Nzinga Mbandi e as guerras de resistência em Angola: século XVII / Mariana F. Bracks

A obra publicada recentemente pela editora Mazza e intitulada “Nzinga Mbandi e as guerras de resistência em Angola, século XVII” é fruto da dissertação de mestrado defendida pela professora Mariana Bracks Fonseca na Faculdade de Letras, Filosofia e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo sob a orientação da professora doutora Marina de Mello e Souza. Com experiência na área de História da África, especialmente História de Angola durante os séculos XVI e XVII, temáticas como o desenvolvimento do tráfico negreiro e a resistência política de personagens africanos, como a rainha Nzinga Mbandi, compõem os principais interesses de pesquisa da autora.

Nas primeiras páginas que compõem a introdução, Mariana Fonseca atenta para o exaltar da rainha Nzinga pelos movimentos políticos como MPLA (Movimento Popular de Libertação de Angola) e UNITA (União Nacional para a Independência Total de Angola). Utilizando conceitos como “nação” associado a concepções modernas, ou ainda “luta de classes”, estes movimentos políticos mitificam a rainha como uma personagem símbolo de resistência ao colonialismo português. O texto de Fonseca grifa que essa produção de memória, ou imagem como quer a autora, habita o imaginário angolano contemporâneo.

Como sugere Fonseca, houve exageros interpretativos que fomentam os nacionalismos nos movimentos políticos em Angola. Observando o posicionamento da autora, compreendemos a utilização da imagem de capa, que consiste em uma fotografia da estátua da rainha Nzinga erguida em Luanda no ano de 2015. O maximizar desse sentido de “resistência” cunhado à obra é o objetivo principal, e talvez por isso a escolha da ilustração. O mobiliário urbano luandense possui símbolos que enaltecem personagens históricos como a rainha Nzinga, com o objetivo de construir um ideal calcado em interpretações míticas da história.

A historiadora Mariana Fonseca está atenta a essas problematizações, no entanto, o esforço em ressaltar Nzinga enquanto uma líder tenaz falou mais alto. Isso resulta ao leitor alguns ganhos, como o adentrar por entre as instabilidades políticas de sobas e europeus, as complexidades das flutuações de fronteiras ou as empreitadas igualmente movediças do aliançar dos jagas, bem como discussões acerca da legitimidade do poder feminino do Ndongo, visto que o enfoque da obra de Fonseca são as resistências de Nzinga no século XVII, principalmente entre os anos de 1620 e 1630, quando segundo a autora houve maior oposição aos portugueses.

A rainha Nzinga, Jinga, Ginga ou Njinga habitou muitos escritos em diferentes contextos. Logo, há dificuldades em padronizar uma grafia. Esse problema é recorrente quando se atenta para historicidades das Áfricas nos seiscentos. As fontes documentais utilizadas no trabalho de Fonseca foram escritas por europeus falantes de diferentes línguas, além de difundidas e traduzidas de modo impossível de quantificar. Os escritos do padre Cavazzi e do soldado António Cadornega, e também de Fernão de Souza, fontes amplamente utilizadas pela autora, são um exemplo. Há ainda documentos administrativos advindos da compilação realizada por António Brásio junto ao Monumenta Missionária Africana, que também apresenta grafias não uniformes para designar a insígnia Nzinga.

Fonseca explica que grafa não só Nzinga, mas ainda outros termos como rios e localidades, bem como nomes e insígnias de diferentes personagens como os angolanos convencionam em um kimbudo. Essa decisão, principalmente se o trabalho se afasta temporalmente de uma África contemporânea será sempre arbitrária, como alerta a autora. Traduzir é já trair, e as opções tomadas pelos africanólogos caminham sempre em direção à coerência entre as interpretações das fontes e dos pesquisadores que já abordaram determinada temática.

Para além das fontes documentais, outros escritores também grafam a insígnia Nzinga de diferentes maneiras e constroem rainhas múltiplas em suas obras. Castilhon, Marquês de Sade, Bocage e mais tarde Hegel são exemplos citados brevemente no trabalho de Fonseca. Historiadores como Beatrix Heintze, John Thornton, Joseph Miller, Adriano Parreira e Roy Glasgow também são problematizados quanto as suas “Nzingas” e são substanciais para os estudos sobre essa personagem. Dentre muitos caracteres trabalhados por esses intelectuais, citamos o debruçar sobre um amplo corpus documental e o cruzamento deste, metodologia também empregada por Fonseca.

Mesmo com obras produzidas em contextos e sentidos distintos, como por exemplo, romances, poemas, crônicas e produções historiográficas, a personagem rainha Nzinga ainda é pouco conhecida no Brasil, como os estudos sobre História da África em geral. O livro de Mariana Fonseca não é uma biografia sobre a rainha. Apresenta muitos elementos que podem ser considerados como compondo experiências nominadas pela autora como “uma longa e conturbada trajetória”, caso pensarmos nos movimentos políticos, militares e ainda religiosos, que apesar de costumeiramente os distinguirmos nos seiscentos e regiões adjacentes ao Ndongo, se entrelaçavam em uma instigante tessitura.

