Dogmatismo e antidogmatismo: filosofia crítica, vontade e liberdade – DEBONA et al (V-RIF)

DEBONA, Vilmar; FONSECA, Eduardo Ribeiro; HULSHOF, Monique; MATTOS, Fernando Costa; RAMOS, Flamarion Caldeira. (Orgs.). Dogmatismo e antidogmatismo: filosofia crítica, vontade e liberdade. Uma homenagem a Maria Lúcia Mello e Oliveira Cacciola. Curitiba: Editora UFPR, 2015. Resenha de: DIAS, Claudia Assunpção. Voluntas – Revista Internacional de Filosofia, Santa Maria, v.7, v.1, p.224-230, 2016.

O livro Dogmatismo e antidogmatismo: filosofia crítica, vontade e liberdade, uma coletânea de vinte e oito textos, foi organizado por um grupo de ex-orientandos de Maria Lucia Cacciola e visou não apenas prestar uma homenagem a professora e pesquisadora da Universidade de São Paulo, mas também demonstrar a grande importância da homenageada no cenário filosófico brasileiro. O elemento que mais justifica o reconhecimento de tal importância e a iniciativa da organização do livro remete necessariamente a difusa o promovida por Cacciola do pensamento de Schopenhauer no meio acadêmico do Brasil por meio de suas traduções, publicações, aulas e conferencias. Com efeito, a sua tese de doutoramento, intitulada Schopenhauer e a questão do dogmatismo, foi o primeiro trabalho acadêmico de folego sobre Schopenhauer defendido no país1, fato representativo na o apenas por ter consistido, nas palavras de seu orientador – outra grande figura da filosofia brasileira, Rubens Rodrigues Torres Filho -, numa “reviravolta na interpretação de Schopenhauer”2, mas por ter sido capaz de promover uma nova frente de pesquisas, que, ao partir de Kant, de Schelling ou de Fichte, não toma Schopenhauer apenas como um discípulo ou interprete, mas como pensador original e influenciador de muitos outros grandes nomes, dentre eles Nietzsche e Freud. Foi devido aos interesses de Cacciola por Schopenhauer, a época na o estudado de forma rigorosa, e as colaborações com seus orientandos da USP, como Jair Barboza, seu primeiro orientando, que se abriu um campo fértil de novos estudos schopenhauerianos em terras tupiniquins. Surgem, a partir de então, variadas traduções das obras do filosofo, começa-se a organizar um Colóquio Internacional Schopenhauer (com sete edições já realizadas), inaugura-se uma Seção brasileira da Schopenhauer-Gesellschaft, que e presidida por Cacciola, cria-se o GT Schopenhauer da ANPOF e a Revista Voluntas: Estudos sobre Schopenhauer, assim como o numero de dissertações e teses aumentam significativamente3.

Para além dos muitos feitos da homenageada, que por si só justificariam a publicação da extensa obra aqui resenhada, interessa-nos destacar que o núcleo conceitual da pesquisa e da produção de Maria Lu cia Cacciola, espelhado no oportuno título do Festschrift em questão, consiste na problematização do dogmatismo a partir do pensamento schopenhaueriano. Em sua fecundidade, o modo com que a tema tica e abordada pela autora cumpre a tarefa de romper com a imagem de um Schopenhauer que, ao admitir a vontade como essência, teria restabelecido o dogmatismo que a filosofia crítica kantiana havia implodido. Conforme notam os organizadores na Apresentação do livro, Cacciola se encarrega de mostrar por que Schopenhauer não só na o e um pensador “pré -crítico”, como também pretendeu radicalizar o projeto kantiano de na o assumir o “mundo da representação” como absolutamente real (cf. p. 6), limitando ainda mais o papel da razão e buscando a essência do mundo no próprio mundo, ao invés de ser em ideais transcendentes4. Assumir a vontade como essência cósmica e no horizonte de uma metafísica imanente na o acarretaria, pois, em tomar a metafísica da vontade como dogmática, já que, como bem argumenta a autora em sua tese, e o próprio Schopenhauer que reivindicara um “fundo escuro” e grundlos, sem fundamento, para a vontade que se manifesta no cara ter de cada fenômeno.

