias traumáticas em busca pela reparação de injustiças cometidas no passado, coloca em questão as aproximações entre as políticas de memória e as políticas de direitos humanos. Na contemporaneidade, há uma sobredeterminação entre estes discursos. Contudo, como destaca o autor, não é raro que os debates sobre os direitos humanos permaneçam separados dos debates sobre a memória, sendo o discurso da memória dominante nas humanidades e o discurso dos direitos humanos nas ciências sociais. Se faz necessária a ligação dos estudos da memória aos direitos e à justiça, não somente em termos teóricos e discursivos, mas também em termos práticos. Por um lado, as políticas de memória precisam de uma dimensão normativa jurídica, que lhe dê sustentação na reivindicação de direitos de indivíduos e grupos. Por outro, os discursos sobre os direitos humanos, alimentados pelas memórias de violações de direitos, deixariam de pautar-se apenas em princípios abstratos, levando em consideração os contextos históricos, políticos e culturais. Entretanto, como afirma o autor, tal aproximação não é isenta de riscos, pois “[…] tanto o discurso dos direitos quanto o da memória são alvos fáceis de abuso, como véu político para encobrir interesses particulares” (HUYSSEN, 2014, p. 201).

Um campo onde as aproximações entre direitos humanos e memórias têm emergido de maneira mais intensa é o campo das reivindicações pelos direitos culturais de populações indígenas ou descendentes de escravizados na América Latina, no Canadá e na Austrália, bem como os direitos civis e sociais nas novas formas de imigração e diáspora. Essa dimensão dos direitos humanos: Reivindica os direitos de grupos culturais dentro de nações soberanas, mas entra em conflito com a ideia tradicional dos direitos humanos como direitos dos indivíduos, e também com um entendimento homogêneo da nacionalidade (HUYSSEN, 2014, p. 206).

O movimento pelos direitos culturais, movimento que desestabiliza as ideias de identidade nacional, tem dado ênfase na diversidade cultural em um mundo cada vez mais interligado, aderindo, fundamentalmente, à política de identidade grupal. Neste debate, as ideias de global e local entram em conflito, em reações contra a globalização e a temível possibilidade de uma homogeneização cultural. Novamente o autor traz à tona uma crítica a concepções que imaginam uma suposta autenticidade intocada das culturas locais, o que gera conflitos quando grupos culturais diferentes entram em contato. Para além de uma compensação identitária, “[…] os direitos culturais devem preservar a prerrogativa de que o indivíduo nascido numa dada cultura possa deixá-la e escolher outra” (HUYSSEN, 2014, p. 209).

Embora não circunscrita no interior dos limites do campo da História, a obra de Andreas Huyssen tem sido fundamental para pensar a prática historiadora, especialmente em relação à História do Tempo Presente. As análises elaboradas pelo autor nos convidam a pensar, a partir da problematização das políticas da memória e dos modernismos em um mundo globalizante, as imbricações entre temporalidades e espacialidades no presente vivido. Como um crítico da cultura, este autor propõe uma reflexão sobre as maneiras como no presente se articulam passado e futuro, global e local, alertando para a importância da imaginação de futuros alternativos. Não se trata da nostalgia de uma crença inocente nas promessas de progresso atualmente desacreditadas, mas uma incitação a pensarmos sobre as maneiras como futuros possíveis, desamarrados de um peso asfixiante do passado, foram e continuam sendo imaginados.

A experiência histórica brasileira, embora brevemente mencionada em alguns dos seus ensaios, praticamente está ausente da cartografia de geografias alternativas analisada e interpretada pelo autor. O Brasil, ao contrário da Argentina, não é, nesta obra, um território privilegiado na compreensão das políticas de memória e dos modernismos na América Latina. Apesar disso, a historiografia brasileira da última década tem se valido de conceitos e teorias mobilizadas pelo autor em seus trabalhos, especialmente a noção de “cultura da memória”. Em diálogo com autores do campo da História, como Reinhart Koselleck (2006) e François Hartog (2013), a obra de Andreas Huyssen tem sido apropriada pelos historiadores interessados em pensar o tempo não apenas como um instrumento taxionômico, pelo qual os acontecimentos de um passado são medidos e circunscritos, mas o tempo como algo vivido e experimentado em sociedade. Na atualidade de nosso país, experiências diversas de tempo são friccionadas, colocando lado a lado, por exemplo, os traumas do período da nossa ditatura civil-militar e as lutas pelo reconhecimento de direitos culturais negados a minorias.

Neste sentido, a leitura de Culturas do passado-presente pode ser um interessante convite a novos olhares para a nossa própria história, a um olhar crítico para um tempo presente demasiadamente encantado pelo passado e temeroso por um porvir que se mostra pouco promissor.

Referências

APPADURAI, Arjun. Dimensões culturais da globalização: a modernidade sem peias. Lisboa: Teorema, 2004.

BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. 8. ed. revista. São Paulo: Brasiliense, 2012. (Obras escolhidas v. 1).

HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Centauro, 2006.

HARTOG, François. Regimes de Historicidade: presentismo e experiências do tempo. Belo Horizonte: Autêntica, 2013.

HUYSSEN, Andreas. Culturas do passado-presente: modernismos, artes visuais, políticas da memória. Rio de Janeiro: Contraponto; Museu de Arte do Rio, 2014. (Coleção ArteFíssil).

Seduzidos pela memória: arquitetura, monumentos, mídia. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2000.

KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto; PUC-Rio, 2006.

NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. Projeto História, São Paulo, n. 10, p. 7-28, dez. 1993.

POLLAK, Michael. Memória, esquecimento, silêncio. Estudos históricos, Rio de Janeiro, v. 2, n. 3, p. 3-15, 1989.

RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Campinas: UNICAMP, 2007.

Diego Finder Machado – Doutorando em História na História da Universidade do Estado de Santa Catarina.

Neocolonial, Modernismo e Preservação do patrimônio no debate cultural dos anos 1920 no Brasil – PINHEIRO (CTP)

PINHEIRO, Maria Lucia Bressan. Neocolonial, Modernismo e Preservação do patrimônio no debate cultural dos anos 1920 no Brasil. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo: FAPESP, 2011. Resenha de: MELO, Sabrina Fernandes. Nexos entre o modernismo e o neocolonial nas primeiras manifestações preservacionistas da década de 1920. Cadernos do Tempo Presente, São Cristóvão, n. 12 – 10 de junho de 2013.

Em seu mais recente trabalho Maria Lúcia Bressan Pinheiro – professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (USP) e pesquisadora de temas relacionados às cidades, à arquitetura e ao patrimônio cultural – aborda questões pouco discutidas ou até mesmo negligenciadas no campo da arquitetura e da história.

O livro Neocolonial, Modernismo e Preservação do patrimônio no debate cultural dos anos 1920 no Brasil, publicado pela editora da USP em 2011, é fruto de indagações antigas da pesquisadora. Tais questionamentos se direcionavam para o neocolonial e suas particularidades como estilo arquitetônico e como movimento cultural, promotor de desdobramentos importantes para lançar bases e promover debates sobre a questão patrimonial brasileira.

A obra de Maria Lucia Bressan tem como objetivo central promover uma ligação entre o modernismo brasileiro, os debates sobre o patrimônio cultural e o neocolonial, onde o denominador comum destas três categorias seria a década de 1920.

Um dos grandes problemas encontrados na historiografia e nas pesquisas sobre esses três temas é a separação e o tratamento individualizado direcionado a cada um deles. A autora defende que eles deveriam ser entendidos em conjunto, por estarem intrinsecamente relacionados.

