De minifaldas, militancias y revoluciones: exploraciones sobre los 70 en la Argentina – ANDÚJAR (CP)

ANDÚJAR, Andrea et alDe minifaldas, militancias y revoluciones: exploraciones sobre los 70 en la Argentina. Buenos Aires, Ediciones Luxemburg, 2009, 217 p.  Resenha de: VEIGA, Ana Maria. Minissaias, militâncias, revoluções e gênero na última ditadura argentina. Cadernos Pagu, Campinas, n. 36, Jan./Jun. 2011.

O livro De minifaldas, militancias y revoluciones: exploraciones sobre los 70 en la Argentina amplia o debate sobre a última ditadura militar naquele país (1976-1983) ao inserir nele questões de gênero e a participação política das mulheres nos grupos de resistência. Organizado por Andrea Andújar, Karin Grammático, Débora D’Antonio, Fernanda Gil Lozano e María Laura Rosa, o livro dá sequência à compilação eletrônica Historia, Género y Política en los ’70 (Andújar, 2005), editada online pelo mesmo grupo no ano de 2005, como resultado das jornadas ocorridas na Universidade de Buenos Aires1, que lembraram os trinta anos do começo da ditadura argentina, abordando especificamente as relações de gênero.

A primeira parte da obra, denominada “Espacios de Militancia y Conflictividad”, é composta de quatro capítulos. Marta Vassalo aborda a situação das mulheres nas fileiras militantes, tratadas como duplamente subversivas, já que fugiam aos seus papéis tradicionais, assumindo lugares considerados masculinos. Além disso, Vassalo explora a maternidade e as normas morais e sexuais para os casais militantes, que tinham seus relacionamentos mediados pelos ditames das organizações – a descoberta do feminismo e sua reivindicação vieram a complicar ainda mais a situação de algumas mulheres que passaram a atuar na chamada dupla militância. Em outro capítulo, Karin Grammático fala das disputas internas do Movimento Peronista e das manobras e demandas da “Rama Femenina”, que tomou lugar nesse movimento. A autora aponta para as mulheres como grupo de interesse do peronismo, mas do qual não se fazia uma leitura política aprofundada; as mulheres teriam direitos políticos, dentro dos limites de seus papéis de mães e esposas, como as situava também Evita Perón. Além disso, Grammático faz uma interessante reflexão sobre a preocupação geracional do líder Perón, mesmo no exílio, de formar novos dirigentes a partir da Juventude Peronista. Segundo ela, Perón tentava apaziguar as agrupações armadas do movimento, como as Forças Armadas Peronistas e os Montoneros.

As trajetórias de religiosas “terceiromundistas” na Argentina são analisadas por Claudia Touris, que aponta os grupos de formação católica na renovação da esquerda nos anos 1960 e a ação limitada das mulheres dentro desses grupos, apesar da transformação das vidas das religiosas depois do Concílio Vaticano II; a aproximação com o peronismo e uma nova postura política marcaram a “nova mulher cristã”, politicamente ativa. Luciana Seminara e Cristina Viano também seguem as trajetórias de duas mulheres que começaram a vida política em grupos católicos alinhados com a Teologia da Libertação e que acabaram por encontrar a luta armada praticada pelos Montoneros e pelo Partido Revolucionário de los Trabajadores, deparando-se ainda com o feminismo, em um momento de “direitização” do governo peronista, de repressão intensa e clandestinidade.

A segunda parte do livro, “Prácticas Terroristas, Prácticas de Resistencia”, é aberta com o capítulo de Débora D’Antonio, que aborda a agência política praticada dentro dos cárceres entre 1974 e 1983. A autora tematiza a resistência e a reorganização política das mulheres no cárcere de Villa Devoto, criando uma cultura política carcerária; além disso, trata de violência sexual, tortura, sujeição dos corpos e colaboração, discutindo as estratégias de sobrevivência dessas mulheres. O capítulo de Laura Rodriguez Agüero mostra a repressão sobre prostitutas e militantes de esquerda em Mendoza, de 1974 a 1976, período em que estiveram em atividade na região os conservadores Comando Anticomunista de Mendoza e o Comando Moralizador Pio XII, que ameaçavam, assassinavam, colocavam bombas em casas noturnas, casas de militantes de esquerda, centros israelitas e igrejas evangélicas. Pessoas mortas eram encontradas nuas, algumas com as cabeças raspadas; a morte era decretada a quem colocasse em questão modos de vida tradicionais: prostitutas, homossexuais, traficantes.

