Ensino de História e Cultura Indígena nas escolas: transformações e permanências, conquistas e desafios no pós Lei 11.645/2008 | Revista Eletrônica História em Reflexão | 2022

Projeto cria condicoes para uma formacao escolar propria aos indigenas Foto Gustavo DiehlUFRGS
Projeto cria condições para uma formação escolar própria aos indígenas | Foto: Gustavo Diehl/UFRGS

É com satisfação e alegria que apresentamos o Dossiê Ensino de História e Cultura Indígena nas escolas: transformações e permanências, conquistas e desafios no pós Lei 11.645/2008. Neste número da Revista História em Reflexão, reunimos estudos de pesquisadores(as) doutores(as), doutorandos(as), mestres(as) e intelectuais indígenas que analisam o ensino de História e Cultura Indígena desde a promulgação da Lei 11.645/2008.

As autoras e autores nos brindam com análises de suas experiências de ensino e pesquisa das Histórias e Culturas Indígenas, que apontam transformações e permanências a partir da Lei, nos marcos legais da legislação da política educacional brasileira, como nas diretrizes curriculares nacionais para formação inicial e continuada de docentes para a Educação Básica (DCNs), nos projetos pedagógicos de cursos de graduação/licenciatura em História (PPCs), nas diretrizes estaduais para a educação básica para a área de história (DCEs), na Base Nacional Comum Curricular (BNCC), e nos materiais didáticos. Por diferentes abordagens teórico-metodológicas, problematizando e evidenciando as conquistas e os desafios na trajetória do ensino de Histórias e Culturas Indígenas, os artigos são consensuais no destaque dos povos indígenas como protagonistas de suas próprias histórias, bem como da história do Brasil, e, fundamentalmente, como partícipes e produtores de conhecimento histórico. Leia Mais

História Indígena e estudos decoloniais / Fronteiras – Revista Catarinense de História / 2018

Os debates em torno da história indígena ganharam relevância nas últimas décadas e continuam a provocar novas elaborações teóricas e conceituais. O alargamento da reflexão sobre a temática indígena coloca cada vez mais em cena histórias e culturas singulares e diversas, em diferentes épocas e lugares. Apesar dos avanços, a história indígena ainda enfrenta obstáculos para ser reconhecida. É, por vezes, tolerada apenas na sua versão étnica (nossa representação historiográfica do indígena) e não histórica êmica (a representação historiográfica dos próprios indígenas). É necessário, portanto, o questionamento da concepção eurocêntrica / colonial sobre o mundo que resulta no epistemicídio, ou seja, na invisibilidade e exclusão de saberes e histórias dos povos originários. É verdade que a academia estava de costas para esses povos e indivíduos, apenas nos últimos anos passou a incorporar os indígenas nas universidades; não apagados como acontecia no passado, mas trazendo consigo sua bagagem cultural, seus saberes e pedagogias e fundamentalmente outra forma de ver e narrar a história.

Nessa perspectiva é imprescindível perpetuar um posicionamento epistemológico e político de valorização das teorias e epistemologias do sul, que pensam com e a partir de corpos e lugares étnico-raciais / sexuais subalternizados pelo processo histórico da colonialidade. Nesse sentido, os estudos decoloniais promovem uma profunda crítica a colonialidade (do poder, do saber e do ser) no combate à violência epistêmica. A construção de uma interpretação decolonizada acerca das experiências de diferentes sujeitos sociais perpassa pela interdisciplinaridade entre campos do conhecimento como a antropologia e arqueologia e pela análise de fontes diversas; escritas, visuais e orais. O dossiê História Indígena e estudos decoloniais revela, justamente, o desafio em questão. Temos avançado, não sem dificuldade, e temos muito ainda a prosseguir. O caminho é longo, apenas iniciamos a jornada.

A Lei Federal 11.645 / 08, que tornou obrigatório o ensino de história e cultura indígenas nas escolas brasileiras, foi promulgada há dez anos. Para sua efetiva implementação, é necessário que haja mudanças no âmbito escolar e no ensino superior. Em ambos espaços, é fundamental que se reflita a partir do que os próprios indígenas produzem de conhecimento para a construção de uma educação verdadeiramente intercultural. As narrativas mitológicas ameríndias, nesse sentido, são importantes para o estudo da temática indígena, como nos alerta Renata Carvalho Silva no artigo “Mito e o ensino de história e cultura indígena em perspectiva decolonial”. Além de nos instigar a questionar dicotomias eurocentradas como natureza X humanidade / cultura e racionalidade X subjetividade, a mitologia têm o potencial de gerar empatia com sujeitos e visões de mundo outras. Como a própria autora adverte, o texto aponta “para uma dimensão rica e diversificada dos complexos de conhecimento e apreensão da existência humana e que o parâmetro universalizante da mesma nunca ultrapassou a linha de suas matrizes teóricas originais”. Suas reflexões destacam múltiplos desafios, mas também apontam para as inúmeras possibilidades de construir novos referenciais para estudo da história e cultura indígena.