O território do Ndongo, nas descrições de Cavazzi e Cadornega, era um território cuja liderança pertencia ao Ngola, ou reis guerreiros, que sabiam confeccionar objetos de metais, facas, lanças e todo o tipo de armamento. Esses utensílios eram muito utilizados nos cotidianos e nas guerras, os artesãos que os fabricavam tinham a estima do povo e em virtude disso foram sendo proclamados pelos régulos como líderes daqueles territórios. A própria insígnia Ngola deriva do modo como designavam objetos de metais. Ngola poderia ser qualquer objeto de metal e, mais tarde, emprestou denominação como uma corruptela aos territórios que os portugueses e demais europeus mercadejavam, ou a Angola.

As supracitadas descrições compõem o capítulo primeiro da obra de Mariana Fonseca. Intitulado “O reino do Ndongo”, proporciona ao leitor acessar informações sobre, por exemplo, a constituição do poder no Ndongo e adjacências. A autora cita os estudos de Joseph Miller como um passo importante para compreensão das genealogias na África Central, bem como as constituições de poder. O autor foi um dos precursores ao afirmar que os termos tidos por nomes próprios, como Ngola Inene ou Ngola a Kiluange, eram na verdade insígnias que distinguiam as escalas de poder.

Miller trouxe novas interpretações às palavras “filho”, “pai”, “irmão”, “casamento”, revelando o caráter metafórico dessas expressões nas genealogias centro-africanas. Pai e filho poderiam revelar relações políticas entre títulos e não biológicas. Talvez, os avultados escritos deixados pelos europeus traduziam o que os mesmos observavam calcados nas suas experiências. Ou seja, explicavam o mundo a partir daquilo que conheciam.

Isso não quer dizer que as fontes escritas são menos credíveis, ao contrário, elas são fundamentais. Podemos exemplificar expondo características dos Jagas que nunca teriam sido conhecidas caso não fosse a interpretação de documentos. Cavazzi frisa a heterogeneidade dos Jagas, descrevendo rituais que eram comuns, como mitos, ritos, juramentos, crenças, formas de moradia e alimentação. Essas descrições maximizam o caráter guerreiro e antropofágico dos bandos Jagas, como o ritual magi a samba, que consistia em jogar um recém-nascido em um caldeirão com ervas, e em um pilão esmagar até virar uma pasta que seria passada no corpo de guerreiros para garantir forças mágicas e imortalidade.

Joseph Miller sugere que esse ritual servia para romper os laços de linhagem que alguns guerreiros poderiam trazer como resquícios de outras sociedades. Os jovens raptados e não iniciados de outros grupos, como os Mbundos, após passarem por esse ritual se desprendiam das regras e costumes do grupo anterior, devendo obediência ao chefe do Kilombo, que nesse contexto era o modo de organização dos Jagas, ou seja, altamente hierarquizado e com funções bem definidas, ou ainda como define Miller: “máquina de guerra”. Para Vancina, os bebês mortos também serviam para garantir a mobilidade das tropas que viviam em guerras permanentes, logo, o infanticídio garantia o progresso das tropas, para além de uma “inovação” nas táticas de guerrilhas.

O capítulo segundo “Angola portuguesa: conquista e resistência” inicia com a problematização da libertação de Paulo Dias de Novais, que permanecera como cativo durante cinco anos, visto que o Ngola interessava-se apenas pelo comércio com os portugueses, pelas sedas e bebidas, e não pela fé que condenava a poligamia. O Ngola com dificuldades em derrotar um soba vizinho liberta Novais para que ele peça reforços a Portugal, segundo descrições de fontes documentais. Para Fonseca, não faz sentido o soberano do Ndongo, um rei poderoso que já conseguira derrotar inclusive o exército do Congo, ter dificuldades em sublevar um reino menor, necessitando o auxílio dos portugueses.

Ao retornar a Portugal, Paulo Dias de Novais planeja uma entrada com armas no Ndongo, já que a tentativa pacífica de levar a fé tardava em mostrar resultados. Os jesuítas fomentavam essa intervenção, e mesmo após o regresso de Novais ao Ndongo, com o mercadejo próspero e as investigações no solo para obtenção de metais, os jesuítas não se contentavam com o comportamento do Ngola. Eis a chama de articulações políticas e dissidências que cunharam conflitos entre os sobas, fundamentais no jogo político da “conquista”, pois para os religiosos mercadejar não bastava.

Isso não significa que a coroa, os jesuítas e Paulo Dias de Novais não fossem parceiros nas empreitadas da “conquista”. Ao contrário, a insistência em propagar a fé católica instrumentalizava a escravização, justificando-a através da necessidade de salvar as almas. Conforme Fonseca, a palavra “resgate” comumente aparece nas fontes documentais, ou seja, os negros seriam resgatados por viverem em meio a rituais pagãos, evitando que perecessem em práticas antropofágicas. Em contrapartida, os religiosos sustentavam o mito da prata e demais riquezas no solo angolano, convencendo a coroa, na altura em mãos dos Áustrias, ou dos Filipes de Espanha, em investir nas expedições. Ganhavam todos, inclusive os sobas, participantes ativos do comerciar com os europeus.

Em resumo, sobre as tentativas de adentrar no território que correspondia aos domínios do Ngola, o capítulo ainda discorre sobre a “Guerra Preta”, que consistia em lutas entre africanos contra africanos, pois o grosso dos exércitos tidos como portugueses eram compostos por diversos grupos de Jagas e forças auxiliares que combatiam contra os exércitos do Ndongo. Fonseca também delineia o comércio em várias feiras, citando a construção de fortalezas e presídios que impulsionavam o colonizar rumo ao interior. Dentre as localidades detalhadas pela autora estão Muxima, Cambambe, Massangano, Ango e Ambaca.

