Sobre a vontade na natureza

SCHOPENHAUER, Arthur. Sobre a vontade na natureza. Tradução, prefácio e notas de Gabriel Valladão Silva. Porto Alegre: L&PM, 2013. Resenha de: SILVA, Luan Corrêa da. Voluntas – Revista Internacional de Filosofia, Santa Maria, v.4, n.2, p.103-111, 2013.

Gabriel Valladão Silva acaba de publicar, pela editora L&PM, a primeira tradução brasileira, e direta do alemão, do escrito Sobre a vontade na natureza, com o subtítulo Uma discussão das confirmações que a filosofia do autor obteve das ciências empíricas desde seu aparecimento, publicado pela primeira vez em 1836 e reeditado em 1854. A tradução também acompanha uma apresentação e notas do tradutor.

Passados dezessete anos desde a primeira edição de O mundo como vontade e como representação (1818), Arthur Schopenhauer quebra o silêncio e divulga neste texto aquilo que ele pensa ser, de certo modo, a “prova real” de sua doutrina, isto é, a confirmação da filosofia do Mundo oferecida pelas ciências empíricas que vinham se desenvolvendo em seu tempo. A estratégia de Schopenhauer é a de considerar os relatos de cientistas das mais diversas áreas como confirmações empíricas da sua doutrina, tendo como fio condutor “os degraus da natureza de cima para baixo”, ou seja, da complexidade das ações mais arbitrárias dos entes animais até a manifestação mais fundamental da natureza que é a gravidade. Desse modo, mais do que prestar contas da credibilidade de sua posição, o filósofo encontra uma excelente oportunidade para desenvolver a temática na qual todas as ciências empíricas encontram o seu limite, a saber, a da identidade metafísica da vontade em meio à pluralidade das suas aparições.

Com muito entusiasmo, Schopenhauer oferece conselhos aos “jovens sedentos de verdade”, dizendo-lhes para não perder tempo com a filosofia de cáte [DR] a, universitária, e, em vez disso, estudarem as obras de Kant e também as suas (Prefácio, 41). Teria sido Kant o responsável por introduzir a seriedade na filosofia, que Schopenhauer faz questão de manter em pé, uma seriedade que é expressa sobretudo na verdade fundamental e paradoxal da oposição entre mera aparição e coisa em si que, no contexto do Mundo, traduzem-se em termos de representação e vontade. Esse substrato de toda aparição e de toda natureza, a coisa em si, embora barrado pela doutrina kantiana do idealismo transcendental como absolutamente incognoscível, se corporificado em termos de vontade torna-se aqui aquilo que nos é imediatamente conhecido e confiado; que, diferentemente do que supunham os filósofos até então, não é inseparável e nem tampouco resultado da cognição, mas fundamentalmente primária a esta, podendo se manifestar sem ela, como é o caso, aliás, em grande parte dos reinos da natureza. Assim, portanto, toda a diversidade de constituição e organização da natureza, o seu maquinário, são em si e fora da aparição (da representação) absolutamente idênticas àquilo que reconhecemos em nós mesmos como vontade.

É por isso que a física, em seu sentido mais antigo grego de “physis”, deve chegar, em todas as suas ramificações, a um ponto final onde as suas explicações já não avançam mais, e este ponto é a sua fronteira com a metafísica. Diante do caráter inacessível e obscuro da metafísica, os cientistas viam-se pressupondo muitas vezes em suas explicações, intencionadamente ou não, noções tais como “força vital”, “força da natureza”, “impulso de constituição”, etc., que em última instância não querem dizer mais do que um “x”, “y” ou “z” desconhecido. Nos casos em que os cientistas foram adiante e espiaram por detrás das cortinas dessa fronteira, arriscando um passo além de simplesmente percebê-la como tal, eles experimentaram verdadeiramente um pressentimento comum ao dos filósofos da natureza, “semelhante àquele de mineradores que, escavando duas galerias a partir de dois pontos muito distantes entre si, uma em direção à outra, após ambos terem trabalhado muito tempo na escuridão subterrânea, confiando apenas na bússola e no nível, experimentam finalmente a felicidade de há muito desejada de ouvir as marteladas um do outro” (Introdução, 48).