Nas universidades, por sua vez, o ingresso crescente de estudantes indígenas e da luta por políticas efetivas de permanência estão transformando instituições ainda coloniais através da diversidade de corpos, vivências e conhecimentos. Elison Antonio Paim e Tatiana de Oliveira Santana apresentam algumas das memórias e das experiências trazidas e vivenciadas para e na universidade por mulheres Guajajara e Akrãtikatêjê no artigo “Mônadas sobre mulheres indígenas na universidade”. As dificuldades são evidentes, assim como a existência / resistência dessas acadêmicas indígenas. Em que pesem as dificuldades, os autores apontam para o novo, em que “os conflitos e tensões no âmbito acadêmico (…) contribuem para a construção de um futuro mais dialógico e respeitoso dentro do espaço acadêmico em relação à experiência de quem vive a universidade e tem o que falar sobre esse espaço, revelando as violências e tensões que se fazem presentes em seus corpos e em suas experiências”. Esse novo, segundo os autores, perpassa uma série de elementos fundamentais, como o acesso e a permanência, mas fundamentalmente a produção de novos saberes, ou seja, deixar as portas das universidades abertas para as experiências múltiplas que dão sentido a vida.

A presença indígena é revelada também a partir de artigos resultantes de pesquisas históricas referentes aos períodos pré-colonial e colonial. O sítio arqueológico AP.CG.1, localizado nas margens do rio Apuaê, Rio Grande do Sul, remete a uma ocupação guarani ancestral investigada no artigo “Arqueologia nas margens do rio Apuaê: um estudo de caso sobre a história pré-colonial do Alto Uruguai”. Fabricio José Nazzari Vicroski e Ânderson Marcelo Schmitt analisam vestígios arqueológicos desse povoamento pré-colonial, a saber: material lítico com indícios de ação antrópica e fragmentos de recipientes cerâmicos relacionados à indústria oleira dos horticultores Guarani. O estudo auxilia na construção da história do povoamento da região, majoritariamente indígena, inclusive de presença pluriétnica, ou seja, não exclusiva das populações Jê meridionais que tiveram seu território alterado após a chegada dos europeus no século XIX. Dois elementos, portanto, se sobressaem nesse estudo: o primeiro, que o povo Guarani também ocupou a região; o segundo, que as “pesquisas arqueológicas desenvolvidas nas margens do rio Apuaê também podem ser integrados às discussões acerca das disputas fundiárias entre indígenas a agricultores no Alto Uruguai, auxiliando assim na composição de um panorama geral acerca do povoamento da região”.

Essas pesquisas inseridas sobretudo no campo da Nova História Indígena enfocam na agência de sujeitos e povos indígenas, diante de realidades diversas, ao longo da história do Brasil. O texto de André Luís Bezerra Ferreira ““Mães das Liberdades”: os processos de mulheres indígenas no tribunal da Junta das Missões na Capitania do Maranhão (1720-1757)” revela a luta de mulheres indígenas pelas suas liberdades através da análise de processos instaurados no tribunal da Junta das Missões do Maranhão. São histórias incríveis de mães como Inácia e Margarida, que acionaram a justiça durante o período colonial e escravista na luta por melhores condições de vida. O autor conclui que “diante dos casos apresentados, podemos evidenciar a eminente agência de mulheres indígenas em prol de sua liberdade e a de seus filhos na Junta das Missões. Mães solteiras que empreendiam ações para o sustento de sua prole e que lutavam para que suas famílias permanecessem reunidas em um mesmo local.”