No capítulo que encerra esta parte, Marina Franco aponta o exílio como espaço de transformação de gênero. Desde 1973,  com a repressão da Aliança Anticomunista Argentina, aproximadamente 300 mil foragidos deixaram o país. A autora analisa o papel ativo das mulheres diante da experiência migratória, a construção de novas percepções como força, segurança e independência, e o encontro de muitas delas com o movimento feminista na França, para onde partiram quase dois mil e quinhentos argentinos/as. Mas a autora avisa que essa relação deve ser matizada, pois seus efeitos concretos foram limitados. A manutenção dos papéis periféricos das mulheres no exílio, com a reestruturação das organizações e o encontro com ideais liberalizantes, levou à ruptura de diversos casais, já que as mulheres adquiriram novas posições domésticas e políticas; portanto o exílio pode ter tido um efeito acelerador, como explica a autora, com o deslocamento de prioridades e a descoberta de novas demandas assumidas pelas mulheres.

A terceira parte do livro, “Representaciones, Imágenes y Vida Cotidiana”, traz para o cenário historiográfico outras perspectivas, ainda incomuns nos meios acadêmicos. Andrea Andújar explora os vínculos de casal na militância política de esquerda dos anos 1970, trabalhando sobre a penetração mútua entre seus ideais e a cultura de massa, representada no capítulo pelas telenovelas e pelo rock and roll. Em um texto estimulante, Andújar reflete sobre a constituição de novas formas de ser e se relacionar para as mulheres, com a erosão do mundo tradicional e o questionamento das relações heterossexuais, monogâmicas, visando o casamento. Enquanto o rock trazia o rechaço aos cânones sociais vigentes e a apologia ao amor livre (ainda heterossexual), colocando as mulheres como agentes que também tomavam iniciativas, as telenovelas as representavam em sua passividade, mas já traziam algumas inovações nos papéis; ambos os segmentos culturais traziam o contexto social e político dos primeiros anos 1970. Enquanto isso, as organizações de esquerda viam as inquietudes amorosas como debilidade política, naturalizavam as tarefas tidas como femininas e reproduziam o modelo de conduta pregado pela ditadura: amor duradouro, fidelidade, reprovação do adultério, concepção tradicional de família. A autora sinaliza a cultura como espaço de disputas e a tentativa de novos vínculos amorosos em ambiguidade com o imaginário tradicional sobre o amor e as relações.

Isabella Cosse também traz os novos protótipos femininos que emergiram naqueles anos com a divulgação da imagem da “jovem liberada”, com desejo sexual ativo, que trabalhava e não tinha como meta o casamento; surgia uma nova sensibilidade moral, principalmente entre a classe média mais elevada, identificada com os Estados Unidos e com a Europa. O modelo dona de casa passou a ser rechaçado, a tecnologia resolveria os problemas das mulheres. Cosse analisa o papel das revistas de vanguarda para jovens liberadas, o plano modernizador e a influência feminista; tudo isso em contraste com as tímidas mudanças na classe média mais ampla e com o embate ideológico travado por revistas conservadoras (Para Ti) e populares (Vosotras), que tiveram de atender às novas demandas, apropriando-se dos novos códigos sociais, mas sem questionar gênero – reforçavam os lugares tradicionais das mulheres.