Sobre a vontade na natureza é dividido em oito capítulos, além do Prefácio adicionado à segunda edição (1854), Introdução e a Conclusão. São eles: Fisiologia e patologia; Anatomia comparada; Fisiologia vegetal; Astronomia física; Linguística; Magnetismo animal e magia; Sinologia e Indicação à ética. Poderíamos sugerir uma divisão metodológica do escrito em duas partes: na primeira, até Astronomia física, Schopenhauer segue explicitamente o fio condutor da gradação “decrescente”, em relação às espécies da natureza, e “ascendente”, em direção às leis mais gerais, tendo como clímax as confirmações no reino inorgânico; e na segunda parte encontramos confirmações complementares, e não menos importantes, daquelas oferecidas na primeira parte, assim, o magnetismo animal aparece apropriadamente após já se ter considerado o magnetismo mineral, por exemplo.

No primeiro capítulo, Fisiologia e patologia, Schopenhauer encontra comprovações na Fisiologia e na Medicina de que na tentativa de explicar o funcionamento do organismo, seja no estado de saúde ou de doença, os cientistas eram obrigados a admitir um princípio condutor da vida, como fonte primordial das funções vitais. Jean Pierre Flourens teria demonstrado que o cérebro é a morada do arbítrio (atos da vontade motivados), mas não da vontade, e Albrecht von Haller teria avançado em comprovar que não somente as ações externas acompanhadas de consciência, mas também os processos vitais totalmente inconscientes ocorrem sob a direção do sistema nervoso: as primeiras direcionadas pelos nervos do cérebro guiando ações externas (sistema nervoso central) e os últimos, porém, sem essa mediação, guiando ações internas. Tem-se, portanto, o cérebro como morada dos motivos, e um “segundo” cérebro, o cérebro abdominal do sistema nervoso simpático, como responsável pelos estímulos internos; “o primeiro pode ser comparado ao ministério do exterior, o último, ao do interior: a vontade, porém, permanece autárquica e onipresente” (Fisiologia e patologia, 71). A verdadeira fisiologia explicaria, assim, o que há de espiritual no ser humano como produto do que nele é físico, e a verdadeira metafísica ensinaria que justamente este “eu físico” é apenas aparição de algo espiritual, a vontade.

Em Anatomia comparada Schopenhauer encontra aliados entre os zootomistas, fisiólogos e biólogos para enfrentar o argumento físico-teológico da constituição anatômica dos animais, partindo da tese de que “o caráter do querer como um todo deve estar na mesma relação para com a forma e a constituição de seu corpo que o ato singular da vontade está para a ação corporal singular que o executa” (Anatomia comparada, 83). A adequação perfeita do animal à sua forma de vida própria, como também a perfeição de sua constituição e organização, entendida como uma absoluta conformidade a fins, indicam de modo bastante evidente que aqui não agiriam forças da natureza casuais e desorientadas, mas uma vontade. Ocorre que não se pensava em uma vontade que não fosse guiada pelo conhecimento, de tal modo que presumidamente a ação da vontade tinha de ser uma ação exterior e, assim, a vontade cujo produto é o animal teria de ser externa a ele; de acordo com essa visão, o animal teria de existir na representação antes mesmo de existir em realidade, ou em si. O touro chifra porque quer chifrar e o pássaro voa porque quer voar a partir da Ideia que constitui a espécie, e cada órgão deve ser tomado como expressão de uma manifestação universal, concretizado no desejo fixo característico de cada espécie enquanto vontade para a vida (Wille zum Leben).

Descendo mais um degrau na escala dos seres, o reino vegetal recebe seu desenvolvimento em Fisiologia vegetal, cujo objetivo principal é o de mostrar como também os vegetais são movidos pela vontade, onipresente em todos os níveis, todavia visível aqui de forma muito mais lenta. As comprovações e relatos apresentados indicam que o movimento das plantas é espontâneo, isto é, dependente de um princípio interno que “acolhe imediatamente a influência de agentes externos” (Fisiologia vegetal, 114), como relata Georges Cuvier, e apenas por hesitação é que não se atribuíra sensibilidade às plantas, preferindo-se termos menos fortes tais como “nervimobilidade”. Entendida como sinônimo de manifestação da vontade, a espontaneidade evidencia também algum grau de conhecimento – e até de escolha – manifestada nas plantas como excitação; exemplos disso encontramos em espécies de trepadeiras que, obstinadas em extrair o seu alimento de outras plantas vivas, descrevem ao longo de seu crescimento um movimento circular similar àquele das minhocas, permitindo sua aproximação do alvo. A dificuldade de se reconhecer, portanto, um sentido interno para os vegetais, um “instinto vegetal”, também resulta da influência da antiga opinião de que a consciência é condição para a vontade. De fato, as plantas possuem somente algo análogo à cognição, o estímulo, mas a vontade elas possuem plenamente de forma imediata, pois esta enquanto coisa em si está em tudo o que aparece.