Além disso, conforme assinala Lean [DR] o Chevitarese num dos capítulos do Festschrift (cf. pp. 181-186), Cacciola assumiu o desafio de indicar em que medida Schopenhauer deu cabo ao seu projeto de não conceber a vontade como absoluto. E ela faz isso argumentando, p. ex., que o “como” (als) do título da obra magna do pensador – O mundo como vontade e representação -, traduz-se na defesa de que a vontade só e coisa-em-si relativamente, ou seja, em relação ao fenômeno, do mesmo modo como este e fenômeno tão somente em relação a coisa-em-si. Indicando, com isso, um possível cara ter perspectivista na metafísica schopenhaueriana, Cacciola sublinhara em vários de seus trabalhos5 a importância de se entender que, se ha algum dogmatismo no sistema do filosofo do “pensamento único”, só poderia se tratar de um dogmatismo imanente (immanenter Dogmatismus), conforme comenta o próprio Schopenhauer em seus Fragmentos para a história da filosofia6.

Dito isso quanto a s linhas norteadores do trabalho filosófico da homenageada, cabe observar brevemente que o conjunto de temas dos textos que compõem o Festschrift reflete bem a vastidão de interesses de pesquisa de Cacciola, assim como o universo de temas a partir dos quais ela, como orientadora, formou um significativo grupo de pesquisadores e especialistas brasileiros sobre a filosofia clássica alemã . Conforme afirmam os organizadores,

Embora a maior parte das contribuições verse sobre a filosofia schopenhaueriana (a ponto de transformar o presente livro numa importante fonte para o estudo do filósofo, abrangendo as diversas facetas de seu pensamento, da teoria do conhecimento à metafísica, da ética à estética, passando pela reflexão filosófica sobre a religião), não se pode deixar de notar a variedade de suas perspectivas: temos contribuições sobre Nietzsche, Kant, a psicanálise, textos sobre autores tão diferentes como Bodin e Schulze ou Reinhold […] (p. 8).

Outra linha de interesse da homenageada e a estética em seus diversos ramos, das artes plásticas ao cinema, abarcando a poesia, a musica e a pintura. Na obra em questão, assuntos desse domínio da filosofia aparecem em nada menos que seis capítulos. Como a problemática sobre a metafísica imanente schopenhaueriana e sua abordagem “antidogmática” empreendida por Cacciola abrange também a conhecida metafísica do belo de Schopenhauer, pretendemos tecer a seguir alguns comenta rios sobre dois capítulos do livro que nos interessam mais de perto, por tratarem de noções da este tica desse pensamento.

O primeiro deles e de autoria de Matthias Kossler e se intitula Sobre o papel do discernimento [Besonnenheit] na estética de Arthur Schopenhauer. Ao elencar os diversos âmbitos da filosofia schopenhaueriana nos quais o discernimento se faz presente (teoria do conhecimento, e tica, negaça o da vontade e este tica), Kossler mostra de forma clara como e possível identificar variados graus dessa noção, cujo aumento depende da intensidade da separação entre vontade e intelecto. Ou seja, quanto mais incomum for o discernimento de dado indivíduo, mais o seu intelecto estaria distanciado de sua raiz, a vontade, de modo que o aumento exagerado do discernimento, segundo Schopenhauer uma “anormalidade”, indicaria o cara ter do gênio (artístico), que intuiria os objetos do mundo sem considerar apenas um lado desses objetos, aquele referido a própria vontade e que lhe interessa, mas também os outros lados, independentes do serviço e interesse da vontade. De forma resumida, Kossler afirma que “na este tica, o discernimento capacita os artistas a apreender as coisas de maneira objetiva e assim apresentá-las em suas obras de modo que no observador essa apreensão objetiva, que Schopenhauer caracteriza como intuição das Ideias, seja ocasionada” (p. 23-24, grifo nosso). No entanto, o comentador na o chega a desenvolver uma analise sobre como esse discernimento atuaria no processo mesmo de exposição artística. Talvez o momento da apresentação ou da exposiçao (Darstellung) artística seja o que mais exige uma destreza pragmatica e “discernida”, já que e necessário despertar a fantasia do espectador. Diferentemente do momento da criação, em que a metafísica do belo schopenhaueriana admite ate mesmo um poder intuitivo que domina o artista e que e espontâneo, o momento da exposição soa menos intuitivo, menos espontâneo e mais dado a uma aça o refletida e direcionada a um fim, como se observa no caso de um poeta, por exemplo, que precisa seguir rigorosamente determinados passos ou regras, escolher as palavras adequadas, o ritmo e a rima, para transmitir de forma objetiva a Ideia intuí da. Ora, se, conforme afirma Kossler, supusermos que “discernimento e o contra rio da espontaneidade”, e assumirmos também que o momento menos espontâneo do artista refere-se a seus procedimentos este ticos (menos metafísico-intuitivos), na o seria ainda mais pertinente uma problematização do conceito schopenhaueriano de discernimento na esfera da exposição artística, ao invés de ser no âmbito da criação/intuição?