A história da capitania de Mato Grosso, por sua vez, é abordada no artigo de Gilian Evaristo França Silva intitulado “No século XVIII, uma encruzilhada de povos: os indígenas na formação da capitania de Mato Grosso”. O autor revela a significativa presença e trabalho dos povos indígenas e de origem africana através, sobretudo, da análise de dados demográficos presentes em documentação do Arquivo Histórico Ultramarino, situado em Lisboa. Conclui informando que “os indígenas (…) tiveram sua força de trabalho amplamente utilizada no cotidiano colonial matogrossense. Suas marcas estão visíveis na composição social dessa capitania, nos traços físicos, nas formas de uso do espaço, bem como nas práticas culturais carregadas de sincretismos”.

No século seguinte, criou-se na província do Paraná uma visão estereotipada sobre os Xokleng, como demonstra Soeli Regina Lima no texto “Do imaginário coletivo em torno dos indígenas na região de Rio Negro-PR: um estudo dos relatórios de governo (1853 – 1890)”. Os discursos pejorativos acerca dos “bugres” presentes nos relatórios governamentais, vale ressaltar, eram bastante comuns em toda a região Sul do Brasil no século XIX. Infelizmente, além de incitarem ações violentas, ainda têm ressonância no tempo presente. A autora concluiu que “a desumanização do indígena, a inferiorização do sujeito em comparação com a sociedade ocidental dominante acabou por legitimar a implementação de leis e as narrativas do governo imperial”.

Como resposta à uma história de exclusão, o movimento indígena e as pautas identitárias têm se fortalecido. Os indígenas Kaingang estão em luta pela finalização do processo de demarcação da Terra Indígena Toldo Pinhal, localizada no município de Seara, oeste de Santa Catarina. O artigo “Lugares de memória e ressignificação cultural na Terra Indígena Toldo Pinhal”, escrito por Jaisson Teixeira Lino e Jéssica Alberti Giaretta, revela a vivência contemporânea de aspectos culturais do “ser Kaingang” pela referida comunidade. Num processo de reafirmação étnica, os indígenas acionam lugares de memória e organizam evento cultural que atestam a necessidade do uso de sua terra coletiva e sagrada. Observam os autores que “a concepção sobre a formação da Terra Indígena Toldo Pinhal, (…) se configura também como uma forma de expressão da vontade contida na população indígena de reviver sobre seu território e novamente desfrutar da cultura Kaingang”.

A Revista Catarinense de História Fronteiras traz também nesta edição uma resenha e um artigo recebido em fluxo contínuo, portanto, não pertencentes ao dossiê História Indígena e estudos decoloniais. Andréia Amorim da Silva resenhou o livro de Olivier Dumoulin, “Reflexões sobre o papel social do historiador”, publicado em português pela Editora Autêntica em 2017, quatorze anos após a edição original. A reflexão, com enfoque em países europeus (sobretudo a França) e América do Norte, abarca desde o final do século XIX até a contemporaneidade, quando crescem as demandas pela atuação do historiador em espaços públicos para além da universidade. Antonio Marcos Myskiw e Guilherme Luís Adamczyk revelam a história dos “Grupos dos Onze” no Paraná, fronteira com a Argentina, através da análise dos arquivos da Delegacia de Ordem e Política Social do Paraná. O artigo “O Sudoeste do Paraná nos arquivos da DOPS / PR (1963-1970): os Grupos dos Onze” possibilita uma reflexão urgente e necessária sobre os movimentos de resistência à ditadura militar no Brasil.

Por fim, destacamos com satisfação a entrevista realizada com Ariel Ortega, cineasta Mbyá-Guarani que dirigiu, entre outros, os filmes Mokoi Tekoá Petei Jeguatá – Duas Aldeias, uma caminhada (2008), Bicicletas de Nhanderú (2011), Desterro Guarani (2011) e Tava, a casa de pedra (2012). A conversa inspirada com os entrevistadores nos permite adentrar no fazer cinematográfico indígena, especificamente guarani: “Hoje em dia já não podemos mais, para defender nossas terras, lutar com arco e flecha. Eu estou usando a câmera de outra forma, como luta. É uma ferramenta ocidental, mas que eu estou usando para me defender e para contar outra história. Por isso eu sempre digo que quando pego a câmera dentro da aldeia ela se transforma como um ser da aldeia também. (…) Os povos indígenas têm uma contribuição enorme para construir uma sociedade melhor”.

Desejamos a todos / as uma excelente leitura!

Clovis Antonio Brighenti

Luisa Tombini Wittmann


BRIGHENTI, Clovis Antonio; WITTMANN, Luisa Tombini. Apresentação. Fronteiras: Revista catarinense de História. Florianópolis, n.31, 2018. Acessar publicação original [DR]

Acessar dossiê