A coisa em si também é vontade na natureza inorgânica, e suas forças são idênticas àquilo que em nós aparece na forma do querer. Em Astronomia física, capítulo central de Sobre a vontade na natureza, a vontade é considerada a partir de seu menor grau de expressão, que conhecemos pelas leis que regem a matéria. Que a todo movimento possamos atribuir uma causa e um efeito, isto é, que haja na natureza uma identidade causal, isso pode nos ser constatado exteriormente, pelo intelecto; é apenas a sua ocasião. Mas que a condição do movimento ou ação seja interna, nisso reside todo o mistério e obscuridade, cuja compreensão só pode ser alcançada na direção contrária àquela do intelecto, ou seja: “quanto mais próximo, portanto, um lado do mundo estiver, tanto mais perderemos o outro de vista” (Astronomia física, 152). Assim, também onde a relação de causa e efeito parece nitidamente compreensível, no patamar mais inferior da natureza inorgânica, uma identidade interior permanece misteriosa; algo que é ainda mais latente quando nos elevamos até o fenômeno (Phänomen) da vida no reino orgânico, expresso na desproporção magnífica existente entre a germinação rudimentar de uma semente e a complexidade e diferenciação das inúmeras espécies vegetais, gerando a impressão de estarmos diante de “um verdadeiro milagre” (Astronomia física, 146). A resolução do enigma da vida e da existência reside, portanto, na passagem (Übergang) de uma explicação a partir de causas para a compreensão da própria vontade que, quando estabelecida pela reflexão, revela-nos o segredo para o qual a filosofia busca solução há tanto tempo, trata-se da identidade metafísica da vontade.

No breve capítulo Linguística Schopenhauer vai além do meramente linguístico, visa mostrar como que algumas expressões da linguagem ordinária e também científica vão além das aparentes metáforas e de outras figuras de linguagem, e contêm em si uma sabedoria concreta ligada à essência das coisas, como expressão mais imediata de nossos pensamentos (Linguística, 156). Já no extenso Magnetismo animal e magia, Schopenhauer encontra nas sabedorias ocultas comprovações ainda mais profundas de sua filosofia, sobretudo no magnetismo animal e nas curas simpáticas, que já vinham garantindo certo espaço nas discussões mais científicas. Se podemos definir a magia como “actio in distans” (ação à distância), ou seja, ação que não ocorre por via causal determinada mas sim por via subterrânea metafísica, então devemos supor que haja um nexo metafísico em oposição ao nexo físico dos corpos. O “sobrenatural” escapa de nossa compreensão causal, suspende o isolamento na ordem do indivíduo e amplia a ação da vontade que agora extrapola o seu limite corpóreo. Após inúmeras referências às maiores contribuições daqueles que se ocuparam do assunto, Schopenhauer conclui que o verdadeiro agente do magnetismo animal, e de toda ação mágica, é a vontade. Assim, o magnetismo animal e a magia são efetivamente como uma metafísica prática – nos termos que Francis Bacon já utilizara para designar a magia, como metafísica empírica ou experimental – são a antecipação daquilo que é desenvolvido na sua metafísica da vontade, cuja decomposição do mundo em vontade e representação serve de melhor correlato teórico.