Um dos últimos capítulos, de Rebekah Pite, questiona as tarefas domésticas das mulheres argentinas difundidas pelos livros do ícone da cozinha, Doña Petrona, no período de 1970 a 1983. Segundo Pite, além de receitas, a chefe ensinava também qual seria o lugar das mulheres na sociedade argentina: perfeitas donas de casa, que sabiam economizar e receber convidados. A autora mostra que a cozinha era um lugar “natural” e seguro para as mulheres, e que o programa de Doña Petrona na televisão foi talvez o único a não sofrer os cortes da censura. Em cima da mesa, uma placa avisava aos convidados: “Proibido falar de política”. A apresentadora estava de acordo com os preceitos da ditadura: as mulheres deviam permanecer nos seus lares, mantendo os papéis tradicionais de gênero; era preciso modernizar a tradição, não romper com ela.

O único capítulo do livro que de certo modo destoa de um rigor metodológico é intitulado “Rastros de la ausencia: sobre la desaparición en la obra de Claudia Contreras”. María Laura Rosa questiona como a arte pode falar de genocídio e, como resposta, discorre sobre o contexto argentino, fazendo um paralelo com a arte lá produzida, buscando explorá-la como política. “Como falar de um passado que se prolonga no presente?”, pergunta a autora. Aos leitores e leitoras ficam algumas impressões que parecem pessoais e uma análise quase emotiva, que não problematiza o uso da arte como fonte para a historiografia. Essa é a ausência que podemos reivindicar.

Com esse apanhado de capítulos, percebemos a amplitude e o aprofundamento de temáticas que trazem para a discussão historiográfica sobre a última ditadura militar argentina a perspectiva das relações de gênero, no âmbito da esquerda política, mas também da direita. De minifaldas, militancias y revoluciones é uma parte importante de um debate, travado em sua transnacionalidade2 por pesquisadoras/es que se preocupam em complexificar a escrita da história, nela inserindo atores/as sociais que não estiveram presentes no que contemplou a historiografia tradicional, mas que trazem histórias e heranças próprias de um período intenso, vivido, lembrado e relembrado por grupos sociais que naquele momento ainda buscavam marcar seus lugares e espaços. Esse livro e as reflexões que ele suscita são marcas materiais de uma legitimidade e, ao mesmo tempo, espaços ocupados por sujeitos históricos ainda em permanente elaboração. Aos estudiosos e interessados, vale a pena conhecer um trabalho de competência acadêmica, que oferece novas possibilidades à historiografia latino-americana, partindo da perspectiva argentina.

Referências

Andújar, Andrea et aliiHistoria, género y política en los ’70. Buenos Aires, Feminaria, 2005. Disponível em www.feminaria.ar.         [ Links ]

Pedro, Joana Maria; Wolff, Cristina Scheibe; Veiga, Ana Maria. (orgs.) Resistências, Gênero e Feminismos contra as ditaduras no Cone Sul. Florianópolis, Ed. Mulheres, 2011.         [ Links ]

Pedro, Joana Maria; Wolff, Cristina Scheibe, (orgs.) Gênero, Feminismos e Ditaduras no Cone Sul. Florianópolis, Ed. Mulheres, 2010.         [ Links ]

Notas

1  Em 2010 as jornadas alcançaram sua terceira edição.
2  Essas questões são trabalhadas no Brasil por pesquisadoras/es do chamado Projeto Cone Sul, do Laboratório de Estudos de Gênero e História na Universidade Federal de Santa Catarina, que acabaram de editar o livro Resistências, Gênero e Feminismos contra as ditaduras no Cone Sul (Pedro, Wolff, Veiga, 2011), com estudos realizados nos países situados nesse espaço geopolítico, também sob a perspectiva do gênero. Antes dele, uma primeira compilação de textos elaborados a partir do colóquio “Gênero, Feminismos e Ditaduras no Cone Sul” (realizado na UFSC em maio de 2009) também foi publicada, reunindo autoras/es da Argentina, Uruguai, Chile, Paraguai, Bolívia e Brasil, que problematizam os períodos de ditaduras militares em seus países, imbricados às relações de gênero que os permearam (Pedro e Wolff, 2010). Ligado à Universidade de Campinas, um grupo coordenado pela socióloga Maria Lygia Quartim de Moraes também tematiza as ditaduras militares e as relações de gênero nesse período. Ainda sobre ditaduras, encontramos o trabalho da equipe de pesquisa de Carlos Fico, na Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Ana Maria Veiga – Doutoranda em História na Universidade Federal de Santa Catarina e bolsista da CAPES, Atualmente pesquisa sobre realizadoras de cinema do Brasil e da Argentina durante as ditaduras militares nos dois países, E-mail: E-mail: [email protected].