A autora Mariana Fonseca discute amplamente os conflitos que ambicionavam aquelas terras banhadas pelo Kuanza. Em meio às descrições de acontecimentos bélicos, o que chama a atenção no capítulo “Nzinga Mbandi e as guerras pelo Ndongo” são as sofisticadas disputas diplomáticas quando executadas na mão de Nzinga. Uma das cenas que habitou o imaginário local e foi amplamente comentada em fontes documentais, como nos escritos do padre Cavazzi ou do soldado António de Cadornega, bem como em trabalhos historiográficos que problematizam a existência da rainha, ou em romances que recriam e multiplicam as “Nzingas” é o “episódio da cadeira”, como designa Fonseca.

Nzinga se reunira com o governador João Correia de Souza em Luanda, fora mandada como embaixadora do seu irmão, o Ngola. As embaixadas estavam presentes no cenário político dos XVII na África Central, tanto para o trato com o sobas quanto para os portugueses. Cavazzi narra que na ocasião a rainha portava luxuosas vestes, com muitas joias e gemas preciosas. Ao chegar foi oferecido um tapete para sentar-se, enquanto o governador estava acomodado em um trono. No mesmo instante Nzinga chama uma criada e pede que ela fique em uma posição que lembra um acento, com mão e pés no chão. A rainha sentou-se nas costas da súdita e discorreu sobre diversos assuntos, com vivacidade e inteligência, garantindo que o Ndongo continuasse como um estado independente e isento de tributações exigidas pelos portugueses, na ocasião negociadas e refutadas pela rainha.

Talvez o aceite em ser batizada tenha contribuído para o êxito na performance de Nzinga, garantindo sucesso nas negociações que interessavam ao Ndongo. Os historiadores interpretam esse evento com diferentes posições. Mariana Fonseca argumenta que o cristianismo estava notoriamente envolvido com a política do século XVII e a rainha possivelmente compreendia que para obter a paz e sucesso junto aos objetivos do Ngola, necessitaria aceitar a cruz. Apesar do batismo o Ndongo não se tornou cristão, uma vez que o Ngola se recusou em receber o sacramento, pois achou um absurdo que o enviado para batizar-lhe era o filho de uma de suas escravas, enquanto Nzinga, sua irmã, teria sido ungida com toda a pompa e honras do governador.

O quarto e último capítulo segue dissertando sobre as novas terras e os novos aliados persuadidos por Nzinga. O reino de Matamba e as particularidades de um poderio feminino são tecidos através de considerações advindas de autores com ampla pesquisa sobre o tema. A interpretação de documentação escrita continua fortemente, por exemplo, quando a autora questiona a masculinização de Nzinga para a entronização do poder. Fonseca observa essas descrições as alocando como exageradas, pois o interesse, especialmente dos padres, era frisar o quão demoníaco era o comportamento dos Jagas.

John Thornton concluiu que em Matamba, Nzinga conseguira formar um reino que tolerava sua autoridade, pois estava embasada em apoiadores leais, tornando-se um precedente histórico e contribuindo para a legitimação de poderes femininos na África Central. O caso de sua irmã Dona Bárbara, que assume a liderança logo após a morte de Nzinga é um exemplo. Parece que quanto mais o tempo passava, mais a conquista do Ndongo ficava distante para Nzinga, que agora se refugiara em Matamba, acolhendo em seu kilombo milhares de pessoas de diversas etnias, para além dos Jagas, já multiétnicos.

Não há indícios de que Nzinga praticasse a fé cristã, ao contrário, as fontes sempre condenavam seu comportamento tido como promíscuo tanto pelos rituais exercidos pelos Jagas, quanto pelos inúmeros concubinos que mantinha, dentre outras observações que povoam as descrições especialmente dos capuchinhos. Porém, já no final da vida um episódio marcou sua conversão e foi igualmente relatado por religiosos como Cavazzi, que descreve uma batalha contra um poderoso soba, onde o capitão Nzinga-Amona encontra um crucifixo que fora abandonado no mato. Pela noite o capitão sonhou que a cruz rejeitada o reprimia e exprobrava o desprezo para com o rei Cristão.

Segundo Cavazzi, a partir desta feita, Nzinga teria verdadeiramente se convertido. Para o frei Gaeta a rainha entendeu que o crucifixo fora mandado por Deus através das mãos do general como troféu de sua vitória. Na narrativa, Gaeta menciona o “milagre do crucifixo”, onde Deus mostrava que a amava e a convidava para retornar ao catolicismo. Apesar das detalhadas narrativas as fontes não consideram que os reinos vizinhos, Congo, Angola e Dembo estavam todos cristianizados. Com a idade avançada e estabilizada em Matamba, a paz e o fluxo do mercadejar de escravaria seria algo desejável a um líder nessas condições. Os Jagas que a seguiam abandonaram a vida errante e passaram a se dedicar à agricultura e ao comércio, surgindo no norte de Angola a etnia “Jinga”, uma evidência das configurações políticas e influências identitárias da rainha.