A Sinologia, que há muito pouco vinha se desenvolvendo na Europa, já apresentava resultados e desafios que também corroboravam a filosofia de Schopenhauer. O dado mais relevante diz respeito à difusão do Budismo no oriente – considerado por Schopenhauer como a mais nobre das religiões (Sinologia, 198) – o que no mundo chinês é testemunhado pela profunda admiração a Dalai-Lama e a Teshu-Lama. A apropriação ocidental da palavra chinesa “tien” tem como correspondente mais imediato “céu”, mas em sentido figurado revela-se também em seu sentido metafísico, como o princípio supremo e todas as coisas, dentre as suas inúmeras designações, “o espírito celeste é dedutível daquilo que é a vontade da espécie humana” (Linguística, 205). E por fim, em Indicação à Ética, Schopenhauer antecipa algumas questões presentes em dois escritos publicados sob a rubrica Os dois problemas fundamentais da Ética (1841), são eles: Sobre a liberdade da vontade e Sobre o fundamento da moral. Dentre essas questões está a asseidade da vontade, isto é, a sua autodeterminação no mundo, que deve ser condição primeira de uma Ética séria, bem ancorada na metafísica. O que Schopenhauer chama de vontade é o que conhecemos em nosso próprio interior, um verdadeiro ens realissimum (ente realíssimo); a explicação do mundo não parte, assim, de um desconhecido, mas daquilo que nos é mais íntimo, apenas de uma maneira totalmente distinta de todo o resto que aparece (Indicação à Ética, 213).

Nos Suplementos ao Mundo, publicados em 1844, Schopenhauer remete ao Sobre a vontade na natureza todo o capítulo intitulado Da cognoscibilidade da coisa em si, onde ele diz:

Já em 1836 publiquei com o título “Sobre a vontade na natureza” os suplementos mais essenciais deste livro, que contém o avanço mais característico e importante da minha filosofia: a passagem [Übergang] da aparência [Erscheinung] para a coisa em si, que Kant deu por impossível (…). E isto é feito de maneira mais exaustiva e rigorosa no capítulo “Astronomia física”; de modo que não espero encontrar uma expressão mais correta e precisa do núcleo da minha filosofia, daquela estabelecida ali. Aquele que deseja conhecer a fundo e examinar com seriedade a minha filosofia deverá, antes de mais nada, remeter-se ao mencionado capítulo.

Desse modo, o cerne de Sobre a vontade na natureza é o problema da passagem (Übergang) pelo profundo abismo existente entre a aparência e a coisa em si, cuja identidade absoluta fora barrada depois de Kant ter revelado com profundidade a completa diversidade entre ambos. Porém, aquilo que conhecemos do mundo, portanto como um produto fisiológico de nosso cérebro (imbuído das formas espaço, tempo e causalidade) e que constitui o conteúdo da aparência – a representação – não pode sequer ser pensado sem que se suponha uma existência em si mesma, e não simplesmente como objeto para um sujeito, sob pena de sucumbirmos ao “egoísmo teórico” de um idealismo absoluto, em que toda realidade do mundo é diluída em um mero “fantasma subjetivo”. Assim, apenas considerando que a diferença nos seja dada na representação é que se torna possível pensar em uma identidade entre ideal e real, vontade e representação, tal qual aquela que se lê em Astronomia física. Uma identidade que, todavia, jamais pode se dar entre o representar enquanto tal e o seu em si, pois o mundo como vontade e o mundo como representação são conhecidos de formas radicalmente distintas.

O conhecimento da identidade entre vontade e suas efetivações nos é dado na consciência de si (Selbstbewusstsein), de forma quase totalmente imediata, mediada apenas pela relação própria de conhecimento (sujeito e objeto) e pela forma do tempo. Ora, se a consciência de si exige que esta se volte para o seu interior, por uma via subterrânea àquela do conhecimento das outras coisas, então é no nosso próprio corpo que encontramos a chave para a compreensão da identidade da vontade, como seu lugar privilegiado. O “milagre por excelência” consiste no reconhecimento da identidade entre sujeito do conhecer e sujeito do querer no corpo; só assim podemos induzir a partir do reconhecimento dessa identidade que, se pudéssemos também conhecer tudo o que nos aparece de fora tão imediata e intimamente, reconheceríamos a identidade entre a nossa vontade e a vontade no restante da natureza; nisso consiste o procedimento analógico, no §18 do Mundo. O corpo é a objetidade da vontade, o seu objeto mais íntimo, disso se explica também por que, na exposição de Sobre a vontade na natureza, Schopenhauer parte do ser humano, em movimento ascendente em direção às leis mais gerais da natureza inorgânica; ou seja, aplica a sua versão do método indutivo de Francis Bacon para o qual “conhecendo as coisas particulares da maneira mais perfeita possível, conheceríamos, por assim dizer, o que é a coisa em geral”.