O segundo texto que nos motiva a comentar, também sobre este tica, e o de Jair Barboza, intitulado Contra a tradição: Schopenhauer como filósofo acústico. Como já indica o título, o autor apresenta argumentos que mostram em que medida Schopenhauer pode ser visto como um pensador que inverteu a hierarquia dos sentidos que, em geral, na tradição ocidental, reserva a visa o e a s artes visuais a primeira posição. O filosofo que classificou a musica como arte suprema e ate mesmo destacada da hierarquia que espelha os graus de manifestação da vontade teria também, em algum sentido e ao menos em certos contextos, submetido as artes visuais a experiencia auditiva. Conforme destaca Barboza, para Schopenhauer, “enquanto pelas artes visuais ainda apreendemos uma “copia” das Ideias, nas artes de sons sentimos a expressa o direta da vontade como coisa-em-si” (p. 191). O elemento mais contundente da argumentação do autor e o da conhecida equivalência que o pensador alemão faz entre os sons e o espectro dos reinos naturais: para ele, o mundo e seus reinos arquetípicos confundem-se com a musica e, nesse sentido, mesmo se na o houvesse mundo fenomênico, ainda poderia haver música. Compreender ou captar o mundo fenomênico significaria, então, ouvi-lo em seus diversos tons ou de acordo com as quatro vozes de uma harmonia, cada um correspondendo a um reino natural específico: o baixo ao mineral, o tenor ao vegetal, o contralto ao animal e o soprano ao humano. Pelo conhecido destaque e enaltecimento da música, o filosofo que desenvolveu boa parte de sua filosofia sob o signo da visa o, conforme bem demonstra o autor (cf. p. 189-190), e que – acrescentemos – publicou um ensaio intitulado justamente Sobre a visão e as cores, poderia mesmo ser tomado, por mais esse motivo, como um pensador contra a tradição.

No entanto, uma possível problema tica que poderia surgir da questão apresentada por Barboza, e que foi apontada apenas de passagem pelo autor, diz respeito ao lugar que a poesia ocuparia entre a oscilação da primazia dada por essa filosofia, por um lado, para a visa o e, por outro, para a audição. Se assumida como “um meio termo entre arte visual e arte auditiva” (p. 191), não teríamos que admitir – para discutirmos a concepção schopenhaueriana de poesia – uma suspensa o provisória dos argumentos que disputam o primeiro lugar apenas para a visa o ou apenas para a audição, classificando-as, quiçá , num mesmo patamar? Elementos para respondermos a essa questão poderiam ser encontrados em vários textos do filosofo. E um possível horizonte de argumentação pode ser aquele ilustrado pelo autor nas ultimas linhas do capítulo (cf. p. 194). Ao tratar do tema das artes nos Suplementos (Tomo II) de O mundo como vontade e representação, Schopenhauer nos surpreende com uma diferenciação nos títulos de seus capítulos: para a arquitetura e a poesia, os títulos são Estética da arquitetura e Estética da poesia, já para a musica, o título e Metafísica da música. Se esta diferenciação serve como argumento para detectarmos a preferencia ou a primazia outorgada pelo filosofo a musica e, assim, a audição, conforme sugere Barboza, a questão pode instigar uma problema tica conceitual mais ampla. Isso porque, notadamente em suas Preleções sobre a Metafísica do belo e no Livro III do Tomo I de sua obra magna, o filosofo da vontade adverte justamente para a importância de distinguirmos entre metafísica do belo e este tica. No entanto, como se percebe pelos títulos dos Suplementos, com exceção da musica, as artes parecem ser abordadas tanto sob a chave da metafísica (do belo) quanto da este tica. E assim podemos pensar a questão mencionada sobre a particularidade da poesia – que se situaria entre arte visual e arte auditiva -, uma vez que ela, em específico, quando tomada sob a perspectiva da metafísica e situada no topo da pirâmide hierárquica das artes como reveladora da Ideia de humanidade; já quando tomada sob a perspectiva da Este tica do Tomo II, o que esta em questão são, sobretudo, as suas técnicas de apresentação (metro, rima, vocabulário etc) e dos me todos mais convenientes para o poeta atingir seu objetivo, ou seja, uma questão que envolve diretamente questões relativas tanto a audição quanto a visão.

