A invenção de Goa: poder imperial e conversões culturais nos séculos XVI e XVII – XAVIER (H-Unesp)

XAVIER, Ângela Barreto. A invenção de Goa: poder imperial e conversões culturais nos séculos XVI e XVII. Lisboa, Imprensa de Ciências Sociais, 2008. Resenha de: MOURA, Denise A. Soares de. História [Unesp] v.28 no.1 Franca  2009.

Em A invenção de Goa, Ângela Barreto Xavier discute a experiência monárquica portuguesa no sul da Índia como um processo de tensões, confrontos e acomodações entre colonizadores e colonizados entre os séculos XVI e XVII.

As quase 500 páginas de sua consistente pesquisa em arquivos de Portugal, Itália e Índia, resultado de sua tese de doutorado defendida no Instituto Universitário Europeu, estão divididas em sete capítulos.

A narrativa, construída através da interpretação de documentação administrativa, jesuítica e do Santo Ofício articula o projeto e as ações imperativas do colonizador com as de criação e resistência dos colonizados. Dos capítulos 1 ao 4, são apresentados e discutidos os êxitos da presença portuguesa nas aldeias de Goa, através da aliança que existiu entre a Coroa e as ordens missionárias jesuíticas e franciscanas. A ação criativa e a resistência sutil e violenta das populações indianas às imposições da ordem metropolitana são tratadas entre os capítulos 5 e 7.

O primeiro capítulo, intitulado “Reforma do reino, reforma no império” critica a tese da historiografia portuguesa que defende a crise e decadência do império asiático português no período 1530-40 e discute uma das diretrizes metodológicas do livro de que o fortalecimento do aparelho político-administrativo do reinado de D. João III serviu para implantar um modelo de relacionamento político mais imperativo no Estado da Índia.

Uma aliança político-religiosa, comum em várias unidades políticas européias da época, teria conservado o poder imperial e promovido a cristianização das sociedades coloniais, substituindo antigas ligações sociais comunitárias e horizontais por laços verticais próprios da relação súditos e autoridades.

Para Ângela Xavier, o traçado político centralizado do Estado da Índia envolveu a conversão e evangelização sistemática das populações locais. No Reino, estaria ganhando evidência o modelo imperial romano, desenhado em suas paredes e cantado por poetas e cronistas.

Este primeiro capítulo é concluído com a idéia de que os territórios do que seria Goa foram os primeiros a experimentar esta atitude centralizadora e imperial, através da constituição de tombos, forais e da implantação de redes de fortificação.

Em “Traças para a conversão”, capítulo seguinte, a ação conjunta entre Monarquia e Igreja aparece através dos projetos de evangelização sustentados pela Coroa e implantados por missionários jesuítas e franciscanos.

Para evitar a islamização do território e combater as práticas religiosas tradicionais, houve a catequização pelo medo, com a introdução da Inquisição, a perseguição à religiosidade tradicional e a promoção da separação física entre cristãos e não convertidos. A ordem religiosa local foi destruída fisicamente e em seu lugar foram edificadas instituições cristãs, como a Confraria da Santa Fé, o seminário e colégio homônimos, a Casa dos catecúmenos.

Vários mecanismos de persuasão também foram implantados, como a construção de edifícios de culto cristão, o aperfeiçoamento da formação dos convertidos locais e do clero, a concessão de privilégios para convencer os indianos à conversão – como restrição do exercício de alguns ofícios apenas aos cristãos – concessão de terras em mercê aos convertidos, atribuição de capacidades jurídicas e autonomia econômica às mulheres convertidas – algo impensável na ordem social em que nasceram.

Mas, como escreveu a autora, entre portugueses estabelecidos localmente – os casados – e entre os brâmanes – .o grupo da elite local -, existiram vozes contrárias ao processo de conversão dos indianos.

O dilema histórico português de dividir poderes e fazer alianças para erguer um Império é discutido no capítulo 3, “Novos templos e novos sacerdotes”. A Companhia de Jesus e os franciscanos receberam da Coroa portuguesa e conquistaram junto às elites locais tamanho poder político, econômico, administrativo e judicial que, segundo a autora, quando o Estado da Índia vivia uma situação de fragilidade financeira, os conventos estavam acumulados de bens materiais, o que interferia nos índices demográficos e de fecundidade local por atraírem os habitantes das aldeias.

Mesmo os êxitos do trabalho missionário de intervenção nos costumes, na estrutura das famílias, na rotina de trabalho, na festas, na concepção de tempo e organização do espaço físico das comunidades locais e na implantação de uma estrutura de vigilância, punição e premiação, não impediram que a Monarquia portuguesa, a partir do século XVII, entrasse em atrito com os párocos locais e regulares e procurasse diminuir os amplos poderes alcançados pelas ordens missionárias.

Tarefa difícil, sabendo-se que, como mostra o capítulo 4, foram a Igreja e as ordens missionárias que forneceram os dispositivos essenciais da cristianização, base de sustentação do Império. Através da articulação confraria-misericórdia-colégio-hospital, franciscanos e jesuítas, nas suas diferentes concepções, interferiram na sensibilidade e na formação goesa. A caridade, educação, pregação, comunhão e confissão eram vistas como formas de ampliação do rebanho cristão.

O capítulo 5 inventaria os comportamentos dos agentes cristãos e das populações das aldeias da ilha de Chorão em relação à conversão e cristianização. Do lado dos convertidos, destacam-se o pragmatismo, visando tirar proveito da nova ordem em termos hierárquicos, ascensão, preservação do status e obtenção de privilégios.