Aquilo que Ruy de Carvalho Júnior chama de “a tese da inteligibilidade inversa”, apresentada no capítulo Astronomia física, isto é, da relação inversa entre a “explicação” do mundo como representação e da sua “compreensão” como vontade, evidencia um fato importante no contexto de todo este escrito: haverá sempre, por detrás das aparências, algo de inexplicável. E mesmo onde a relação causal for mais evidente, como no choque entre dois corpos, ainda assim permanecerá o mistério da “possibilidade da passagem do movimento”, que é incorpóreo. A incompreensibilidade do sentido mais oculto da natureza, como vontade, não se restringe, portanto, apenas aos fenômenos sobrenaturais; pelo contrário, qualquer tentativa de explicação metafísica configura-se, antes, como uma explicação do sobrenatural, metafísico e sobrenatural são, portanto, sinônimos neste contexto. A atração magnética da gravidade, o choque mecânico e a eletricidade não são mais do que a magia entendida em seu sentido mais básico.

Vale ressaltar, por fim, alguns aspectos relevantes desta tradução para as reflexões futuras, como por exemplo na tradução de “Wille zum Leben” por “vontade para a vida”, no lugar de “vontade de vida” ou “vontade de viver”; bem como na adoção lúcida da distinção entre “aparição”/”aparência” (Erscheinung) e “fenômeno” (Phänomen), este último Schopenhauer reserva o uso em quatro momentos específicos: para “fenômeno da vida” (Phänomen des Lebens), no capítulo Astronomia física (p. 145); e no capítulo Magnetismo animal e magia, referindo-se primeiro aos “fenômenos” do magnetismo animal (p. 157), lê-se em seguida “o magnetismo animal e seus fenômenos são idênticos a uma parte da magia de outrora” (p. 163), e por último para se referir à concordância, de todos os escritores citados, na magia como antecipação da sua metafísica da vontade (p. 192).

Luan Corrêa da Silva – Doutorando em Filosofia pela UFSC. Bolsista CAPES. E-mail: [email protected]

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Nietzsche, as artes do intelecto – BRUM (ARF)

BRUM, José Thomaz. Nietzsche, as artes do intelecto. Porto Alegre: L&PM, 1986. Resenha de: Resenha de: PIVA, Paulo Jonas de Lima. Argumentos – Revista de Filosofia, Fortaleza, n. 9, jan./jun. 2013.

Uma resenha sobre um livro pioneiro há tempos esgotado, feita para que ele seja mais do que lembrado, mas reeditado, cabe numa seção de resenhas de uma revista acadêmica de nível respeitável, a princípio destinada apenas para lançamentos? Inovemos se essa quebra de protocolo pode render bons frutos bibliográficos para as pesquisas em filosofia no Brasil.

Os estudiosos brasileiros do Marquês de Sade, bem como os do sensualismo e do materialismo modernos, foram contemplados recentemente pela Editora Champagnat com o relançamento, em segunda edição, de Desejo e prazer na Idade Moderna, livro de Luiz Roberto Monzani desaparecido das livrarias há vários anos. Outro caso relativamente recente de um relançamento capital ocorreu com a minuciosa e densa biografia de Jean-Paul Sartre escrita por Annie Cohen Solal, Sartre, uma biografia, publicada no Brasil, nos anos oitenta, pela L&PM, e que também estava fazendo falta na biblioteca dos especialistas e aficionados do pensamento existencialista. O livro voltou à tona em 2008, com um novo prefácio da biógrafa a propósito do centenário de nascimento do autor de A Náusea em 2005. O mesmo aconteceu com o esgotado e disputado Silogismos da amargura, do romeno Emil Cioran, reposto em circulação este ano pela Rocco, também em ocasião do centenário do nascimento do seu autor. Nessa mesma direção, a editora Autêntica já anunciou o relançamento do clássico O Erotismo, de George Bataille, também muito procurado, mas sumido até dos sebos.

Contudo, há uma longa lista de outras obras fundamentais de filosofia em português que precisam ser relançadas, algumas com urgência.