A julgar pela natureza dos temas dois dois capítulos aqui comentados em específico, torna-se indispensável afirmarmos que a obra resenhada pode ser considerada uma fonte profícua para debates sobre variados temas da filosofia clássica alemã e, como na o poderia deixar de ser, para a pesquisa sobre Schopenhauer. Os vinte e oito capítulos, que versam sobre a já assinalada pluralidade de temas e abordagens, assim como o nobre proposito pelo qual veio a publico – o de homenagear uma grande figura da filosofia brasileira – fazem de Dogmatismo e antidogmatismo um livro de interesses transversais, recomendável tanto para especialistas quanto para iniciantes.

Ademais, torna-se impossível a tarefa de apresentarmos aqui o todo desta obra singular, tarefa que, por isso, confiamos ao leitor.

Notas

1 A tese foi defendida em 1991 no Departamento de Filosofia da USP e publicada como livro em 1994, pela Edusp, tornando-se uma referência obrigatória para os estudos brasileiros sobre Schopenhauer.

2 TORRES FILHO, R. R. Prefácio. In: CACCIOLA, M, L. Schopenhauer e a questão do dogmatismo, p. 16.

3 Para um registro das principais atividades de pesquisa, traduções e publicações sobre Schopenhauer que foram e estão sendo realizadas no Brasil, cf. CACCIOLA, M. L.; DEBONA, V.; SALVIANO, J. O. Gechichte und aktuelle Situation der Schopenhauer-Studien in Brasilien, 2015; e, para outra versão do mesmo material, CACCIOLA, M. L.; DEBONA, V.; SALVIANO, J. O. A história e a atual situação dos estudos schopenhauerianos no Brasil, 2013.

4 Nesse sentido, vale observar que a dissertação de mestrado de Cacciola aborda justamente a temática da crítica da razão em Kant e Schopenhauer. Cf. CACCIOLA, M. L. A crítica da razão no pensamento de Schopenhauer, 1982.

5 Recentemente a autora publicou um texto intitulado justamente sobre o assunto no anuário Schopenhauer-Jahrbuch (cf. CACCIOLA, M. L. Immanenter Dogmatismus, p. 151-162).

6 “[…] poder-se-ia chamar meu sistema de dogmatismo imanente, pois, embora seus princípios doutrinais sejam de fato dogmáticos, não ultrapassam todavia o mundo dado na experiência, mas apenas esclarecem o que ele é, já que o decompõe em suas partes componentes” (SCHOPENHAUER, A. Fragmentos para a história da filosofia, p. 118).

Referências

CACCIOLA, Maria Lúcia. Schopenhauer e a questão do dogmatismo. São Paulo: Edusp, 1994.

_____. Immanenter Dogmatismus. Schopenhauer-Jahrbuch. Würzburg: Königshausen & Neumann, Bd. 93, 2012, pp. 151-162.

_____. A crítica da razão no pensamento de Schopenhauer. Dissertação de Mestrado. Universidade de São Paulo, São Paulo, 1982.

CACCIOLA, Maria Lúcia; DEBONA, Vilmar; SALVIANO, Jarlee Oliveira. Gechichte und aktuelle Situation der Schopenhauer-Studien in Brasilien. Schopenhauer-Jahrbuch. Würzburg: Königshausen & Neumann, Bd. 96, 2015.

_____. A história e a atual situação dos estudos schopenhauerianos no Brasil. Revista Voluntas: Estudos sobre Schopenhauer. Rio de Janeiro, Vol. 4, Nº 1 – primeiro semestre de 2013, pp. 146-150.

SCHOPENHAUER, Arthur. Fragmentos para a história da filosofia. Trad. Maria Lúcia Cacciola. São Paulo: Iluminuras, 2003.

TORRES FILHO, Rubens Ro [DR] igues. Prefácio. In: CACCIOLA, Maria Lúcia. Schopenhauer e a questão do dogmatismo. São Paulo: Edusp, 1994.

Claudia Assunpção Dias – Mestranda em Filosofia pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). E-mail: [email protected]

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[DR]

 

Sobre a vontade na natureza

SCHOPENHAUER, Arthur. Sobre a vontade na natureza. Tradução, prefácio e notas de Gabriel Valladão Silva. Porto Alegre: L&PM, 2013. Resenha de: SILVA, Luan Corrêa da. Voluntas – Revista Internacional de Filosofia, Santa Maria, v.4, n.2, p.103-111, 2013.

Gabriel Valladão Silva acaba de publicar, pela editora L&PM, a primeira tradução brasileira, e direta do alemão, do escrito Sobre a vontade na natureza, com o subtítulo Uma discussão das confirmações que a filosofia do autor obteve das ciências empíricas desde seu aparecimento, publicado pela primeira vez em 1836 e reeditado em 1854. A tradução também acompanha uma apresentação e notas do tradutor.