Todo o livro é direcionado na tentativa de estabelecer um diálogo entre as três categorias que dão título à obra. Nesta perspectiva, o neocolonialismo é visto como a primeira iniciativa, em arquitetura, de valorização das raízes brasileiras e de busca de uma identidade nacional. Maria Lucia Bressan vai à contramão dos paradigmas colocados acerca da arquitetura neocolonial ao apontar novos caminhos conceituais e metodológicos para o entendimento deste estilo arquitetônico no contexto sociocultural dos anos vinte.

Uma das dificuldades enfrentadas pela autora, durante a pesquisa, foi a coleta de bibliografia sobre o tema abordado. Tal constatação foi verificada antes mesmo da escrita do livro, durante seu cotidiano em sala de aula, e, na busca por referências a serem utilizadas nas disciplinas ministradas por ela. Buscando preencher lacunas deixadas pela historiografia, foram utilizadas inúmeras fontes. Estas transitam entre conferências, palestras, cartas, esboços arquitetônicos, imagens, jornais, revistas, plantas de construções etc. fontes mais citadas são as conferências proferidas pelo arquiteto português Ricardo Severo em 1914 na Sociedade de Cultura Artística de São Paulo e em 1917 no Grêmio da Escola Politécnica de São Paulo, a Revista de Architetura no Brasil (1921- 1926) e a Revista Ilustração Brasileira, uma das primeiras revista ilustradas do país.

Maria Lucia recorre às fontes por meio de citações e transcrições de parte destes documentos. Tal metodologia promove uma aproximação do leitor com a fonte e por outro lado, compromete a fluidez do texto, aspecto ressaltado pela própria autora no decorrer da introdução de sua obra.

Estruturado em sete capítulos, que não seguem uma ordem cronológica, mas transitam entre as três frentes de pesquisa propostas, a obra consegue estabelecer uma comunicação teórica, metodológica e contextual entre neocolonial, modernismo e patrimônio. A comunicação entre os capítulos é feita pela retomada de discussões associadas às fontes já trabalhadas.

No primeiro capítulo, O Pequeno Passado Colonial, a autora articulou as ideias do arquiteto Ricardo Severo ao pensamento de John Ruskin, uma das mais importantes figuras do panorama cultural oitocentista inglês, além de ser considerado como um dos precursores da noção de preservação do patrimônio cultural na Inglaterra.

Através das palestras proferidas por Ricardo Severo – marco inaugural do Movimento Neocolonial no Brasil – a autora traça um detalhado percurso intelectual de Severo e Mario de Andrade ambos afinados com as propostas de cunho patrimonial defendidas pelo inglês Ruskin e inclinados a estabelecer parâmetros próprios para a formação de uma identidade arquitetônica nacional.

As aproximações e afinidades entre arquitetos e intelectuais brasileiros e estrangeiros continuam no decorrer do segundo capítulo, nomeado Severo, Mário e a Emergência de São Paulo no Cenário Nacional. No entanto, como pano de fundo para o aprofundamento desta discussão, Bressan Pinheiro utiliza o contexto da emergência de São Paulo no cenário nacional.

Durante as primeiras décadas do século XX, São Paulo passava por uma fase de efervescência urbana, iniciada pela produção do café e fomentada pelo crescimento da industrialização advindo da Segunda Guerra Mundial. Neste sentido, intelectuais como Mario de Andrade, Angyone Costa, Plínio Cavalcanti, dentre outros, encontraram um contexto propício para a publicação de manifestos, textos e artigos em diferentes periódicos relacionados à arquitetura da cidade de São Paulo e de outras regiões do país.

Em O Neocolonial e a Exposição de 1922, a autora nos traz uma discussão sobre a influência da comemoração do centenário da Independência em 1922, ocorrida no Rio de Janeiro para a divulgação e para discussão do estilo neocolonial. Apesar da Semana de Arte Moderna de 1922, em São Paulo, ter contado com um espaço para mostra arquitetônica, foi na Exposição do Centenário que o neocolonial ganhou um lugar de destaque.

T0a1l 3ê nfase ocorreu pela construção de pavilhões em estilo neocolonial e pela defesa de sua utilização para formação de uma identidade arquitetônica brasileira, calcada na arquitetura portuguesa. Entretanto, instaurava-se aí um paradoxo. No momento da Exposição de 1922 e do debate direcionado a preservação das edificações de origem portuguesa – consideradas como base para o desenvolvimento da arquitetura nacional – ocorria a demolição da região do Morro do Castelo, região considerada como espaço fundador da cidade do Rio de Janeiro, além de abrigar inúmeras edificações erguidas no período colonial.

Em O Neocolonial e o Ensino de Arquitetura, são traçadas aproximações e diferenças entre a arquitetura neocolonial praticada no Rio de Janeiro, daquela utilizada em São Paulo. Partindo destes apontamentos a autora analisa a inserção dessa nova tendência arquitetônica na Escola Politécnica de São Paulo com o curso de engenheiro arquiteto e no curso de arquitetura da Escola de Belas Artes do Rio de Janeiro.

O quinto e sexto capítulos denominados, respectivamente, Lucio Costa e o Neocolonial e Mario de Andrade: Entre o Modernismo e Tradição, dedicaram-se a problematizar as ligações entre o neocolonial e o modernismo através dos nomes que compõem os títulos dos capítulos: Lucio Costa e Mario de Andrade. Neste momento, a autora reafirma sua proposta inicial, a de estabelecer um diálogo entre o modernismo, o neocolonial e o patrimônio. Parte da trajetória intelectual destes dois personagens é usada para compor o cenário em que figurou o diálogo entre essas três frentes de análise.

No último capítulo, intitulado O pensamento preservacionista no Brasil na Década de 1920, a figura de Mario de Andrade foi associada às ideias de preservação do patrimônio nacional. Tais ideias se associavam tanto ao processo de evasão das obras de arte e o papel da Igreja nesta evasão, quanto às iniciativas direcionadas a valorização da arquitetura brasileira por meio da criação de museus nacionais, da elaboração de inventários de arquitetura colonial e das inspetorias estaduais de monumentos nacionais, sendo a primeira delas criada na Bahia em 1927.

O que se apresenta em Neocolonial, Modernismo e Preservação do patrimônio no debate cultural dos anos 1920 no Brasil é um intenso trabalho de pesquisa e uma profícua contribuição para as discussões sobre o patrimônio edificado. Destarte, a contribuição dessa obra se encontra na abordagem inovadora, onde os nexos entre modernismo e Neocolonial culminaram nas primeiras manifestações preservacionistas da década de 1920.

As múltiplas e contraditórias abordagens acerca das ações preservacionistas no contexto da década de 1920, associadas à questão da identidade nacional, revelaram-se como um conhecimento indispensável para o entendimento do patrimônio edificado e das políticas públicas de patrimônio e bens culturais no viés contemporâneo.

Referências

PINHEIRO, Maria Lucia Bressan. Neocolonial, Modernismo e Preservação do patrimônio no debate cultural dos anos 1920 no Brasil. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo: FAPESP, 2011.

Sabrina Fernandes Melo – Mestranda vinculada ao Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Santa Catarina (PPGH – UFSC), integrante da linha de pesquisa Arte, Memória e Patrimônio e bolsista CAPES. E-mail: [email protected].

Acesso à publicação original

Neocolonial/ Modernismo e Preservação do Patrimônio no debate cultural dos anos 1920 no Brasil | Maria Lúcia Bressan Pinheiro

A noção de patrimônio histórico foi construída, ao longo do século XIX, paralelamente ao processo de formulação ideológica e política do Estado-Nação. Essa nova forma de conceber o Estado estava preocupada com a construção de uma identidade nacional pautada na elaboração da ideia de passado compartilhado.