A dificuldade para encontrá-las e, quando encontradas, o preço exorbitante no mercado de sebo para adquiri-las, são motivos bastante persuasivos para que as editoras atendam a essa necessidade dos seus leitores. A Filosofia do Iluminismo, de Ernst Cassirer, livro lançado no Brasil pela Editora Unicamp e que em 1997 chegou à sua terceira edição, é uma delas. Até mesmo no mercado virtual de sebo é difícil comprá-lo. Quem conhece o livro sabe que muito se perde ao estudar o iluminismo sem ele. E por falar em publicações da Editora da Unicamp, o que dizer do clássico Carta a D’Alembert sobre os espetáculos, de Jean- -Jacques Rousseau, também há muito tempo uma raridade entre nós? Nesta direção, Nietzsche, as artes do intelecto, de José Thomaz Brum, é outro título desaparecido que merece ser ressuscitado. E a ousada L&PM, mais uma vez, que deu vida ao pequeno livro em 1986, na sua extinta “Coleção Universidade Livre”, deveria fazê-lo, ainda mais depois de ter posto no mercado seis traduções diretamente do alemão do autor de O Anticristo. Sua variada e riquíssima coleção de bolso seria a via ideal para tal empreendimento.

E por que esse ensaio, uma dissertação de mestrado defendida na PUC do Rio de Janeiro em 1984? Em Nietzsche, as artes do intelecto, Thomaz Brum se faz pioneiro.

Trata-se de um dos primeiros textos de um estudioso brasileiro a expor a concepção nietzschiana de conhecimento, num sentido lato, a epistemologia de Nietzsche. E Thomaz Brum o faz por meio de um exame cuidadoso de Introdução teorética sobre a verdade e a mentira no sentido extra-moral, texto inacabado de 1873 e publicado postumamente, e de alguns fragmentos póstumos de Nietzsche dedicados ao assunto.

Construção antropomórfica da natureza; redução da realidade a uma interpretação humana demasiado humana; adequação e conversão do universo à perspectiva de uma espécie biológica específica, a humanidade; ficção, ilusão e erro de um animal determinado voltados para a sua preservação vital; em última instância, obra de arte que possibilita a sobrevivência dos seres humanos. Em linhas gerais, é assim que Thomaz Brum entende e define o conhecimento em Nietzsche. E a concepção de homem da qual parte tal interpretação é a de um ser que não é criatura de uma divindade, que não é imagem e semelhança de um ser supremo, uma vez que este não existe. Porém, mesmo assim, por pura vaidade e engano, homem se sente o centro do universo, embora sua existência seja absolutamente insignificante, contingente e gratuita do ponto de vista onto e cosmológico. Esse ser vaidoso − as moscas, como bem observa Nietzsche, também se sentem o centro esvoaçante do universo, assim como as formigas se sentem a finalidade da floresta −, sem criador nem lugar privilegiado na natureza, à deriva num processo sem teleologia, não passaria de um animal em meio aos demais lutando pela sobrevivência. Não dispondo de garras ou chifres para se defender, ele usa o intelecto para suprir sua vulnerabilidade e manter-se vivo no interior de um planeta perdido em meio a bilhões de tantos outros. Por meio desse intelecto o homem lança-se em abstrações, constructos, elaborando teses e doutrinas, elucubrando sistemas e explicações, e o faz com a sua especificidade animal, portanto, como uma atividade biológica, tal como a abelha produz o mel e a mariposa tece o seu casulo.

Donde se segue que não há essências para serem descobertas, nenhuma coisa-em-si para ser revelada, tampouco uma objetividade a ser alcançada na investigação das causas e da natureza das experiências. A verdade mostra-se então artifício, ferramenta eficaz, expediente útil, uma convenção lingüística, mais precisamente, figura de linguagem. No dizer do próprio Nietzsche, a verdade consiste num “batalhão de metáforas, metonímias, antropomorfismos”, isto é, numa “soma de relações humanas que foram realçadas poética e retoricamente, transpostas e adornadas”. O homem do conhecimento seria então um artista, de certo modo um poeta, embora não se veja e relute a se ver como tal. A ciência, por conseguinte, faz-se arte, talvez a mais necessária delas, pois, além de garantir a preservação da espécie humana, atribui um sentido humano a um mundo essencialmente inumano.

A linguagem, obviamente, também é humanizada e naturalizada por Nietzsche. Ao contrário da convicção da tradição, ela não é portadora de nenhum ser. Thomaz Brum mostra que Nietzsche a entende também como um artifício humano, porém, enfatiza, um artifício arbitrário e parcial, de procedência orgânica, física, baseado em estímulos e sons, repleto de imprecisões, falhas e limitações na apreensão da totalidade.