Passados dezessete anos desde a primeira edição de O mundo como vontade e como representação (1818), Arthur Schopenhauer quebra o silêncio e divulga neste texto aquilo que ele pensa ser, de certo modo, a “prova real” de sua doutrina, isto é, a confirmação da filosofia do Mundo oferecida pelas ciências empíricas que vinham se desenvolvendo em seu tempo. A estratégia de Schopenhauer é a de considerar os relatos de cientistas das mais diversas áreas como confirmações empíricas da sua doutrina, tendo como fio condutor “os degraus da natureza de cima para baixo”, ou seja, da complexidade das ações mais arbitrárias dos entes animais até a manifestação mais fundamental da natureza que é a gravidade. Desse modo, mais do que prestar contas da credibilidade de sua posição, o filósofo encontra uma excelente oportunidade para desenvolver a temática na qual todas as ciências empíricas encontram o seu limite, a saber, a da identidade metafísica da vontade em meio à pluralidade das suas aparições.

Com muito entusiasmo, Schopenhauer oferece conselhos aos “jovens sedentos de verdade”, dizendo-lhes para não perder tempo com a filosofia de cáte [DR] a, universitária, e, em vez disso, estudarem as obras de Kant e também as suas (Prefácio, 41). Teria sido Kant o responsável por introduzir a seriedade na filosofia, que Schopenhauer faz questão de manter em pé, uma seriedade que é expressa sobretudo na verdade fundamental e paradoxal da oposição entre mera aparição e coisa em si que, no contexto do Mundo, traduzem-se em termos de representação e vontade. Esse substrato de toda aparição e de toda natureza, a coisa em si, embora barrado pela doutrina kantiana do idealismo transcendental como absolutamente incognoscível, se corporificado em termos de vontade torna-se aqui aquilo que nos é imediatamente conhecido e confiado; que, diferentemente do que supunham os filósofos até então, não é inseparável e nem tampouco resultado da cognição, mas fundamentalmente primária a esta, podendo se manifestar sem ela, como é o caso, aliás, em grande parte dos reinos da natureza. Assim, portanto, toda a diversidade de constituição e organização da natureza, o seu maquinário, são em si e fora da aparição (da representação) absolutamente idênticas àquilo que reconhecemos em nós mesmos como vontade.

É por isso que a física, em seu sentido mais antigo grego de “physis”, deve chegar, em todas as suas ramificações, a um ponto final onde as suas explicações já não avançam mais, e este ponto é a sua fronteira com a metafísica. Diante do caráter inacessível e obscuro da metafísica, os cientistas viam-se pressupondo muitas vezes em suas explicações, intencionadamente ou não, noções tais como “força vital”, “força da natureza”, “impulso de constituição”, etc., que em última instância não querem dizer mais do que um “x”, “y” ou “z” desconhecido. Nos casos em que os cientistas foram adiante e espiaram por detrás das cortinas dessa fronteira, arriscando um passo além de simplesmente percebê-la como tal, eles experimentaram verdadeiramente um pressentimento comum ao dos filósofos da natureza, “semelhante àquele de mineradores que, escavando duas galerias a partir de dois pontos muito distantes entre si, uma em direção à outra, após ambos terem trabalhado muito tempo na escuridão subterrânea, confiando apenas na bússola e no nível, experimentam finalmente a felicidade de há muito desejada de ouvir as marteladas um do outro” (Introdução, 48).

Sobre a vontade na natureza é dividido em oito capítulos, além do Prefácio adicionado à segunda edição (1854), Introdução e a Conclusão. São eles: Fisiologia e patologia; Anatomia comparada; Fisiologia vegetal; Astronomia física; Linguística; Magnetismo animal e magia; Sinologia e Indicação à ética. Poderíamos sugerir uma divisão metodológica do escrito em duas partes: na primeira, até Astronomia física, Schopenhauer segue explicitamente o fio condutor da gradação “decrescente”, em relação às espécies da natureza, e “ascendente”, em direção às leis mais gerais, tendo como clímax as confirmações no reino inorgânico; e na segunda parte encontramos confirmações complementares, e não menos importantes, daquelas oferecidas na primeira parte, assim, o magnetismo animal aparece apropriadamente após já se ter considerado o magnetismo mineral, por exemplo.