Cavazzi relata com entusiasmo as ações de Nzinga, como a fundação de uma nova igreja em Santa Maria de Matamba, às margens do rio Uamba e a duas léguas da antiga capital. Nzinga pessoalmente carregava as pedras para animar os construtores da Igreja, nas missas sentava-se na primeira fila, assistia ajoelhada os cultos e preferia ser chamada pelo nome de batismo: Dona Anna. Parece que seus últimos anos foram marcados por fervor cristão e extravagância da corte. A rainha vestia-se sempre com capricho, com panos feitos de cascas de árvores, semelhantes ao cetim. Em audiências públicas não dispensava a coroa e o cetro, exigindo que seus súditos, principalmente em batalhas, usassem o crucifixo para que fossem enterrados como cristãos.

As memórias produzidas sobre a vida da rainha Nzinga Mbandi nos avultados escritos que a descrevem possibilitam a reconstrução de alguns acontecimentos que envolvem disputas políticas, de territórios e poder, de comércio e fé. Nzinga foi uma personagem ímpar e se destacou em muitos momentos nos contextos dos seiscentos. Com tamanha eloquência, por vezes aparece mitificada em literaturas e até mesmo em trabalhos com cunho historiográfico. O trabalho de Mariana Fonseca rompe com análises simplistas ao apresentar uma dedicada análise das fontes documentais, dialogando com a historiografia sobre o assunto e se posicionando no debate com uma rainha que participou do tráfico de escravos, mas garantiu a “liberdade” para quem a seguia.

O trabalho observa os mandos de uma cristianização europeia, pautando a rainha como resistente a essa “dominação”. Fonseca delineia os portugueses no decorrer de sua obra como inimigos da rainha, por imposição da fé, mas não só, pois as disputas por territórios e mercados igualmente são mencionados pela autora como propulsores dessa resistência. Contudo, essa categoria pode ser repensada dentro do próprio texto da autora, pois descreve minunciosamente as complexas competições, flutuações fronteiriças e interesses dos próprios africanos em mercadejar e obter vantagens com negociações de qualquer natureza.

A obra de Mariana Fonseca seguramente marcará uma etapa importante na historiografia brasileira. Quer isso dizer que jovens pesquisadores se debruçam em entender realidades tão complexas, com personagens tão intrigantes quando a rainha Nzinga Mbandi. Esses trabalhos auxiliam sobremaneira a explicar-nos enquanto brasileiros e descendentes, como quer Alberto da Costa e Silva, de senhores ou de escravos. Pensar a África é também pensar o Brasil, os escravos saídos das margens de lá e embarcados em navios foram capturados e negociados por líderes como a rainha Nzinga, trazendo-a na memória e a ressignificando por essas paragens.

Isso será tema para uma próxima resenha, pois acompanhando o trabalho de Mariana Bracks Fonseca torcemos para que nos brinde com mais uma Nzinga.

Priscila Maria Weber – Doutoranda em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Bolsista CAPES. E-mail: [email protected].


FONSECA, Mariana Bracks. Nzinga Mbandi e as guerras de resistência em Angola: século XVII. Belo Horizonte: Mazza, 2016. Resenha de: WEBER, Priscila Maria. A Rainha Nzinga Mbandi como personagem-chave nas disputas de poder no Ndongo; África Central, século XVII. Outros Tempos, São Luís, v.13, n.22, p.224-2231, 2016. Acessar publicação original. [IF].

Becos da memória – EVARISTO (REF)

EVARISTO, Conceição. Becos da memória. Belo Horizonte: Mazza, 2006. Resenha de: OLIVEIRA, Luiz Henrique Silva de. “Escrevivência” em Becos da memória, de Conceição Evaristo. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v.17 n.2 May/Aug. 2009.

“Homens, mulheres, crianças que se amontoaram dentro de mim, como amontoados eram os barracos de minha favela” (p. 21).

Evaristo, 2006, p. 21.

Maria da Conceição Evaristo de Brito nasceu em Belo Horizonte, em 1946. De origem humilde, migrou para o Rio de Janeiro na década de 1970. Graduou-se em Letras pela UFRJ, trabalhou como professora da rede pública de ensino da capital fluminense e da rede privada de ensino superior. É mestre em Literatura Brasileira pela PUC-Rio. No momento, está concluindo doutorado em Literatura Comparada na Universidade Federal Fluminense. Em sua pesquisa, estuda as relações entre a literatura afro-brasileira e as literaturas africanas de língua portuguesa. Participante ativa dos movimentos de valorização da cultura negra em nosso país, estreou na arte da palavra em 1990, quando passou a publicar seus contos e poemas na série Cadernos Negros, suporte de que se utiliza até hoje.

Em 2003, veio a público o romance Ponciá Vicêncio, pela editora Mazza, de Belo Horizonte. Seu segundo livro, outro romance, Becos da memória, foi escrito em fins dos anos 1970 e início dos 1980. Ficou engavetado por cerca de 20 anos até sua publicação, em 2006. Desde então, os textos de Evaristo vêm angariando cada vez mais leitores, sobretudo após a indicação de seu primeiro livro como leitura obrigatória do Vestibular da UFMG, em 2007. A escritora participou ainda de publicações coletivas na Alemanha, na Inglaterra e nos Estados Unidos. Sua obra de estreia foi traduzida para o inglês e está em processo de tradução para o espanhol.