Tal qual na Europa, houve no Brasil, desde o século XIX, uma preocupação com a definição de uma identidade nacional. O patrimônio nacional, nesse contexto, devia remeter-se a um passado relacionado a eventos, símbolos e personagens representados materialmente e referentes a uma história considerada remota. A história remota considerada conveniente à reescritura do passado dentro do projeto de constituição da identidade nacional brasileira foi a do período colonial.

Parte significativa do debate acerca dos elementos que deviam constituir essa tradição nacional deu-se no campo da arquitetura. Entre o final do século XIX e o começo do XX, defensores da arquitetura colonial entenderam que os edifícios construídos entre os séculos XVI a XVIII reuniam os elementos necessários para que fossem eleitos os melhores representantes dessa tradição artístico-arquitetônica nacional. Caberia, assim, aos arquitetos contemporâneos dar continuidade a tal tradição através da formulação de novas propostas arquitetônicas de caráter vernáculo, a partir das bases estilísticas lançadas pelos edifícios coloniais. Foi com tal intuito que durante as primeiras décadas do século XX surgiram duas novas vertentes arquitetônicas: a do estilo Neocolonial e a do Modernismo. Em Neocolonial, Modernismo e Preservação do Patrimônio no Debate Cultural dos anos 1920 no Brasil, na contramão de uma tradição historiografia que vê estas duas propostas como antagônicas, a historiadora Maria Lúcia Bressan Pinheiro, busca as conexões e as correspondências entre elas por meio do exame dos discursos proferidos pelos seus respectivos patronos.

O livro, fruto da tese de Livre-Docência da autora pela USP, traz uma análise dos debates em torno da formulação e da difusão dessas novas modalidades arquitetônicas na década de 20. Segundo a autora, a emergência do estilo Neocolonial e da Arquitetura Modernista foi fruto da necessidade de perpetuar o caráter tradicional da arquitetura brasileira através de novas práticas que se colocavam como legítimas representantes da tradição artístico-arquitetônica nacional.

Nos cinco primeiros capítulos, a autora tenta reconstituir o percurso de formação e difusão do Neocolonial através dos escritos de diversos personagens que atribuíram ao estilo a função de dar continuidade à tradição arquitetural brasileira. Para tanto, estabelece conexões entre figuras de opiniões aparentemente opostas: de um lado, Ricardo Severo e José Mariano Filho – defensores do Neocolonial; do outro, Mário de Andrade e Lúcio Costa, que consideravam a arquitetura Modernista a legítima herdeira das tradições arquitetônicas coloniais.

Segundo a autora, o contato de Mário de Andrade e Lúcio Costa com os discursos formulados por Ricardo Severo e José Mariano foi importante para que os modernistas formulassem seu próprio conceito de arquitetura tradicional. Estabelecendo tais conexões entre opiniões aparentemente divergentes, a autora pretende mostrar que a defesa da arquitetura tradicional promovida pelos agentes do Modernismo deriva, em grande parte, do diálogo estabelecido com os patronos do Neocolonial.

A relação entre o discurso dos defensores do Neocolonial e do Modernismo analisada pela autora vai, porém, muito além da interação entre Severo, Mariano, Mário e Lúcio. Outros tantos personagens serão mencionados pela autora como pertencentes à rede de agentes envolvidos no debate arquitetônico na década de 20, entre os quais podemos destacar: Jean-Baptiste Debret, Fernando de Azevedo, Heitor de Mello, Araújo Vianna, José Washt Rodrigues, Raul Lino, Alexandre de Albuquerque, Gastão Bahiana, Victor Dubugras, Gregory Warchavchik.

O primeiro capítulo do livro começa por uma breve explanação sobre a contribuição de Debret para a valorização da arquitetura colonial. Segundo a autora, o conjunto de gravuras de edificações coloniais realizadas pelo artista no século XIX pode ser considerado fundamental para a compreensão daquilo que foi definido como o caráter formal da arquitetura brasileira, uma vez que parte dos elementos decorativos e ornamentais ilustrados por Debret na sua Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil seria posteriormente adotada como referência para os projetos arquitetônicos que tomavam por base a arquitetura colonial.

Ainda nesse capítulo, a autora prossegue sua argumentação avaliando o impacto das gravuras de Debret na concepção da ideia de arquitetura tradicional expressa por Ricardo Severo nas Conferências que realizou em 1914 e 1917: teria sido baseado nas ilustrações do pintor que o arquiteto português haveria definido os atributos formais da tradição arquitetônica – de caráter predominantemente português – que deveriam ser tomados como padrão para uma moderna concepção arquitetônica, o Neocolonial. Em seguida, pondera sobre os efeitos que as Conferências tiveram na série de artigos publicada por Mário de Andrade na Revista do Brasil, em 1920. Nesses escritos, Maria Lúcia identifica aspectos minuciosos da influência que Severo exerceu na concepção de arquitetura tradicional do autor de Macunaíma.

Nos segundo e terceiro capítulos, a autora investiga a repercussão do estilo defendido por Ricardo Severo nas cidades de São Paulo e Rio de Janeiro. Ao comparar a difusão do Neocolonial nas duas capitais, conclui que a propagação do estilo foi muito mais rápida em São Paulo – capital que naquele momento acrescia sua importância no cenário político-econômico nacional – onde foi maior a popularidade dessa vertente junto aos arquitetos. Nomes como Ricardo Severo, Victor Dubugras e José Washt Rodrigues teriam assim contribuído para o “enriquecimento” arquitetônico de São Paulo, atendendo as exigências de uma elite que, segundo a autora, queria se diferenciar dos “estrangeirismos” arquitetônicos dos palacetes cariocas.

Os “estrangeirismos” arquitetônicos da então capital federal se deviam, na verdade, ao fato de que na cidade do Rio de Janeiro predominava uma arquitetura em estilo academicista, herdada do século XIX. Os estilos Neoclássico e Eclético preponderavam no panorama arquitetônico carioca durante a primeira década do século XX. De acordo com Maria Lúcia, somente a partir da Exposição de 1922, o Neocolonial começou a ser inserido no contexto carioca.

Contudo, no Rio de Janeiro os arquitetos do Neocolonial adotaram variantes ornamentais e decorativas da arquitetura tradicional que fugiam ao padrão encontrado em São Paulo. Fazendo uma análise dos projetos expostos no evento, a autora concluiu que neles predominavam elementos formais inspirados no estilo hispânico colonial. Essa peculiaridade do estilo Neocolonial edificado no Rio de Janeiro levou alguns dos defensores da “tradição colonial portuguesa” a criticarem a festividade, a superficialidade e a falsidade no uso dos ornamentos coloniais inspirados no estilo hispânico.

Um dos maiores críticos do uso dessa vertente hispânica foi o já mencionado José Mariano Filho. Considerado pela autora o paladino do Neocolonial no Rio de Janeiro, o pernambucano defendia que o caráter dos ornamentos tradicionais era eminentemente português – sinal de sua estreita relação com Ricardo Severo. Ambos, de fato, rechaçavam a prática comum entre os arquitetos de apenas imitar a decoração e os ornamentos dos edifícios coloniais, especialmente aqueles de tipo hispânico. Para eles, a verdadeira essência do Neocolonial devia ser a readaptação das formas tradicionais – ornamentos e decoração – às condições técnicas e materiais próprios do mundo “moderno”.

Assim, a autora sinaliza que dentre os projetos definidos como Neocoloniais havia divergências em relação ao emprego das formas tradicionais: enquanto para uns bastava reproduzir esses ornamentos para que as edificações fossem caracterizadas como Neocoloniais; outros, como Severo e Mariano, entendiam que o emprego correto das formas tradicionais dependia de uma “modernização” das mesmas a partir da realização de um estudo prévio, preferencialmente in loco.