Parcelas da população local convertiam-se, mas continuavam praticando clandestinamente sacrifícios e rituais próprios da sua tradição. A população local também protagonizou fugas e rebeliões, recebendo como resposta dos religiosos a aplicação da violência aos que recusavam a conversão, e a gratificação aos que aderiam ao cristianismo.

Em outros povoamentos locais, especialmente os da periferia de Goa, a resistência ocorria através da violência explícita, com assassinatos rituais de jesuítas e motins, como demonstra o capítulo 6. A autora pondera, contudo, que o prestígio e o poder alcançado por muitos destes missionários deu-lhes autoridade para promover estas manifestações de franca oposição à Coroa portuguesa.

O capítulo 7 incursiona pelo campo da memória histórica das elites nativas, mostrando como, na disputa pela condição de intermediador entre ordem imperial e local, elas se apropriaram e aplicaram à sua história o discurso de honra e nobreza do colonizador.

Um dos aspectos mais positivos da obra é a recuperação que faz da centralidade política da Coroa portuguesa, evidenciando-a, ao mesmo tempo em que esta abordagem não implica em desconsiderar o desenvolvimento político das populações e territórios que fizeram parte desta monarquia.

No conjunto da historiografia portuguesa que vem problematizando questões relativas ao estado e ao poder, este livro representa a revisão da imagem de Império descerebrado, surgida a partir do tipo de leitura que foi feita das pesquisas e interpretações realizadas por Antonio Manoel Hespanha para o século XVII1.

Dentre as várias contribuições do livro nesse aspecto, merece ser destacado que a própria existência de instâncias institucionais de comunicação e arbitragem nas partes de Goa, como o Conselho Ultramarino e os tribunais da inquisição, e o uso que a elite colonial fazia deles para petições, requerimentos e julgamentos denota a condição de árbitro legítimo que os colonos – casados ou elite local – da Índia atribuíam à Coroa portuguesa.

Das várias partes territoriais que compuseram a monarquia portuguesa, no atlântico ou no índico, nada funcionou desvinculado de um eixo central, como demonstra a própria malha institucional, administrativa ou fiscal, que unia e fazia funcionar estas partes.

A resistência e os processos autônomos existiram, como bem interpreta a autora, e ainda assim tiveram consistências muito diferentes num mesmo território, como no caso de Goa ou das aldeias em seus arredores, ambiente de conflitos mais intensos contra o projeto de cristianização da Coroa e dos missionários.

Dentre os que investigaram a história da Índia, o livro de Ângela Xavier avança porque não se restringiu a compreender a centralidade de Goa, como fez Catarina Madeira Santos ou Luis Filipe Thomaz, mas voltou-se para o que chama de “Goa rural” (p. 20), para as aldeias ao seu redor, que ao consentirem viver sobre o poder da Coroa portuguesa, refizeram sua própria identidade, participaram e asseguraram a existência da monarquia.

Recusando a abordagem orientalista presente em muitos trabalhos de origem indiana, a autora focaliza a população local da Índia, especialmente as elites, mostrando seu papel ativo na construção da ordem monárquica.

Diante desta abordagem, ao invés de um cortejo de ações violentas do colonialismo português ou de resistência goesa, o leitor se vê diante de uma realidade mais criativa, ativa, que faz uso de uma sociedade e cria relações novas, sem abolir a tradição e a partir das oportunidades abertas pela condição de colônia de uma metrópole portuguesa.

Esse quadro às vezes parece em desacordo com o vocabulário da autora, que poderia ter buscado expressões mais ponderadas. Hegemonia passa uma idéia de supremacia e totalidade que não corresponde ao tipo de interpretação que a obra faz da ação colonizadora. Neste caso, a idéia de presença, usada por Russell-Wood, ajusta-se mais à experiência monárquica e colonial portuguesa2. Ainda não é clara a expressão “economia de poderes” (p. 274). Embora a autora já a tenha usado em outro texto, escrito com Antonio Manoel Hespanha3, tal expressão merecia no livro uma nota explicativa.

Mais do que uma sólida investigação e reflexão sobre identidades, poderes e culturas, A invenção de Goa é uma ferramenta teórico-metodológica para os pesquisadores da Monarquia portuguesa. Sua leitura promete munir os interessados nas problemáticas monárquicas modernas de diretrizes para conceituações mais equilibradas da relação entre as várias porções territoriais da monarquia portuguesa e em outros campos, como o da história econômica e administrativa.

Notas

1 Hespanha, A. M. As vésperas do Leviathan: instituições e poder político. Portugal, século XVII. Coimbra, Liv. Almendina, 1994. Na historiografia crítica destaco apenas Monteiro, Nuno Gonçalo. As reformas na monarquia pluricontinental portuguesa: de Pombal a D. Rodrigo. Texto a ser publicado no Brasil e gentilmente cedido pelo autor para uma leitura prévia. °

2 Russell-Wood, A. J. R. The Portuguese empire: 1415-1808. A world on the movie. Baltimoreand London, The Johns Hopkins University Press, 1992, pp. 21-22.

3 Xavier, Ângela Barreto e Hespanha, António Manoel. In: As redes clientelares. In: Hespanha, António Manuel. História de Portugal: o Antigo Regime (1620-1807). Lisboa, Editorial Estampa, 1992, pp.381-394.

Denise A. Soares de Moura – Professora Doutora – Departamento de História – Faculdade de História, Direito e Serviço Social – UNESP – 14409-160 – Franca – SP – Brasil. E-mail: [email protected].

 

 

 

 

 

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