No primeiro capítulo, Fisiologia e patologia, Schopenhauer encontra comprovações na Fisiologia e na Medicina de que na tentativa de explicar o funcionamento do organismo, seja no estado de saúde ou de doença, os cientistas eram obrigados a admitir um princípio condutor da vida, como fonte primordial das funções vitais. Jean Pierre Flourens teria demonstrado que o cérebro é a morada do arbítrio (atos da vontade motivados), mas não da vontade, e Albrecht von Haller teria avançado em comprovar que não somente as ações externas acompanhadas de consciência, mas também os processos vitais totalmente inconscientes ocorrem sob a direção do sistema nervoso: as primeiras direcionadas pelos nervos do cérebro guiando ações externas (sistema nervoso central) e os últimos, porém, sem essa mediação, guiando ações internas. Tem-se, portanto, o cérebro como morada dos motivos, e um “segundo” cérebro, o cérebro abdominal do sistema nervoso simpático, como responsável pelos estímulos internos; “o primeiro pode ser comparado ao ministério do exterior, o último, ao do interior: a vontade, porém, permanece autárquica e onipresente” (Fisiologia e patologia, 71). A verdadeira fisiologia explicaria, assim, o que há de espiritual no ser humano como produto do que nele é físico, e a verdadeira metafísica ensinaria que justamente este “eu físico” é apenas aparição de algo espiritual, a vontade.

Em Anatomia comparada Schopenhauer encontra aliados entre os zootomistas, fisiólogos e biólogos para enfrentar o argumento físico-teológico da constituição anatômica dos animais, partindo da tese de que “o caráter do querer como um todo deve estar na mesma relação para com a forma e a constituição de seu corpo que o ato singular da vontade está para a ação corporal singular que o executa” (Anatomia comparada, 83). A adequação perfeita do animal à sua forma de vida própria, como também a perfeição de sua constituição e organização, entendida como uma absoluta conformidade a fins, indicam de modo bastante evidente que aqui não agiriam forças da natureza casuais e desorientadas, mas uma vontade. Ocorre que não se pensava em uma vontade que não fosse guiada pelo conhecimento, de tal modo que presumidamente a ação da vontade tinha de ser uma ação exterior e, assim, a vontade cujo produto é o animal teria de ser externa a ele; de acordo com essa visão, o animal teria de existir na representação antes mesmo de existir em realidade, ou em si. O touro chifra porque quer chifrar e o pássaro voa porque quer voar a partir da Ideia que constitui a espécie, e cada órgão deve ser tomado como expressão de uma manifestação universal, concretizado no desejo fixo característico de cada espécie enquanto vontade para a vida (Wille zum Leben).

Descendo mais um degrau na escala dos seres, o reino vegetal recebe seu desenvolvimento em Fisiologia vegetal, cujo objetivo principal é o de mostrar como também os vegetais são movidos pela vontade, onipresente em todos os níveis, todavia visível aqui de forma muito mais lenta. As comprovações e relatos apresentados indicam que o movimento das plantas é espontâneo, isto é, dependente de um princípio interno que “acolhe imediatamente a influência de agentes externos” (Fisiologia vegetal, 114), como relata Georges Cuvier, e apenas por hesitação é que não se atribuíra sensibilidade às plantas, preferindo-se termos menos fortes tais como “nervimobilidade”. Entendida como sinônimo de manifestação da vontade, a espontaneidade evidencia também algum grau de conhecimento – e até de escolha – manifestada nas plantas como excitação; exemplos disso encontramos em espécies de trepadeiras que, obstinadas em extrair o seu alimento de outras plantas vivas, descrevem ao longo de seu crescimento um movimento circular similar àquele das minhocas, permitindo sua aproximação do alvo. A dificuldade de se reconhecer, portanto, um sentido interno para os vegetais, um “instinto vegetal”, também resulta da influência da antiga opinião de que a consciência é condição para a vontade. De fato, as plantas possuem somente algo análogo à cognição, o estímulo, mas a vontade elas possuem plenamente de forma imediata, pois esta enquanto coisa em si está em tudo o que aparece.

A coisa em si também é vontade na natureza inorgânica, e suas forças são idênticas àquilo que em nós aparece na forma do querer. Em Astronomia física, capítulo central de Sobre a vontade na natureza, a vontade é considerada a partir de seu menor grau de expressão, que conhecemos pelas leis que regem a matéria. Que a todo movimento possamos atribuir uma causa e um efeito, isto é, que haja na natureza uma identidade causal, isso pode nos ser constatado exteriormente, pelo intelecto; é apenas a sua ocasião. Mas que a condição do movimento ou ação seja interna, nisso reside todo o mistério e obscuridade, cuja compreensão só pode ser alcançada na direção contrária àquela do intelecto, ou seja: “quanto mais próximo, portanto, um lado do mundo estiver, tanto mais perderemos o outro de vista” (Astronomia física, 152). Assim, também onde a relação de causa e efeito parece nitidamente compreensível, no patamar mais inferior da natureza inorgânica, uma identidade interior permanece misteriosa; algo que é ainda mais latente quando nos elevamos até o fenômeno (Phänomen) da vida no reino orgânico, expresso na desproporção magnífica existente entre a germinação rudimentar de uma semente e a complexidade e diferenciação das inúmeras espécies vegetais, gerando a impressão de estarmos diante de “um verdadeiro milagre” (Astronomia física, 146). A resolução do enigma da vida e da existência reside, portanto, na passagem (Übergang) de uma explicação a partir de causas para a compreensão da própria vontade que, quando estabelecida pela reflexão, revela-nos o segredo para o qual a filosofia busca solução há tanto tempo, trata-se da identidade metafísica da vontade.