Sua origem é a falsificação. O conceito? Um exercício de simplificação, uma abstração mutiladora das particularidades das coisas e dos fenômenos, em última instância, uma deturpação do que é aludido e teorizado.

Contudo, explica Thomaz Brum, é por meio da ficção da verdade e da crença no poder da linguagem de nos viabilizar o acesso ao real tal como ele é que a vida gregária se constitui e, sobretudo, estabiliza-se; é por meio dessa arrogância que o homem estabelece regras, que ele atribui um valor e um sentido à sua vida e à do rebanho que compõe; enfim, que ele tenta administrar seus conflitos com o outro, dominar a natureza e se impor diante das adversidades. Para isso, ele institui “verdades” e “mentiras”, por conseguinte, com base nesses critérios, seleciona os indivíduos aptos ou não para o convívio. Quem mente contra o rebanho não tem lugar dentro dele.

A ciência, por outro lado, efetiva-se como um instrumento de potência, como uma vontade humana de subjugar. Ao contrário da concepção de ciência da tradição, contaminada até os ossos pela metafísica, a concepção nietzschiana de ciência torna a verdade demasiadamente humana e o conhecedor um sujeito ativo e criador. Em suma, mesmo o conhecimento sendo uma construção antropomórfica do mundo – uma humanização da natureza e dos fatos – e a verdade uma mentira, uma crença numa ilusão, um erro útil, uma invenção interessada, ambos são crucialmente necessários à nossa espécie.

Thomaz Brum encerra seu percurso pelo pensamento nietzschiano sobre o conhecimento e a verdade sugerindo um pragmatismo avant la lettre em Nietzsche. Já que a realidade da natureza é inacessível ao nosso intelecto, que o universo é um caos a nós estranho, já que o animal homem está confinado inelutavelmente ao seu ponto de vista e ele é a medida das coisas, valorizemos a eficácia, a utilidade, o resultado favorável à sobrevivência. Não mais transcendências, não mais indagações sobre o que são as coisas em si mesmas. Que o animal homem se faça sujeito criador de sentido e legislador; que a ciência se desvencilhe de uma vez por todas da metafísica e se norteie doravante pela vontade e por valores afirmativos da efetividade, como o da conservar e da intensificação da vida. A razão agora deve ser razão prática, conclui Thomas Brum, e o animal homem deve se impor diante da natureza como um demiurgo, ou seja, num universo sem deuses nem teleologia, ele deve perceber que está entregue a si mesmo e às suas invenções. É por tudo isso que o pequeno e pioneiro livro de Thomaz Brum precisa voltar ao mercado.

Paulo Jonas de Lima Piva – Doutor em Filosofia pela Universidade de São Paulo. E-mail: [email protected]

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Uma breve história do mundo | H. G. Wells

A obra aqui resenhada foi editada pela primeira vez em 1922, pouco depois da I Guerra Mundial. Mantém-se ainda com fortes atrativos para sua leitura, tendo-se em vista que sua linguagem conserva uma combinação entre o rigor analítico e o descritivo, sem apresentar-se extensa ou profunda em excesso em um ou outro. Parecer dirigir-se ao leitor iniciante, como alunos do curso de graduação em História, assim como interessados na leitura de um texto objetivo, sucinto e altamente informativo e formativo.

O livro possui 67 capítulos, em geral curtos e escritos num estilo que se assemelha ao jornalístico. Seus primeiros 12 capítulos cobrem a formação da Terra e o desenvolvimento da vida, até chegar aos “primeiros homens verdadeiros” e ao “pensamento primitivo” (dois temas que intitulam, respectivamente, os capítulos 11 e 12). Obviamente, as bases em que o autor escreve esses primeiros capítulos acham-se defasadas perante as descobertas e avanços científicos verificados ao longo do Século XX. Apesar disso, mostram uma descrição e análises rigorosas a respeito, com o que havia disponível nas primeiras décadas do Século XX. A seguir, destacam-se alguns pontos do livro, tendo-se em vista tratar-se de um número de capítulos que inviabiliza a descrição de cada um deles no espaço de uma resenha. Leia Mais