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[MLPDB]

 

How Feminism Travels across Borders – The Making of Our Bodies, Ourselves – DAVIS (REF)

DAVIS, Kathy. How Feminism Travels across Borders – The Making of Our Bodies, Ourselves. Durham and London: Duke University Press, 2007. Resenha de: VEIGA, Ana Maria. Uma viagem transnacional do feminismo: outra lente para a história. Revista Estudos Feministas v.18 n.1 Florianópolis Jan./Apr. 2010.

A historiadora holandesa Kathy Davis compartilha no livro How Feminism Travels across Borders, de maneira autêntica e singular, os resultados de uma ampla pesquisa que buscou abordar a circulação das teorias feministas sobre a saúde da mulher, com a obra que se tornou best seller dentro e fora dos Estados Unidos na década de 1970 e manteve essa posição até o final dos anos 1980, Our Bodies, Ourselves.

Davis, que é pesquisadora sênior do Research Institute for History and Culture na Utrecht University, na Holanda, analisa essa obra estadunidense de maneira crítica e com um distanciamento necessário. Sua proposta foi observar o modo como o livro “viajou” por diversos países – foi traduzido para mais de 30 idiomas – e as implicações dessa viagem na maneira de se pensarem o conhecimento feminista e as políticas de saúde em um mundo “globalizado”. Ela percebe a produção e a recepção do livro como uma teoria que transita entre as especificidades de um contexto mundial e nos conta que Our Bodies, Ourselves surgiu da compilação das discussões sobre “as mulheres e seus corpos” em encontros pontuais que aconteceram em diversos países, no final dos anos 1960, promovidos pelo grupo Boston Women’s Health Book Records – BWHBC. O resultado foi um manual com relatos de experiências pessoais e informações úteis a respeito da saúde das mulheres.

Editado em 1970, Our Bodies, Ourselves passou por diversas traduções e reedições, a última em 2005. De acordo com a autora, nesse ano já havia vendido mais de quatro milhões de exemplares (quatro vezes mais do que O segundo sexo, de Simone de Beauvoir), tornando-se uma obra de popularidade única na história do feminismo. Sua função principal, além do esclarecimento, teria sido a de desafiar os dogmas médicos sobre os corpos das mulheres, sendo denominado a “bíblia da saúde das mulheres”.

A interpretação de Davis é apresentada em três partes, que dimensionam a elaboração da obra e suas viagens a outras localidades; as políticas feministas de conhecimento, com o empoderamento que elas trazem; e a política transnacional do corpo, com uma crítica aos padrões ditados por modelos médicos pretensamente hegemônicos, mas também a um modelo de feminismo considerado imperialista.

Por meio de entrevistas, com o apoio das ferramentas da história oral e no campo da teoria feminista transnacional, a pesquisa foi realizada principalmente nos Estados Unidos, contando com depoimentos da maioria das autoras do livro, que formavam na época (1969) o grupo de Boston. Além disso, Kathy Davis promoveu encontros de discussão com um grupo de tradutoras da obra para os mais diversos idiomas. Assim, pôde analisar de que maneira o livro foi adaptado às necessidades específicas de cada país ou de cada região aonde chegava. Certamente não era possível prever uma aceitação das ideias que circulavam entre as feministas estadunidenses naquele momento por mulheres situadas na Ásia ou no Oriente Médio, lugares aonde a obra também chegou, principalmente no que se referia às questões sobre aborto e direitos reprodutivos.