No quarto capítulo (p. 155), a autora traz essas divergências em torno do emprego das formas tradicionais para o âmbito acadêmico, avaliando, também, como se deu a inserção e repercussão do estilo Neocolonial nas Escolas de Arquitetura de São Paulo e do Rio de Janeiro.

Segundo Maria Lúcia, um dos maiores responsáveis pela inserção do Neocolonial no contexto acadêmico foi José Mariano Filho. Atuando na Escola Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro, promoveu uma série de prêmios e excursões que, segundo a autora, intencionavam impulsionar os alunos a se dedicarem ao estudo da tradição artístico-arquitetônica nacional.

Um dos alunos beneficiados pelos prêmios e excursões promovidos por Mariano foi o futuro arquiteto modernista Lúcio Costa. De acordo com a autora, a amizade entre os dois se desenvolveu desde esse período, quando o jovem arquiteto ainda estava em início de carreira. A relação entre esses grandes estudiosos da arquitetura tradicional brasileira foi marcada por um diálogo inicialmente afetuoso, que, segundo a autora, pode explicar o flerte que Lúcio teve com o Neocolonial (p. 181). Todavia, ainda mais notória que a amizade de ambos foi o seu rompimento, que resultou numa inimizade publicamente admitida, cuja razão, segundo Maria Lúcia, nunca foi muito bem esclarecida.

A autora afirma que o rompimento com Mariano não significou necessariamente que Lúcio Costa deixasse de levar em consideração alguns dos princípios formais da arquitetura tradicional formulados pelos patronos do Neocolonial. Na realidade, para Maria Lúcia, não há dúvidas de que o contato com Mariano e o Neocolonial foi fundamental para que Lúcio formulasse seu próprio conceito de arquitetura tradicional. Essa influência que o Neocolonial exerceu sobre Lúcio Costa, segundo a autora, é suficiente para desmistificar a ideia de abismo entre Neocolonial e Modernismo.

Nos dois últimos capítulos (p. 229 em diante), a autora trata das discussões que se deram, nesse mesmo período, em torno da preservação do patrimônio no país, procurando perceber a influência que esse debate em torno do Neocolonial e do Modernismo teve sobre a trajetória de criação de políticas de tutela e salvaguarda do patrimônio edificado brasileiro.

Nesse percurso, Maria Lúcia destaca a atuação de Manuel Bandeira como um dos primeiros intelectuais a promoverem o debate sobre a salvaguarda do patrimônio em defesa da arquitetura tradicional. A autora ressalta, ainda, o papel que o colecionismo desempenhou para proteção dos bens compreendidos como elementos da tradição artística brasileira.

Em seguida, em sua conclusão, a autora faz uma ponte entre o debate preservacionista dos anos 20 e as iniciativas governamentais em prol do patrimônio promovidas nos anos 30, cujo maior exemplo é a criação do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, Sphan. Nesse contexto, sinaliza o quão importante são as concepções de arquitetura tradicional debatidas na década de 20 para definição dos critérios de preservação e tombamento estipulados pelo órgão federal.

No entanto, nessa relação que a autora estabelece entre o debate arquitetônico nos anos 20 e os critérios adotados pelo Sphan para definição de patrimônio, não faz qualquer referência às recentes contribuições da historiografia acerca das discussões em torno da elaboração das políticas de patrimônio do Serviço, a exemplo das pesquisas realizadas por Márcia Chuva e Antônio Gilberto Ramos Nogueira.

Além disso, a autora restringe a análise das influências teóricas estrangeiras no debate entre Neocolonial e Modernismo aos escritos de William Morris e, principalmente, de John Ruskin. No que tange, por exemplo, à definição estilística das edificações coloniais, não há menções à produção historiográfica profícua em torno do estilo “barroco” na Europa, estilo que vem a ser considerado símbolo da arquitetura tradicional a partir dos anos 20.

De resto, o livro ainda que acompanhado por um grande número de citações e fotografias extraídas de fontes primárias, tais como as revistas Illustração Brasileira e Architectura no Brasil – documentos riquíssimos para compreensão do debate arquitetônico nas primeiras décadas do século XX – peca por não dar alguma indicação sobre os arquivos nos quais foram localizadas essas fontes, tão pouco trabalhadas pelos historiadores, que podem ser cruciais à continuidade dessa análise da dialética entre o Neocolonial e Modernismo.

Marília de Azambuja Ribeiro – Universidade Federal de Pernambuco

Angélica Cristina de Paula Botelho – Bolsista PIBIC (FACEPE) do Projeto Espaço urbano, arquitetura eclesiástica e cultura tridentina da Profa. Dra. Marília de Azambuja Ribeiro (Departamento de História, UFPE).


PINHEIRO, Maria Lúcia Bressan. Neocolonial, Modernismo e Preservação do Patrimônio no debate cultural dos anos 1920 no Brasil. São Paulo: Edusp, 2011. Resenha de: RIBEIRO, Marília de Azambuja; BOTELHO, Angélica Cristina de Paula. CLIO – Revista de pesquisa histórica. Recife, v.31, n.1, jan./jun. 2013. Acessar publicação original [DR]

 

Templos modernos, templos ao chão: a trajetória da arquitetura religiosa modernista e a demolição de antigos templos católicos no Brasil | Marcus Marciano Gonçalves da Silveira

Desde a independência política do Brasil, já durante o período monárquico, surgiu a preocupação com a criação de uma identidade artístico-arquitetônica para o novo estado em vias de formação. Foi no contexto da Escola de Belas Artes do Rio de Janeiro, por exemplo, que Manuel José Araújo de Porto Alegre encetou os primeiros debates acerca de um estilo arquitetônico nacional.

Entretanto, é somente a partir do movimento modernista e da institucionalização de uma política patrimonial para o país, com a criação do Sphan (Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), durante o Estado Novo, que estratégias mais incisivas em torno da criação de um modelo artístico identitário nacional começaram a ser colocadas em prática.

Na verdade, seriam os mesmos arquitetos promotores do movimento modernista aqueles que a parir do final da década de 1930, ajudariam o governo Vargas a forjar a política patrimonial do Sphan e a elaborar a “versão oficial” da memória patrimonial e artística do Brasil.

O paradoxo que caracterizou a trajetória desse grupo de arquitetos-intelectuais, marcada pelo seu envolvimento direto tanto nas políticas de preservação do “Barroco Colonial” – em especial o “Barroco Mineiro” – elevado por eles à condição de símbolo da identidade artística nacional, quanto no projeto de criação de novo “estilo brasileiro”, o moderno, também por eles legitimado, é o ponto de partida do estudo de Marcus Marciano Gonçalves da Silveira.

O livro consiste na publicação da Dissertação de Mestrado em História e Culturas Políticas do autor, junto a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Nele, a partir do caso da cidade de Ferros (MG) – cuja Igreja Matriz dedicada a Santa Ana, originariamente em estilo colonial, foi demolida, na década de 1960, para a construção de um edifício em estilo modernista –, o autor procura estabelecer relações entre o processo de difusão da arquitetura religiosa modernista no Brasil, nas décadas de 1940 a 1960, com uma ideologia estatal de cunho desenvolvimentista e a escolha de políticas “modernizantes” por parte de determinados setores da Igreja Católica.

Diante do silêncio das principais narrativas sobre a história da arquitetura modernista no Brasil que, centradas na arquitetura civil, geralmente, só mencionam duas obras de arquitetura eclesiástica: a Capela da Pampulha e a Catedral de Brasília de Oscar Niemeyer, o autor se propõe a tirar da obscuridade outros projetos arquitetônicos modernistas para edifícios religiosos.