A obra em prosa de Conceição Evaristo é habitada, sobretudo, por excluídos sociais, dentre eles favelados, meninos e meninas de rua, mendigos, desempregados, beberrões, prostitutas, “vadios” etc., o que ajuda a compor um quadro de determinada parcela social que se relaciona de modo ora tenso, ora ameno, com o outro lado da esfera, composta de empresários, senhoras de posses, policiais, funcionários do governo, dentre outros. Personagens como Di Lixão, Duzu-Querença, Ana Davenga e Natalina, presentes no universo dos contos publicados nos Cadernos Negros; Ponciá Vicêncio, Vô Vicêncio, Luandi, Nêngua Kainda, Zé Moreira, Bilisa e Negro Glimério, listados em Ponciá Vicêncio; Maria-Nova (desdobramento ficcional da autora?), Maria Velha, Vó Rita, Negro Alírio, Bondade, Ditinha, Balbina, Filó Gazogênia, Cidinha-Cidoca, Tio Totó e Negra Tuína, de Becos da memória, exemplificam, no plano da ficção, o universo marginal que a sociedade tenta ocultar.

Becos da memória é marcado por uma intensa dramaticidade, o que desvela o intuito de transpor para a literatura toda a tensão inerente ao cotidiano dos que estão permanentemente submetidos à violência em suas diversas modalidades. Barracos e calçadas, bordéis e delegacias compõem o cenário urbano com que se defrontam os excluídos de todos os matizes e gradações, o que insinua ao leitor qual a cor da pobreza brasileira. No entanto, a autora escapa das soluções fáceis: não faz do morro território de glamour e fetiche; tampouco, investe no traço simples do realismo brutal, o qual acaba transformando a violência em produto comercial para a sedenta sociedade de consumo.

Os fragmentos que compõem Becos da memória procuram aliar a denúncia social a um lirismo de tom trágico, o que remonta ao mundo íntimo dos humilhados e ofendidos, tomados no livro como pessoas sensíveis, marcadas, portanto, não apenas pelos traumas da exclusão, mas também por desejos, sonhos e lembranças. Violência e intimismo, realismo e ternura, além de impactarem o leitor, revelam o compromisso e a identificação da intelectualidade afrodescendente com aqueles colocados à margem do que o discurso neoliberal chama de progresso.

Sabendo que é possível à obra (re)construir a vida, através de “pontes metafóricas”, pelo projeto literário de Conceição Evaristo vislumbram-se pistas de possíveis percursos e leituras de cunho biográfico. Na configuração do romance em questão pululam aqui e ali, ora na ficção, ora em entrevistas, ora em textos acadêmicos, peças para a montagem de seu quebracabeça literário e biográfico. Uma das peças desse jogo parece ser a natureza da relação contratual estabelecida entre o leitor e o espaço autoficcional em que se insere Becos da memória. Aqui, a figura autoral ajuda a criar imagens de outra(s) Evaristo(s), projetada(s) em seus personagens, como Maria-Nova, por exemplo. Em outras palavras, processa-se uma espécie de exercício de elasticidade de um eu-central. Desliza-se com facilidade na prosa de Evaristo entre o romance e a escrita de si. Se, tradicionalmente, aquele se preocupa com o universal humano e esta, com o particular ou com o indivíduo, a autora propõe a junção dos dois gêneros, pois, para ela, pensar a si é também pensar seu coletivo. Do ponto de vista formal não é diferente: não se utilizam capítulos, mas fragmentos, bem a gosto do narrador popular benjaminiano. Nessa perspectiva, vê-se o mundo através da ótica dos fragmentos e dos indivíduos anônimos que compõem boa parte da teia social.

Neste livro de corte tanto biográfico quanto memorialístico, nota-se o que a autora chama de escrevivência, ou seja, a escrita de um corpo, de uma condição, de uma experiência negra no Brasil. Tanto na vida da autora quanto em Becos da memória, a leitura antecede e nutre as escritas de Evaristo e de Maria-Nova, razão pela qual lutam contra a existência em condições desfavoráveis. Ler é também arquivar a si, pois se selecionam momentos e estratégias de elaboração do passado, o qual compõe as cenas vividas, escritas e recriadas em muitos de seus personagens. Finalmente, decodificar o universo das palavras, para a autora e para Maria-Nova, torna-se uma maneira de suportar o mundo, o que proporciona um duplo movimento de fuga e inserção no espaço. Não menos importante, a escrita também abarca estas duas possibilidades: evadir para sonhar e inserir-se para modificar.

O lugar de enunciação mostra-se solidário e identificado com os menos favorecidos, vale dizer, sobretudo, com o universo das mulheres negras. E o universo do sujeito autoral parece ser recriado através das caracterizações físicas, psicológicas, sociais e econômicas de suas personagens do gênero feminino. Maria-Nova, presente em Becos da memória, aos nossos olhos, compõe-se, mais do que todas as personagens, de rastros do sujeito autoral: menina, negra, habitante durante a infância de uma favela e que vê na escrita uma forma de expressão e resistência à sorte de seu existir. Uma ponte metafórica que arriscamos instalar permite ver em comum, ainda, o fato de serem provenientes de famílias sustentadas por matriarcas lavadeiras, transitantes entre os mundos da prosperidade e da miséria, ou seja, Conceição e Maria-Nova cumpriram, no espaço familiar em que estiveram, o papel de mediação cultural que aperfeiçoou o processo de bildung (confirma palavra em inglês?) de uma e de outra.