Davis informa que o Brasil é um dos países que aguarda a tradução e que a adaptação mais próxima é a versão feita na Espanha, Nuestros cuerpos, nuestras vidas, já que a versão latino-americana acabou ficando incompleta e não chegou a ser editada devido a conflitos regionais. As editoras e as tradutoras locais não achavam possível pensar uma unidade do contexto latino-americano, alegando que não seria o mesmo traduzir o livro para uma mulher nicaraguense da periferia ou para uma mulher da classe média argentina. As especificidades nas traduções que a autora aponta nos sugerem que a distância cultural faz toda diferença para a leitura e a compreensão da obra, moldada mas também subvertida em cada situação.

Um aspecto interessante da análise proposta pelo livro How Feminism Travels across Borders é a compreensão de como as políticas de localização puderam gerar diferentes visões sobre a história, o conhecimento e as práticas feministas, e as possibilidades e os limites de alianças políticas entre mulheres de dentro e de fora dos Estados Unidos, país tido como missionário das ideias imperialistas. Com isso, aparece a crítica a Robin Morgan, que idealizou e organizou o livro Sisterhood is Global1 em 1984, com a proposta de alcançar um “feminismo global”. Davis contrapõe a essa perspectiva a ênfase na localização, que faz um movimento para fora das histórias lineares do feminismo no intuito de explorar como ele emerge, muda, viaja e se traduz em diferentes contextos espaciais e temporais. Dessa forma, a autora busca tornar visível o significado histórico do livro, tomando como paradigma de sua crítica o que chamou uma “história transnacional”, situada no contexto de um mundo em processo veloz de globalização.

O historiador e sociólogo francês Roger Chartier é peça importante nessa discussão, trazendo a noção da leitura como apropriação da obra original e todas as possibilidades que essa troca direta pode proporcionar. Para ele, é necessário que se reconheça a pluralidade das leituras possíveis de um mesmo texto, em função das disposições individuais, culturais e sociais de cada um dos leitores.2

No caso de Our Bodies, Ourselves, o livro pôde fazer-se e refazer-se seguindo as indicações das próprias leitoras, que escreviam para as autoras permitindo a elas acrescentar ou reelaborar informações e narrativas de experiências. Portanto, mulheres lésbicas, idosas, portadoras de deficiência ou com outras necessidades específicas foram sendo incluídas nas novas edições. Kathy Davis aponta a obra como um elemento móvel, um “documento vivo” atuando na constituição de sujeitos feministas em diferentes localizações, não como um material de consumo.

Outras autoras têm construído reflexões sobre as circulações e as viagens das teorias, buscando compreender as dinâmicas do feminismo transnacional. No campo dos estudos pós-coloniais encontramos o trabalho de Cláudia de Lima Costa, com a proposta similar à de Davis de se olhar para o feminismo como uma teoria que viaja, dentro do que esta última chamou de “projeto epistemológico feminista”. Costa propõe pensarmos sobre a circulação de teorias dentro do campo feminista, levando em conta o trânsito entre o hemisfério norte, tradicionalmente visto como emanador, e o hemisfério sul das Américas, que seria o receptor das teorias.3

Como contraponto a esse argumento, Adriana Piscitelli fala sobre a hierarquização evidenciada por ele e mostra que é preciso ter atenção quanto à apropriação de concepções feministas fora do âmbito em que elas se desenvolvem, pois as referências externas podem obscurecer a compreensão de como operam as práticas locais.4

Cláudia de Lima Costa aponta a tradução cultural como um espaço privilegiado para se elaborarem análises críticas sobre a política de representação e as assimetrias entre linguagens no deslocamento das teorias feministas por espaços geopolíticos diferentes.5

María Luisa Femenías e Nelly Richard colaboram com esse debate, valorizando as reflexões produzidas pelas feministas em âmbito local e a não subordinação às ideias que chegam por meio dos materiais estrangeiros. Para Femenías, o “lugar de apropriação” que resulta do traslado das teorias fratura, de maneira decisiva, o discurso original, permitindo uma revalorização e uma ressignificação contextualizada.6