Para tanto, faz um levantamento dos projetos de igrejas em estilo modernista publicados nas principais revistas brasileiras de arquitetura entre as décadas de 40 e 60 (leia-se: Acrópole; Habitat; Arquitetura e Engenharia; Arquitetura; e, Arquitetura, Engenharia e Belas Artes).

Todavia, apesar do título do primeiro capítulo “A trajetória da arquitetura religiosa modernista e a demolição de antigos templos católicos no Brasil” somente ao seu final (pp. 88-97) encontraremos uma lista e algumas imagens de projetos e de igrejas efetivamente construídas. Mesmo somando-se a esses, os projetos colocados – sem razão evidente – no Anexo A, o autor está longe de fazer um levantamento sistemático sobre o assunto: os exemplos mencionados, praticamente, só dizem respeito ao sudeste e, em número menor, ao sul do país e, além disso, o autor não se preocupa em destacar quais projetos efetivamente saíram do papel.

A primeira parte do livro, na verdade, se ocupa muito mais dos fatores ideológicos e políticos que legitimaram a destruição dos edifícios antigos e sua substituição por templos modernos.

O autor procura investigar de que forma o modernismo conseguiu fomentar a associação entre passado e atraso, e entre modernidade e progresso. O modernismo coloca-se como alternativa a um passado atrasado, não pelo seu valor histórico e estilístico, mas por ser carregado de estrangeirismos.

Neste sentido, “o projeto modernista” vincularia a idéia de retrógrado, de ultrapassado, sobretudo, aos chamados “estilos históricos”, a partir de uma construção discursiva que também reverberaria na política do próprio Sphan, uma vez que houve pouquíssimos tombamentos de edifícios em estilo eclético neste período.

Segue-se uma reconstrução da rede de interesses que uniu os arquitetos modernistas e alguns setores da Igreja. A Igreja buscava fugir de sua “identidade museológica”, a partir da retirada dos elementos decorativos que preenchiam todo o corpo do templo, tirando a atenção do altar. Assim, a ânsia de alguns setores do clero por uma renovação litúrgica que adequasse os templos à sua funcionalidade ajudou nessa aproximação.

No que tange, por exemplo, o caso da Matriz de Ferros, segundo o autor, a preocupação com o estado deplorável do templo era muito mais centrada na sua falta de funcionalidade do que no seu valor enquanto patrimônio histórico.

Neste sentido, a ausência de posicionamento do Sphan em relação à proposta de demolição da Matriz de Sant’Ana, ratifica a afirmação do autor de que o estilo “Barroco Nacional” legitimado pelos modernistas, foi praticamente o único padrão artístico que despertava o interesse da instituição, a qual deixava na mão da Igreja a responsabilidade absoluta sobre aqueles templos que “fugiam da norma”, incluídos aqueles em estilo colonial tardio.

Desta forma, a aproximação entre religiosos e arquitetos e a inércia/desinteresse dos órgãos institucionais, segundo o autor, teriam ajudado o modernismo a se colocar como a possibilidade arquitetônica capaz de atender aos desejos do clero por novas formas litúrgicas, mais adequadas ao espírito desenvolvimentista no qual o país estava mergulhado.

Na segunda parte do livro, o autor desenvolve seu estudo de caso, reconstruindo, com rica documentação, todo o processo que conduziu a demolição da antiga e a ereção da nova Matriz.

Ele destrincha toda a polêmica acerca da demolição, o Movimento Verde – pró- modernismo –, seus antagonistas, os pontos de vista, os discursos, o papel da imprensa, a decisão por meio de plebiscito, a atuação da Igreja – mais especificamente do Movimento Litúrgico –, o desinteresse dos órgãos de salvaguarda do Estado, etc.. As imagens colocadas no Anexo B muito enriquecem a percepção do leitor acerca da importância e do impacto que todo o processo teve para a cidade.

Assim, partindo de um plano mais geral, o da consolidação do modernismo como proposta mais conveniente a um Estado cujo programa político estava voltado para a “modernização” do país, o autor chega às conseqüências – a seu ver, nefastas – que a colocação em prática desta política de renovação teve para a pequena cidade de Ferros, no interior de Minas Gerais.

Destaca-se, nesta parte, a força narrativa com a qual o autor constrói seu discurso acerca da falência do projeto “modernizador” dos modernistas. Tocante é seu relato acerca de como o contraste entre o fórum – em estilo colonial – e a nova igreja representavam a memória de um arrependimento coletivo.

A imagem da estrutura arquitetônica modernista – hoje já não mais “moderna” – transformou-se assim no vestígio vivo de uma “modernidade” que não veio. A crença na eficácia da inferência arquitetônica como propulsora do progresso mostrou-se vã.

O estudo da dissolução da “paisagem tradicional mineira” na cidade de Ferros, deste modo, torna-se uma importante reflexão sobre a ausência de preocupação com o restante da paisagem urbana que caracterizou o “projeto modernista”, bem como uma lição para aqueles que fazem e implantam políticas patrimoniais neste país.

A eleição de uma ou outra forma patrimonial como mais “legítima”, em detrimento de outras, consideradas retrógradas, via de regra, acaba por retirar das gerações vindouras o direito de conhecer o seu próprio passado.

Marília de Azambuja Ribeiro – Departamento de História, UFPE.

Angélica Cristina de Paula Botelho – Bolsista PIBIC (Propesq/UFPE) do Projeto Espaço urbano, arquitetura eclesiástica e cultura tridentina da Professora Doutora Marília de Azambuja Ribeiro (Departamento de História, UFPE).


SILVEIRA, Marcus Marciano Gonçalves da. Templos modernos, templos ao chão: a trajetória da arquitetura religiosa modernista e a demolição de antigos templos católicos no Brasil. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2011. Resenha de: RIBEIRO, Marília de Azambuja; BOTELHO, Angélica Cristina de Paula. CLIO – Revista de pesquisa histórica. Recife, v.29, n.1, jan./jun. 2011. Acessar publicação original [DR]

 

Demystifying the Female Body in Hispanic Male Authors, 1880-1920 – COHEN (REF)

COHEN, Daria. Demystifying the Female Body in Hispanic Male Authors, 1880-1920 – Overcoming the Virgin/Prostitute Dichotomy. Queenston, Ontario: The Edwin Mellen Press, 2008. 111 p. Resenha de: FÉLIX, Regina R. As mulheres que os homens deixam escapar – literatura de língua castelhana escrita por homens (1880-1920). Revista Estudos Feministas v.17 n.3 Florianópolis Sept./Dec. 2009.

O estudo de Daria Cohen oferece uma análise rara do tratamento do corpo da mulher na literatura como um campo de “batalha ideológica” em selecionados contos de língua castelhana escritos por Rubén Darío, Manuel Gutiérrez Nájera, Manuel Díaz Rodríguez, Azorín (José Martínez Ruiz), Miguel de Unamuno e Ramón del Valle-Inclán no período conhecido como fin-de-siècle. O trabalho apresenta uma introdução, quatro capítulos e conclusão.