A obra se constrói, então, a partir de “rastros” fornecidos por aqueles três elementos formadores da escrevivência: corpo, condição e experiência. O primeiro elemento reporta à dimensão subjetiva do existir negro, arquivado na pele e na luta constante por afirmação e reversão de estereótipos. A representação do corpo funciona como ato sintomático de resistência e arquivo de impressões que a vida confere. O segundo elemento, a condição, aponta para um processo enunciativo fraterno e compreensivo com as várias personagens que povoam a obra. A experiência, por sua vez, funciona tanto como recurso estético quanto de construção retórica, a fim de atribuir credibilidade e poder de persuasão à narrativa. No livro em questão, a voz enunciativa, num tom de oralidade e reminiscência, desfia situações, senão verdadeiras, verossimilhantes, ocorridas no “morro do Pindura Saia”, espaço que bem se assemelha ao da infância da autora. Arriscamos dizer que há “jogo especular”, portanto, entre a experiência do sujeito empírico e de Maria-Nova, para além da simetria do espaço da narrativa (favela) e do espaço da infância e da juventude da autora (idem).

Outro bom exemplo de jogo especular consiste em uma situação por que realmente passou Evaristo e que se repete com Maria-Nova. Aliás, tem sido realmente um verdadeiro trauma para crianças negras estudar na escola tópicos relativos à escravidão e seus desdobramentos. Enquanto a professora se limitava à leitura de um conteúdo abstrato e com visão eurocêntrica acerca do passado escravocrata, Maria-Nova não conseguia enxergar naquele ato – e na escola – sentido para a concretude daquele assunto. Afinal, ela e a autora viviam e sentiam na pele as consequências da exploração do homem pelo homem na terra brasilis. Sujeito-mulher-negra, abandonada à própria sorte a partir do dia 14 de maio de 1888,

Maria-Nova olhou novamente a professora e a turma. Era uma história muito grande! Uma história viva que nascia das pessoas, do hoje, do agora. Era diferente de ler aquele texto. Assentou-se e, pela primeira vez, veio-lhe um pensamento: quem sabe escreveria esta história um dia? Quem sabe passaria para o papel o que estava escrito, cravado e gravado no seu corpo, na sua alma, na sua mente (p. 138).

A garota, ciente de que a história das lutas dos negros no Brasil começava já com as primeiras levas diaspóricas, parece repetir o célebre questionamento de Gayatri Spivac: “pode o subalterno falar?”. Mais que isso: falar, ser ouvido, redigir outra história, outra versão, outra epistemologia, que leve em conta não o arquivamento das versões dos vencidos, mas que valorize o sujeito comum, anônimo, do dia a dia. Talvez Maria-Nova nem tenha se dado conta de que o que ela havia pensado era exatamente a fundamentação de boa parte dos Estudos Pós-Coloniais e da História Nova. Nesse sentido, os corpos-textos de Maria-Nova e Conceição Evaristo possuem em comum a missão política de inventar outro futuro para si e para seu coletivo, o que lhes imbui de uma espécie de dever de memória e dever de escrita. Vejamos: “agora ela [Maria-Nova] já sabia qual seria a sua ferramenta, a escrita. Um dia, ela haveria de narrar, de fazer soar, de soltar as vozes, os murmúrios, os silêncios, o grito abafado que existia, que era de cada um e de todos. Maria-Nova, um dia, escreveria a fala de seu povo (p. 161).

E a escrita acompanhará a pequena até a última página do livro, o que nos permite pensar que a missão ainda está em processo: “não, ela [Maria-Nova] jamais deixaria a vida passar daquela forma tão disforme. […] Era preciso viver. ‘Viver do viver’. […] O pensamento veio rápido e claro como um raio. Um dia ela iria tudo escrever” (p. 147).

E escreveu em seu mundo de papel. Coube a Evaristo registrar o desejo de Maria-Nova e, logo, seu próprio desejo. O desdobramento de uma em outra e as pontes metafóricas que pretendemos instaurar não esgotam as possibilidades de leituras, mas permitem a possibilidade de muitas outras, que despertem o afã de também escrever.

Luiz Henrique Silva de Oliveira – Universidade Federal de Minas Gerais

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Becos da memória – EVARISTO (REF)

EVARISTO, Conceição. Becos da memória. Belo Horizonte: Mazza, 2006. Resenha de: OLIVEIRA, Luiz Henrique Silva de. “Escrevivência” em Becos da memória, de Conceição Evaristo. Revista Estudos Feministas v.17 n.2 Florianópolis May/Aug. 2009.

“Homens, mulheres, crianças que se amontoaram dentro de mim, como amontoados eram os barracos de minha favela” (p. 21).

Evaristo, 2006, p. 21.

Maria da Conceição Evaristo de Brito nasceu em Belo Horizonte, em 1946. De origem humilde, migrou para o Rio de Janeiro na década de 1970. Graduou-se em Letras pela UFRJ, trabalhou como professora da rede pública de ensino da capital fluminense e da rede privada de ensino superior. É mestre em Literatura Brasileira pela PUC-Rio. No momento, está concluindo doutorado em Literatura Comparada na Universidade Federal Fluminense. Em sua pesquisa, estuda as relações entre a literatura afro-brasileira e as literaturas africanas de língua portuguesa. Participante ativa dos movimentos de valorização da cultura negra em nosso país, estreou na arte da palavra em 1990, quando passou a publicar seus contos e poemas na série Cadernos Negros, suporte de que se utiliza até hoje.