No breve capítulo Linguística Schopenhauer vai além do meramente linguístico, visa mostrar como que algumas expressões da linguagem ordinária e também científica vão além das aparentes metáforas e de outras figuras de linguagem, e contêm em si uma sabedoria concreta ligada à essência das coisas, como expressão mais imediata de nossos pensamentos (Linguística, 156). Já no extenso Magnetismo animal e magia, Schopenhauer encontra nas sabedorias ocultas comprovações ainda mais profundas de sua filosofia, sobretudo no magnetismo animal e nas curas simpáticas, que já vinham garantindo certo espaço nas discussões mais científicas. Se podemos definir a magia como “actio in distans” (ação à distância), ou seja, ação que não ocorre por via causal determinada mas sim por via subterrânea metafísica, então devemos supor que haja um nexo metafísico em oposição ao nexo físico dos corpos. O “sobrenatural” escapa de nossa compreensão causal, suspende o isolamento na ordem do indivíduo e amplia a ação da vontade que agora extrapola o seu limite corpóreo. Após inúmeras referências às maiores contribuições daqueles que se ocuparam do assunto, Schopenhauer conclui que o verdadeiro agente do magnetismo animal, e de toda ação mágica, é a vontade. Assim, o magnetismo animal e a magia são efetivamente como uma metafísica prática – nos termos que Francis Bacon já utilizara para designar a magia, como metafísica empírica ou experimental – são a antecipação daquilo que é desenvolvido na sua metafísica da vontade, cuja decomposição do mundo em vontade e representação serve de melhor correlato teórico.

A Sinologia, que há muito pouco vinha se desenvolvendo na Europa, já apresentava resultados e desafios que também corroboravam a filosofia de Schopenhauer. O dado mais relevante diz respeito à difusão do Budismo no oriente – considerado por Schopenhauer como a mais nobre das religiões (Sinologia, 198) – o que no mundo chinês é testemunhado pela profunda admiração a Dalai-Lama e a Teshu-Lama. A apropriação ocidental da palavra chinesa “tien” tem como correspondente mais imediato “céu”, mas em sentido figurado revela-se também em seu sentido metafísico, como o princípio supremo e todas as coisas, dentre as suas inúmeras designações, “o espírito celeste é dedutível daquilo que é a vontade da espécie humana” (Linguística, 205). E por fim, em Indicação à Ética, Schopenhauer antecipa algumas questões presentes em dois escritos publicados sob a rubrica Os dois problemas fundamentais da Ética (1841), são eles: Sobre a liberdade da vontade e Sobre o fundamento da moral. Dentre essas questões está a asseidade da vontade, isto é, a sua autodeterminação no mundo, que deve ser condição primeira de uma Ética séria, bem ancorada na metafísica. O que Schopenhauer chama de vontade é o que conhecemos em nosso próprio interior, um verdadeiro ens realissimum (ente realíssimo); a explicação do mundo não parte, assim, de um desconhecido, mas daquilo que nos é mais íntimo, apenas de uma maneira totalmente distinta de todo o resto que aparece (Indicação à Ética, 213).

Nos Suplementos ao Mundo, publicados em 1844, Schopenhauer remete ao Sobre a vontade na natureza todo o capítulo intitulado Da cognoscibilidade da coisa em si, onde ele diz:

Já em 1836 publiquei com o título “Sobre a vontade na natureza” os suplementos mais essenciais deste livro, que contém o avanço mais característico e importante da minha filosofia: a passagem [Übergang] da aparência [Erscheinung] para a coisa em si, que Kant deu por impossível (…). E isto é feito de maneira mais exaustiva e rigorosa no capítulo “Astronomia física”; de modo que não espero encontrar uma expressão mais correta e precisa do núcleo da minha filosofia, daquela estabelecida ali. Aquele que deseja conhecer a fundo e examinar com seriedade a minha filosofia deverá, antes de mais nada, remeter-se ao mencionado capítulo.