Na introdução, Cohen explicita sua base teórica. Expõe o recorte do período modernista na América Latina e na Espanha, ao considerar escritores latino-americanos e espanhóis conjuntamente, optando com acerto por uma periodização que conflui o modernismo latino-americano à Geração de 1898 espanhola, assim propondo a modernidade como um tempo de inovações que perpassam o Ocidente e não se atêm a localidades, como sugerem os teóricos Richard Cardwell, Federico de Onís, Ivan Schulman, Evelyn Picon Garfield, entre outros. Também aponta as teóricas feministas que a informam em sua análise, como Susan Suleiman, Elaine Showalter, Gilbert and Gubar, Rita Felski, entre outras. Em seu estudo, Cohen perscruta “tipos diferentes de corpos de mulher” dentro das relações de poder em que são encaixados pelos escritores. Distingue seu estudo em relação ao de Consuelo Arias (Representations of the Feminine in Modernismo: The Figure of the Exotic Woman. Em português, Representações do feminino no modernismo: a figura da mulher exótica). Citando Elisabeth Grosz (Volatile Bodies. Em português, Corpos voláteis), Cohen oferece uma boa discussão sobre o que denomina “feminismo corporal”, segundo o qual o corpo é tomado como um “terreno de contestação” interpenetrado, nem como vítima nem como agressor, por instâncias várias da vida social. O corpo, assim compreendido, seria a base da subjetividade moderna, como um “local de contradições”, segundo conceitos de Anthony Casdardi (The Subject of Modernity. Em português, O sujeito da modernidade), Meile Steele (Theorizing Textual Subjects, em português Teorizando sujeitos textuais) e Catherine Belsey (Critical Theory. Em português, Teoria crítica). Cohen se utiliza também da contribuição de “The Body of the Condemned” (em português, O corpo do condenado”) em Vigiar e punir, de Michel Foucault, completando a noção do corpo como ponto a partir do qual “resistência e agência estratégicas” são possíveis, sendo este o local no qual “choques de gênero, poder e subjetividade” ocorrem. Os capítulos apresentam diferentes caracterizações das mulheres – as manobras retóricas dos escritores para dar vazão às suas ansiedades, segundo Cohen, diante dos anseios da nova mulher que surgia.

O corpo como “O artefato sensual” é tratado no Capítulo 1. Cohen mostra a erotização do corpo da mulher por Rubén Darío (Nicarágua, 1867-1916), segundo uma estética, de fato, parnasiana, em “El rubí” – como objeto para o desfrute do olhar masculino. Para a autora, Darío cria uma aura de mistério que cultiva a alteridade, ao mesmo tempo enaltecendo e desfigurando o corpo da mulher. Assinalando a linguagem marcada por indícios de gênero, através da qual o artífice é o masculino e o material a ser modelado, o feminino, Cohen demonstra o significado subjacente ao texto como a vitória da criatividade ativa do homem sobre a matéria feminina inerte, como material bruto – reconfirmando a antiga dicotomia segundo a qual o masculino, com sua capacidade de idealização, não apenas cria sobre o corpo da mulher, mas desse modo pode controlá-lo. Mas “El rubí”, ao mostrar o corpo da mulher com suas fruições próprias, tentando ademais libertar-se, demonstra uma agência não usual à época, confirmando a visão da autora de que um novo sujeito feminino moderno emerge.

No Capítulo 2, o corpo feminino é “A moldura artística” com que a literatura modernista objetificou esteticamente a presença da mulher como réplica retórica e metafórica da feitura do texto ele mesmo. Cohen sugere que, nesse sentido, o corpo da mulher como moldura reflete “os vários níveis das noções de limite e produção artística”. Seguindo as sugestões de Helena Michie (The Flesh Made Word. Em português, A carne feita palavra), Cohen mostra como o corpo das mulheres procura se desvencilhar dos enquadramentos nos quais os escritores querem prendê-las. Em “Rosa, lirio y clavel”, de Azorín (Espanha, 1873-1967), um jogo da relação entre os gêneros emoldura a mulher para o olhar masculino, num texto modernista por excelência, dada a preocupação expressa (de l’art pour l’art) do escritor com o fazer literário. Na cena descrita por um velho viajante, de ambientação à la prérafaelitas, três mulheres se movimentam e seus corpos são detalhadamente descritos por sua sensualidade. Segundo a autora, ao descrevê-las e emoldurá-las, o escritor as “enquadra” também no sentido jurídico de que as detém para averiguação, ou seja, critica-as e julga-as. Ao transformá-las em flores que acompanham outros personagens mórbidos da história, o enquadramento seguinte mostra que a sensualidade e a vitalidade das mulheres são tornadas inanimadas, segundo a autora, como uma forma de sublimar o estranhamento do próprio escritor diante de um mundo que se transformava (e o assombrava) radicalmente. No conto, “La venganza de Milord”, de Manuel Gutiérrez Nájera (México, 1859-1895), mistério e intriga são mapeados nos corpos femininos. O narrador descreve a história de várias mulheres: Clara, a mulher que não amava; a segunda, a mulher boneca, sem vitalidade; a terceira, uma surreal mulher sem corpo cuja função obscura é aprisionar esposas; e, finalmente, Alícia, a mulher compelida a trair o marido para enfim terminar petrificada como a protagonista de A bela adormecida. No entanto, sem o beijo final que lhe restaurasse a vida, como sugere Cohen, Alícia termina como um simples cadáver. Segundo a autora, esses enquadramentos das persona-gens demonstram o temor da sociedade expressa pelo escritor quanto à possibilidade da autonomia da mulher que se insinuava. No último conto analisado no capítulo, “La muerte de la emperatriz de la China”, de Darío, Cohen mostra que a propensão do escritor para descrever como joia a mulher Suzette e como um estojo a sala em que se encontra evidencia o que Elaine Showalter denomina “The Case of Women”. Em português, “O caso da mulher” (em inglês, o vocábulo “case” significa tanto “caso” como “estojo”, “caixa”). Com isso, Showalter atenta para o fato de que a mulher se tornou, na época, um caso a ser analisado, como se fosse a caixa de Pandora, cheia de mistérios e perigos. Cohen nota, contudo, que Darío neste texto rompe com o padrão do texto anterior quando permite que sua protagonista destrua a imagem da imperatriz chinesa que o marido idolatrava em seu estúdio, dizendo, ao fazêlo, estar vingada. Para a autora, desse modo, Suzette “destrói o ícone exótico” que a espelha e, assim, demonstra “o sujeito feminino que astutamente resiste à opressão da sociedade”.

Os enquadramentos estéticos assinalados anteriormente, segundo Cohen, levam ao que analisa no Capítulo 3, ou seja, ao desvanecimento da mulher, como sugere o título “A presença apagada”, “em resposta à nascente subjetividade da mulher moderna”, já que os escritores com frequência se referem à morte da sensualidade feminina, exibindo um temor em relação à sua expressão. Consequentemente, Cohen detecta uma associação insistente entre o “corpo da mulher e a morte” como forma de aniquilação de seu poder. Cohen observa, no entanto, que há uma duplicidade nos textos, ou seja, uma tentativa de apagamento da mulher tão renitente como a emergência da agência feminina, mesmo que momentânea, em “cambiantes posições subjetivas” – ainda que a subjugação da mulher prevaleça, enfim. Em “Rosarito” e “Mi hermana Antonia”, Ramón del Valle-Inclán (Galícia, 1866-1936) exemplifica o apagamento da mulher “nas mãos do homem moderno”. A história da tímida e sexualmente inocente Antonia, que, seduzida por um estudante “de olhos de tigre”, fenece, traz novamente uma atmosfera tétrica que trata da morte do corpo da mulher de modo a restituir a moralidade social. Também Rosarito, descrita com uma sensualidade ambivalente de anjo e prostituta (“trágica e madalênica”) será seduzida e, enfim, morta pelo sedutor. Cohen compreende que ao matá-la, como já foi dito, o escritor procura extinguir o erotismo que aos poucos faz emergir a subjetividade da mulher moderna. Em “Cuento Rojo”, de Manuel Díaz Rodríguez (Venezuela, 1871-1927), a autora apresenta uma luta entre o masculino e o feminino no contexto cultural moderno. Aqui o misógino protagonista Renzi, como ocorre com o mito de Don Juan, torna suas conquistas em “bonecas inanimadas” até encontrar Irma, uma mulher que não sucumbe aos seus ardis. Com um tapa no rosto de Irma, Renzi responde à indiferença da mulher, que, logo em seguida, como uma “selvagem voluptuosa”, beija-o com os lábios ensanguentados. O narrador, nota Cohen, assinala a reação da mulher como algo novo a complicar o relacionamento entre amantes naquele tempo. Até aqui, Cohen conclui que a batalha entre os sexos ainda relega a mulher ao enquadramento do homem – seu temor da incipiente agência da mulher provoca a violência e o consequente apagamento dela.