Em 2003, veio a público o romance Ponciá Vicêncio, pela editora Mazza, de Belo Horizonte. Seu segundo livro, outro romance, Becos da memória, foi escrito em fins dos anos 1970 e início dos 1980. Ficou engavetado por cerca de 20 anos até sua publicação, em 2006. Desde então, os textos de Evaristo vêm angariando cada vez mais leitores, sobretudo após a indicação de seu primeiro livro como leitura obrigatória do Vestibular da UFMG, em 2007. A escritora participou ainda de publicações coletivas na Alemanha, na Inglaterra e nos Estados Unidos. Sua obra de estreia foi traduzida para o inglês e está em processo de tradução para o espanhol.

A obra em prosa de Conceição Evaristo é habitada, sobretudo, por excluídos sociais, dentre eles favelados, meninos e meninas de rua, mendigos, desempregados, beberrões, prostitutas, “vadios” etc., o que ajuda a compor um quadro de determinada parcela social que se relaciona de modo ora tenso, ora ameno, com o outro lado da esfera, composta de empresários, senhoras de posses, policiais, funcionários do governo, dentre outros. Personagens como Di Lixão, Duzu-Querença, Ana Davenga e Natalina, presentes no universo dos contos publicados nos Cadernos Negros; Ponciá Vicêncio, Vô Vicêncio, Luandi, Nêngua Kainda, Zé Moreira, Bilisa e Negro Glimério, listados em Ponciá Vicêncio; Maria-Nova (desdobramento ficcional da autora?), Maria Velha, Vó Rita, Negro Alírio, Bondade, Ditinha, Balbina, Filó Gazogênia, Cidinha-Cidoca, Tio Totó e Negra Tuína, de Becos da memória, exemplificam, no plano da ficção, o universo marginal que a sociedade tenta ocultar.

Becos da memória é marcado por uma intensa dramaticidade, o que desvela o intuito de transpor para a literatura toda a tensão inerente ao cotidiano dos que estão permanentemente submetidos à violência em suas diversas modalidades. Barracos e calçadas, bordéis e delegacias compõem o cenário urbano com que se defrontam os excluídos de todos os matizes e gradações, o que insinua ao leitor qual a cor da pobreza brasileira. No entanto, a autora escapa das soluções fáceis: não faz do morro território de glamour e fetiche; tampouco, investe no traço simples do realismo brutal, o qual acaba transformando a violência em produto comercial para a sedenta sociedade de consumo.

Os fragmentos que compõem Becos da memória procuram aliar a denúncia social a um lirismo de tom trágico, o que remonta ao mundo íntimo dos humilhados e ofendidos, tomados no livro como pessoas sensíveis, marcadas, portanto, não apenas pelos traumas da exclusão, mas também por desejos, sonhos e lembranças. Violência e intimismo, realismo e ternura, além de impactarem o leitor, revelam o compromisso e a identificação da intelectualidade afrodescendente com aqueles colocados à margem do que o discurso neoliberal chama de progresso.

Sabendo que é possível à obra (re)construir a vida, através de “pontes metafóricas”, pelo projeto literário de Conceição Evaristo vislumbram-se pistas de possíveis percursos e leituras de cunho biográfico. Na configuração do romance em questão pululam aqui e ali, ora na ficção, ora em entrevistas, ora em textos acadêmicos, peças para a montagem de seu quebracabeça literário e biográfico. Uma das peças desse jogo parece ser a natureza da relação contratual estabelecida entre o leitor e o espaço autoficcional em que se insere Becos da memória. Aqui, a figura autoral ajuda a criar imagens de outra(s) Evaristo(s), projetada(s) em seus personagens, como Maria-Nova, por exemplo. Em outras palavras, processa-se uma espécie de exercício de elasticidade de um eu-central. Desliza-se com facilidade na prosa de Evaristo entre o romance e a escrita de si. Se, tradicionalmente, aquele se preocupa com o universal humano e esta, com o particular ou com o indivíduo, a autora propõe a junção dos dois gêneros, pois, para ela, pensar a si é também pensar seu coletivo. Do ponto de vista formal não é diferente: não se utilizam capítulos, mas fragmentos, bem a gosto do narrador popular benjaminiano. Nessa perspectiva, vê-se o mundo através da ótica dos fragmentos e dos indivíduos anônimos que compõem boa parte da teia social.

Neste livro de corte tanto biográfico quanto memorialístico, nota-se o que a autora chama de escrevivência, ou seja, a escrita de um corpo, de uma condição, de uma experiência negra no Brasil. Tanto na vida da autora quanto em Becos da memória, a leitura antecede e nutre as escritas de Evaristo e de Maria-Nova, razão pela qual lutam contra a existência em condições desfavoráveis. Ler é também arquivar a si, pois se selecionam momentos e estratégias de elaboração do passado, o qual compõe as cenas vividas, escritas e recriadas em muitos de seus personagens. Finalmente, decodificar o universo das palavras, para a autora e para Maria-Nova, torna-se uma maneira de suportar o mundo, o que proporciona um duplo movimento de fuga e inserção no espaço. Não menos importante, a escrita também abarca estas duas possibilidades: evadir para sonhar e inserir-se para modificar.