Desse modo, o cerne de Sobre a vontade na natureza é o problema da passagem (Übergang) pelo profundo abismo existente entre a aparência e a coisa em si, cuja identidade absoluta fora barrada depois de Kant ter revelado com profundidade a completa diversidade entre ambos. Porém, aquilo que conhecemos do mundo, portanto como um produto fisiológico de nosso cérebro (imbuído das formas espaço, tempo e causalidade) e que constitui o conteúdo da aparência – a representação – não pode sequer ser pensado sem que se suponha uma existência em si mesma, e não simplesmente como objeto para um sujeito, sob pena de sucumbirmos ao “egoísmo teórico” de um idealismo absoluto, em que toda realidade do mundo é diluída em um mero “fantasma subjetivo”. Assim, apenas considerando que a diferença nos seja dada na representação é que se torna possível pensar em uma identidade entre ideal e real, vontade e representação, tal qual aquela que se lê em Astronomia física. Uma identidade que, todavia, jamais pode se dar entre o representar enquanto tal e o seu em si, pois o mundo como vontade e o mundo como representação são conhecidos de formas radicalmente distintas.

O conhecimento da identidade entre vontade e suas efetivações nos é dado na consciência de si (Selbstbewusstsein), de forma quase totalmente imediata, mediada apenas pela relação própria de conhecimento (sujeito e objeto) e pela forma do tempo. Ora, se a consciência de si exige que esta se volte para o seu interior, por uma via subterrânea àquela do conhecimento das outras coisas, então é no nosso próprio corpo que encontramos a chave para a compreensão da identidade da vontade, como seu lugar privilegiado. O “milagre por excelência” consiste no reconhecimento da identidade entre sujeito do conhecer e sujeito do querer no corpo; só assim podemos induzir a partir do reconhecimento dessa identidade que, se pudéssemos também conhecer tudo o que nos aparece de fora tão imediata e intimamente, reconheceríamos a identidade entre a nossa vontade e a vontade no restante da natureza; nisso consiste o procedimento analógico, no §18 do Mundo. O corpo é a objetidade da vontade, o seu objeto mais íntimo, disso se explica também por que, na exposição de Sobre a vontade na natureza, Schopenhauer parte do ser humano, em movimento ascendente em direção às leis mais gerais da natureza inorgânica; ou seja, aplica a sua versão do método indutivo de Francis Bacon para o qual “conhecendo as coisas particulares da maneira mais perfeita possível, conheceríamos, por assim dizer, o que é a coisa em geral”.

Aquilo que Ruy de Carvalho Júnior chama de “a tese da inteligibilidade inversa”, apresentada no capítulo Astronomia física, isto é, da relação inversa entre a “explicação” do mundo como representação e da sua “compreensão” como vontade, evidencia um fato importante no contexto de todo este escrito: haverá sempre, por detrás das aparências, algo de inexplicável. E mesmo onde a relação causal for mais evidente, como no choque entre dois corpos, ainda assim permanecerá o mistério da “possibilidade da passagem do movimento”, que é incorpóreo. A incompreensibilidade do sentido mais oculto da natureza, como vontade, não se restringe, portanto, apenas aos fenômenos sobrenaturais; pelo contrário, qualquer tentativa de explicação metafísica configura-se, antes, como uma explicação do sobrenatural, metafísico e sobrenatural são, portanto, sinônimos neste contexto. A atração magnética da gravidade, o choque mecânico e a eletricidade não são mais do que a magia entendida em seu sentido mais básico.

Vale ressaltar, por fim, alguns aspectos relevantes desta tradução para as reflexões futuras, como por exemplo na tradução de “Wille zum Leben” por “vontade para a vida”, no lugar de “vontade de vida” ou “vontade de viver”; bem como na adoção lúcida da distinção entre “aparição”/”aparência” (Erscheinung) e “fenômeno” (Phänomen), este último Schopenhauer reserva o uso em quatro momentos específicos: para “fenômeno da vida” (Phänomen des Lebens), no capítulo Astronomia física (p. 145); e no capítulo Magnetismo animal e magia, referindo-se primeiro aos “fenômenos” do magnetismo animal (p. 157), lê-se em seguida “o magnetismo animal e seus fenômenos são idênticos a uma parte da magia de outrora” (p. 163), e por último para se referir à concordância, de todos os escritores citados, na magia como antecipação da sua metafísica da vontade (p. 192).

Luan Corrêa da Silva – Doutorando em Filosofia pela UFSC. Bolsista CAPES. E-mail: [email protected]

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