Com o conto “Soledad”, de Miguel de Unamuno (Espanha, 1864-1936), Cohen inicia o Capítulo 4 no qual seu estudo culmina, enfim, com “A desmistificação do corpo da mulher”. Aqui se sobressai a mulher cujo modo de vida é satisfatório para si mesma. Amparo, uma mulher cujo marido é omisso e ausente, antes de morrer logo após ter uma filha, exige do marido que a nomeie Soledad, nome que definirá seu caráter, já que não pode contar com nenhum dos homens com quem se relaciona – pai, irmão ou amante. Ao aceitar essa decepção fundamental, para Cohen, dedicando-se à leitura de livros, Soledad viabiliza uma vida independente para si mesma. A sugestão de que lia também livros eróticos suscita a ideia de que sua autonomia se estende à sua própria sexualidade. Cohen aponta que, desse modo, Soledad transcende o estereótipo da solteirona solitária, sem par (the odd woman), um dos tipos sociais que suscitaram a questão da mulher à época. Os contos “La caperucita color de rosa” e “La ultima hada”, de Manuel Gutiérrez Nájera, que Cohen nos mostra, desconstroem tanto os mitos da ingenuidade da Chapeuzinho vermelho como o da magia das fadas. No primeiro caso, encontramos uma Chapeuzinho que ludibria a todos e planeja passo a passo um casamento vantajoso. A fada, por seu turno, é posta de lado pela personagem Pensamento, que, dispensando os encantamentos da outra, faz suas próprias escolhas. Em “La venganza de Milady”, do mesmo autor, não só Milady retribui Milord com infidelidades, mas, em última instância, o trai com a própria amante do marido. Para Cohen, como é evidente, não apenas a mulher toma a frente em defesa própria, mas o faz demonstrando tamanha audácia através da transgressão sexual de um relacionamento lésbico.

Em sua conclusão, Daria Cohen nota que os escritores que estuda apresentam o corpo da mulher, por um lado, subjugado pelo olhar e pela atuação masculinos, mas, por outro, também imbuído de resistência aos constrangimentos das normas patriarcais da época. Cohen faz uma recapitulação retomando o “processo de formação da identidade” que os Capítulos de 1 a 3 mostram, ou seja, a tentativa de emergência da moderna subjetividade da mulher que resulta numa atuação mais resoluta no Capítulo 4. Cohen ressalta que procurou mostrar a “transformação e o progresso” da força da nova subjetividade da mulher na modernidade entre escritores nos quais raramente se espera encontrar tal preocupação.

Como se vê, este estudo traz uma contribuição valiosa, pois ressalta um novo prisma em textos de grandes escritores do modernismo, qual seja, sua sensibilidade com as mudanças socioculturais que tiveram as relações de gênero como um de seus aspectos cruciais. Cohen salienta com cuidado o caráter ambivalente e contraditório da retórica que deixa entrever a formação da subjetividade feminina e como textualidade imbricada ao contexto social. Ainda que em alguns pontos repetitivo, dada a reiteração exaustiva da frase “emergência da subjetividade moderna da mulher”, bem como um pouco carente do desenvolvimento das teorias que cita entre as páginas 2 e 4, o livro tem seus méritos. Por salientar com destreza, além dos estratagemas com que os escritores expressaram seus temores quanto ao feminino, também seu próprio reconhecimento do potencial impetuoso das mulheres, a partir do conceito de desejo como cerne da subjetividade moderna, o trabalho de Daria Cohen merece a atenção dos estudiosos do assunto.

Regina R. Félix – University of North Carolina Wilmington.

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O Brasil e os dias: estado-nação, modernismo e rotina intelectual | André Botelho

O modernismo no Brasil tem atraído a atenção de diversos estudiosos, preocupados com a pormenorização (no espaço e no tempo), a delimitação (de autores e obras) e, principalmente, a revisão (conceitual, teórico-metodológica e historiográfica) do tema, desde o final dos anos de 1980.

A pesquisa de André Botelho, originalmente apresentada como tese de doutorado de Sociologia em 2002 na Unicamp, com o título Um ceticismo interessado: a obra de Ronald de Carvalho dos anos 20, sob a orientação da professora Élide Rugai Bastos, além de se inserir nesse amplo e diversificado movimento de renovação dos estudos sobre o modernismo (a modernidade e a modernização) brasileiro, traz, ele próprio, uma bela contribuição para os debates. Leia Mais

A ilusão do fausto: Manaus, 1890-1920 – DIAS (RBH)

DIAS, Edinea Mascarenhas. A ilusão do fausto: Manaus, 1890-1920. Manaus: Valer, 1999, 189p. Resenha de: FIGUEIREDO, Aldrin. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.21, n.40, 2001.

Quando, em 1927, Mário de Andrade – então cacique do modernismo brasileiro – visitava a Amazônia em sua famosa viagem de Turista Aprendiz, ao ser questionado sobre o que achou da capital do Amazonas, respondeu sem titubear que de “virgem de luxo” a cidade estava se transformando em “mulher fecunda”1. As metáforas do poeta serviam para criticar os adornos que foram artificiosamente colocados sobre Manaus ainda “nos tempos áureos da borracha” e que, passado pouco mais de uma década, pareciam já legenda de um tempo remoto. As riquezas oriundas da exploração da goma elástica haviam criado uma época de fausto ilusório, de luxo efêmero, de um progresso inconstante. Nos anos 20, quando a produção amazônica respondia por apenas 5% do consumo mundial de borracha, Manaus amargou dias difíceis. Mário de Andrade viu com bons olhos esse duro aprendizado. Sem o dinheiro fácil da exportação do látex, os governantes locais teriam que ser criativos para produzir “uma nova florada de empreendimentos de alcance elevado”2. Mas essa visão do literato paulista não era partilhada pela maioria dos que viviam na Amazônia. Nessa época, vicejou na região uma verdadeira ideologia da decadência. Os que testemunharam essas mudanças passaram para os mais novos uma memória do “fim da grande vida” – como referiu o poeta amazonense Thiago de Mello, recompondo as lembranças de seus pais, parentes e antepassados. O registro é impressionante:

Do dia pra noite, se foram acabando o luxo, as ostentações, os esbanjamentos e as opulências sustentadas pelo trabalho praticamente escravo do caboclo seringueiro lá nas brenhas da selva. Cessou bruscamente a construção dos grandes sobrados portugueses, dos palacetes afrancesados, dos edifícios públicos suntuosos. Não se mandou mais buscar mármores e azulejos na Europa, ninguém acendia mais charutos com cédulas estrangeiras. O enxoval das moças ricas deixou de vir de Paris. Os navios ingleses, alemães e italianos começaram a escassear na entrada da barra. Muitas grandes firmas exportadoras, de capital europeu, começaram a pedir concordata. Das casas aviadoras (que forneciam dinheiro e mercadoria aos seringalistas do interior da floresta), as mais fracas faliram logo, algumas resistiram um pouco, mas não puderam evitar a falência. As companhias líricas de operetas italianas foram deixando de chegar para as suas temporadas exclusivas no sempre iluminado Teatro Amazonas. Os coronéis de barranco não podiam pagar com fortunas uma carícia mais quente das francesas importadas e refinadas na arte do amor comprado, as quais, por isso mesmo, foram logo tratando de dar o fora, substituídas nas pensões noturnas pelas nossas caboclas peitudas e de cintura menos delgada. Dar o fora foi também o que fizeram os comerciantes ingleses e alemães, os navios partiam carregados deles com a família inteira3.