Nelly Richard também discute a questão da apropriação das teorias dos chamados países do “centro” por aqueles considerados de “periferia”. Para ela, as operações de códigos das práticas subalternas reinterpretam e criticam hibridamente, a partir do seu interior, os signos da cultura dominante. A autora ataca e desconstrói os argumentos das feministas dos países do norte, que apontam para a divisão entre a teoria produzida por elas e a experiência compartilhada pelas latino-americanas. De acordo com Richard, muitas teóricas escrevem a partir de elaborações formuladas por mulheres latino-americanas, consideradas incapazes para a produção teórica.7

Kathy Davis, com sua interpretação sobre o fazer-se do livro Our Bodies, Ourselves, situa-se em confluência com a crítica suscitada por esse debate e termina o livro com reflexões a respeito da postura das feministas estadunidenses, que veem o feminismo como um produto de seu país. A autora contrapõe o que chamou de declínio da “segunda onda branca” com a ascensão de um feminismo multirracial. Para ela, o livro mostra que o feminismo não está limitado aos Estados Unidos e ganha mais força fora de lá, enriquecido pela multiplicidade de contextos.

Davis apresenta uma pesquisa de fôlego e relevância para os campos dos estudos feministas, da teoria feminista transnacional, da história cultural e, também, dos estudos póscoloniais (que recebem da autora uma crítica importante por reforçar a ênfase nas sociedades do chamado Primeiro Mundo).

O título How Feminism Travels across Borders – The Naking of Our Bodies, Ourselves nos faz pensar sobre o tipo de fronteira (border) ao qual a autora se refere, uma vez que as fronteiras territoriais geográficas estão sendo cada vez mais apagadas pelos movimentos transnacionais, como é o feminismo, ele próprio situado num espaço “entre-fronteiras”, a princípio marginalizado, atualmente problematizado com interesse por diversos campos, dentro e fora da academia. De qualquer maneira, o livro de Kathy Davis abre outras perspectivas para pensarmos a história do feminismo de modo mais amplo e torna-se leitura indispensável para quem se interessa por quaisquer dos campos mencionados.

Notas

1 Robin MORGAN, 1996.
2 Roger CHARTIER, 2001.
3 Cláudia de Lima COSTA, 2004.
4 Adriana PISCITELLI, 2005.
5 COSTA, 2003.
6 María Luisa FEMENÍAS, 2006.
7 Nelly RICHARD, 2003.

Referências

CHARTIER, Roger. “Do livro à leitura”. In: ______ (Org.). Práticas da leitura. Tradução de Cristiane Nascimento. São Paulo: Estação Liberdade, 2001. p. 77-105.         [ Links ]

COSTA, Cláudia de Lima. “As publicações feministas e a política transnacional da tradução: reflexões do campo”. Revista Estudos Feministas, Florianópolis: CFH/CCE/UFSC, v. 11, n. 1, p. 254-264, 2003.         [ Links ]

______. “Feminismo, tradução, transnacionalismo”. In: COSTA, Cláudia de Lima; SCHMIDT, Simone Pereira (Org.). Poéticas e políticas feministas. Florianópolis: Editora Mulheres, 2004. p. 187-196.         [ Links ]

FEMENÍAS, María Luisa. “Afirmación identitaria, localización y feminismo mestizo”. In: ______ (Comp.). Feminismos de París a La Plata. Buenos Aires: Catálogos, 2006. p. 97-125.         [ Links ]

MORGAN, Robin (Ed.). Sisterhood is Global – The International Women’s Movement Anthology (1984). 2. ed. New York: The Feminist Press at The City University of New York, 1996.         [ Links ]

PISCITELLI, Adriana. “A viagem das teorias no em-bate entre práticas acadêmicas, feminismos globais e ativismos locais”. In: MORAES, Maria Lygia Quartim de (Org.). Gênero nas fronteiras do sul. Campinas: Pagu; UNICAMP, 2005. p. 143-163.         [ Links ]

RICHARD, Nelly. Intervenções críticas: arte, cultura, gênero e política. Belo Horizonte: UFMG, 2003.         [ Links ]

Ana Maria Veiga – Universidade Federal de Santa Catarina.

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