O lugar de enunciação mostra-se solidário e identificado com os menos favorecidos, vale dizer, sobretudo, com o universo das mulheres negras. E o universo do sujeito autoral parece ser recriado através das caracterizações físicas, psicológicas, sociais e econômicas de suas personagens do gênero feminino. Maria-Nova, presente em Becos da memória, aos nossos olhos, compõe-se, mais do que todas as personagens, de rastros do sujeito autoral: menina, negra, habitante durante a infância de uma favela e que vê na escrita uma forma de expressão e resistência à sorte de seu existir. Uma ponte metafórica que arriscamos instalar permite ver em comum, ainda, o fato de serem provenientes de famílias sustentadas por matriarcas lavadeiras, transitantes entre os mundos da prosperidade e da miséria, ou seja, Conceição e Maria-Nova cumpriram, no espaço familiar em que estiveram, o papel de mediação cultural que aperfeiçoou o processo de bildung (confirma palavra em inglês?) de uma e de outra.

A obra se constrói, então, a partir de “rastros” fornecidos por aqueles três elementos formadores da escrevivência: corpo, condição e experiência. O primeiro elemento reporta à dimensão subjetiva do existir negro, arquivado na pele e na luta constante por afirmação e reversão de estereótipos. A representação do corpo funciona como ato sintomático de resistência e arquivo de impressões que a vida confere. O segundo elemento, a condição, aponta para um processo enunciativo fraterno e compreensivo com as várias personagens que povoam a obra. A experiência, por sua vez, funciona tanto como recurso estético quanto de construção retórica, a fim de atribuir credibilidade e poder de persuasão à narrativa. No livro em questão, a voz enunciativa, num tom de oralidade e reminiscência, desfia situações, senão verdadeiras, verossimilhantes, ocorridas no “morro do Pindura Saia”, espaço que bem se assemelha ao da infância da autora. Arriscamos dizer que há “jogo especular”, portanto, entre a experiência do sujeito empírico e de Maria-Nova, para além da simetria do espaço da narrativa (favela) e do espaço da infância e da juventude da autora (idem).

Outro bom exemplo de jogo especular consiste em uma situação por que realmente passou Evaristo e que se repete com Maria-Nova. Aliás, tem sido realmente um verdadeiro trauma para crianças negras estudar na escola tópicos relativos à escravidão e seus desdobramentos. Enquanto a professora se limitava à leitura de um conteúdo abstrato e com visão eurocêntrica acerca do passado escravocrata, Maria-Nova não conseguia enxergar naquele ato – e na escola – sentido para a concretude daquele assunto. Afinal, ela e a autora viviam e sentiam na pele as consequências da exploração do homem pelo homem na terra brasilis. Sujeito-mulher-negra, abandonada à própria sorte a partir do dia 14 de maio de 1888,

Maria-Nova olhou novamente a professora e a turma. Era uma história muito grande! Uma história viva que nascia das pessoas, do hoje, do agora. Era diferente de ler aquele texto. Assentou-se e, pela primeira vez, veio-lhe um pensamento: quem sabe escreveria esta história um dia? Quem sabe passaria para o papel o que estava escrito, cravado e gravado no seu corpo, na sua alma, na sua mente (p. 138).

A garota, ciente de que a história das lutas dos negros no Brasil começava já com as primeiras levas diaspóricas, parece repetir o célebre questionamento de Gayatri Spivac: “pode o subalterno falar?”. Mais que isso: falar, ser ouvido, redigir outra história, outra versão, outra epistemologia, que leve em conta não o arquivamento das versões dos vencidos, mas que valorize o sujeito comum, anônimo, do dia a dia. Talvez Maria-Nova nem tenha se dado conta de que o que ela havia pensado era exatamente a fundamentação de boa parte dos Estudos Pós-Coloniais e da História Nova. Nesse sentido, os corpos-textos de Maria-Nova e Conceição Evaristo possuem em comum a missão política de inventar outro futuro para si e para seu coletivo, o que lhes imbui de uma espécie de dever de memória e dever de escrita. Vejamos: “agora ela [Maria-Nova] já sabia qual seria a sua ferramenta, a escrita. Um dia, ela haveria de narrar, de fazer soar, de soltar as vozes, os murmúrios, os silêncios, o grito abafado que existia, que era de cada um e de todos. Maria-Nova, um dia, escreveria a fala de seu povo (p. 161).

E a escrita acompanhará a pequena até a última página do livro, o que nos permite pensar que a missão ainda está em processo: “não, ela [Maria-Nova] jamais deixaria a vida passar daquela forma tão disforme. […] Era preciso viver. ‘Viver do viver’. […] O pensamento veio rápido e claro como um raio. Um dia ela iria tudo escrever” (p. 147).

E escreveu em seu mundo de papel. Coube a Evaristo registrar o desejo de Maria-Nova e, logo, seu próprio desejo. O desdobramento de uma em outra e as pontes metafóricas que pretendemos instaurar não esgotam as possibilidades de leituras, mas permitem a possibilidade de muitas outras, que despertem o afã de também escrever.

Luiz Henrique Silva de Oliveira – Universidade Federal de Minas Gerais.

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