Com um misto de saudosismo inconfesso e alegria conformada, Thiago de Mello guardou na memória que, com a tal decadência da borracha, Manaus voltou a ser como antes: “pôde ser ela mesma, a viver de si mesma”. A cidade havia, afinal, empenhado um valor muito alto pelos benefícios da riqueza oriunda da exploração da goma, “ao preço da miséria e da servidão de milhares de caboclos”. O fim dessa “virgem de luxo”, nas palavras de Mário de Andrade, era o consolo de quem não viveu os tempos eufóricos das folies du latex. De fato, todo esse luxo sempre pareceu aos visitantes uma espécie de anomalia surpreendente. Teatros, bancos, magazines, palacetes, boulevards, praças e monumentos não combinavam (e ainda não parecerem combinar) com as imagens da floresta, do labirinto de rios e da propaganda ecológica do mais rico ecossistema do planeta. Se essa ambigüidade persiste com força nos dias de hoje, não é de surpreender que não fosse diferente há quase um século. Enquanto já na década de 1920 as histórias da belle époque amazônica passaram a vicejar apenas nas memórias do passado, a imagem do “anfiteatro” amazônico coberto pela verdejante floresta voltou a ocupar a literatura sobre a região4. Tanto em Mário de Andrade como em Raymundo Moraes, preferido entre os literatos locais pelo poeta paulista5, é a natureza amazônica – com sua “autenticidade” selvagem e primitiva – que tomou o lugar de destaque, entronizada até hoje na mídia, em qualquer parte do dito mundo globalizado.

Revirar a história desse tempo, há muito mitificado, passou a ser assunto de memória ou negócio de historiador. Sabendo disso, Edinea Mascarenhas Dias, historiadora paraense há tempos radicada em Manaus, professora aposentada da Universidade do Amazonas, impôs-se a tarefa de questionar muitas das histórias contadas sobre a Manaus do fin-de-siècle. Seu livro, originalmente uma dissertação de mestrado defendida em 1988 na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, sob a orientação de Déa Fenelon, deve ser uma grata surpresa ao mais exigente dos leitores. A capital do Amazonas apresentada por Edinea Dias revela detalhes de uma história já anunciada em algumas memórias sobre a virada do século XIX, justamente o tempo em que Manaus sofrera o “primeiro grande surto de urbanização” graças aos investimentos oriundos da exploração da seringueira, como nos informa a autora logo na introdução6. A partir daí, os argumentos da obra são desenvolvidos em duas partes: primeiramente, passamos a vista no processo de construção da “cidade do fausto”, com uma análise detida sobre as origens dessa pretensa urbe moderna no meio da floresta. Na segunda parte, Edinea volta-se para analisar os beneficiados e os excluídos nessa política de melhoramentos públicos. Com isso, a autora percorre os meios utilizados pelas elites do Amazonas na constituição das políticas públicas que ambicionaram transformar uma pequena “aldeia” em uma cidade moderna, tal e qual suas propaladas congêneres européias. Das notícias de viajantes, como Henry Walter Bates, Robert Avé-Lallemant ou Louis Agassiz, que por lá aportaram nas décadas de 1850 e 1860, aos relatórios administrativos dos governos municipais das décadas seguintes, a historiadora acompanhou esse processo de transformação no “rosto” da cidade, imiscuído num projeto de modernização alicerçado em estratégias de exclusão social da pobreza urbana.

Em 1890, em pleno apogeu da exploração da goma, de cada 10 moradores de Manaus, 8 eram analfabetos. Passadas duas décadas, o fosso entre ricos e pobres aumentou ainda mais a constituição de um espaço privilegiado para as reformas sanitárias e para a segregação da cidade eleita. As ruas e logradouros centrais ganharam outros contornos, com novo embelezamento e com uma forte política de higienização do espaço público central. A idéia dos intendentes municipais era mesmo a de disciplinar o transeunte, o vendedor ambulante, o mendigo, o trabalhador comum. Edinea Mascarenhas Dias mostra o porquê de tudo isso não ter dado certo. Os inúmeros projetos de modernização só foram completamente exeqüíveis na cabeça dos governantes de então, embebedados que estavam com as façanhas de Haussmann na capital francesa. Se Manaus preservou alguns desses símbolos do fausto, como o seu famoso teatro, seu porto flutuante, o elegante prédio da alfândega, o palácio da justiça e tantos outros, também possibilitou que ficasse oculta, nesses mesmos relatórios oficiais, uma outra cidade que recebia as imensas levas de imigrantes que vinham de toda a parte em busca das tais riquezas do látex. Edinea visitou essa cidade oculta, recuperou seus números, revolveu seus insucessos, e nos apresentou suas estratégias de lutas pela sobrevivência. Se há uma crítica para ser feita a esse livro é que o mesmo ainda se recente das histórias miúdas dessa população anônima, rejeitada nas estatísticas oficiais. Mas, apesar disto, a autora soube muito bem criticar, sem os habituais excessos anacrônicos, os percursos e as estratégias políticas dos administradores da capital do Amazonas, tomando, um a um, seus nomes e seus feitos.

Por tudo, A ilusão do fausto é um livro necessário não somente a historiadores interessados nas histórias “belepoquianas” das capitais brasileiras do final do século XIX, mas também, e especialmente, a todos aqueles que ainda mantêm intocadas suas imagem sobre a selva amazônica, suas cidades anômalas, com sua gente vivendo à margem da história, como naqueles dias quis Euclides da Cunha7. O trabalho de Edinea Mascarenhas Dias não recaiu (e talvez essa seja uma de suas grandes virtudes) no usual recurso de contrapor a floresta, o ambiente selvagem e primitivo dos rincões amazônicos às vicissitudes da experiência humana nas cidades da região. Por mais incrível que possa parecer, essa é uma grande lição para os pesquisadores mais versados no assunto, sem falar naqueles que propagandeiam a região como laboratório para pesquisas e para a divulgação de seus projetos que pouco, ou quase nada, têm a ver com o dia-a-dia amazônico. Refiro-me aqui, especialmente, ao modo com a imprensa brasileira ainda teima em tratar esses “paraísos” ecológicos, sempre acompanhados de suas desastradas experiências sociais. É justamente contra essa visão da presença humana como “anomalia” na selva amazônica que se insurge o livro de Edinea Mascarenhas Dias. Em vez de acreditar piamente que estava ingressando no éden perdido, “resgatando” a história do homem e suas infrutíferas tentativas de domar a natureza, a autora preferiu trilhar esse mesmo caminho desconfiando dessa velha formulação tirada de velhos e bonitos manuais de história natural, tão ao gosto dos literatos e cientistas dos tempos da borracha.

Notas

1 Diário Oficial. Manaus, 8 de julho de 1927, p.1

2 Idem.

3 MELLO, Thiago de. Manaus, amor e memória. Rio de Janeiro: Philobiblion, 1984, pp. 27-28.

4 Ver MORAES, Raymundo. Cartas da floresta. Manaus: Livraria Clássica, 1927, p.2.

5 ANRADE, Mário de. “A Raymundo Moraes”. In Diário Nacional. São Paulo, 20 de setembro de 1931, p. 2.

6 DIAS, Edinea Mascarenhas. A ilusão do fausto: Manaus, 1890-1920. Manaus: Valer, 1999, p.19.

7 CUNHA, Euclides da. À margem da história. Porto: Livraria Chardron, 1909.

Aldrin Moura de Figueiredo – Universidade Federal do Pará.

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