O regresso dos mortos. Os doadores da Misericórdia do Porto e a expansão oceânica (séculos XVI-XVII) – SÁ (VH)

SÁ, Isabel dos Guimarães. O regresso dos mortos. Os doadores da Misericórdia do Porto e a expansão oceânica (séculos XVI-XVII). Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais – ICS, 2018. 331 p. DILLMANN, Mauro. A Misericórdia do Porto e seus doadores dos espaços dos mundos transoceânicos Ibéricos. Varia História. Belo Horizonte, v. 35, no. 69, Set./ Dez. 2019.

(Re)conhecida na/pela historiografia brasileira, a historiadora portuguesa Isabel dos Guimarães Sá, professora no departamento de História da Universidade do Minho (Portugal), desenvolve pesquisas sobre misericórdias portuguesas ao menos desde a década de 1990,fn1 sendo uma das grandes expoentes na temática.fn2 O livro “O Regresso dos Mortos: os doadores da Misericórdia do Porto e a expansão oceânica (séculos XVI-XVIII)”, publicado em 2018 pela Imprensa de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, é uma continuidade das suas investigações, decorrente da compilação de textos e resultados da pesquisa da autora desenvolvida na última década junto ao Arquivo histórico da Santa Casa de Misericórdia do Porto. De primorosa abordagem teórico-metodológica à inegável fluidez narrativa, a obra certamente conforma sofisticação e sutileza tanto aos leitores que compartilham e prezam pelas regras do ofício (de historiador) quanto àqueles que buscam conhecimento do passado.

O livro apresenta 10 capítulos divididos em dois eixos: o primeiro fornece um quadro contextual do papel das Misericórdias no agenciamento das heranças deixadas em testamento, especialmente aquelas relativas à instituição da mercantil cidade do Porto, bem como a identificação coletiva dos seus doadores nos territórios ultramarinos; o segundo, inicia com um breve capítulo intitulado “A reconstituição de trajetórias de doadores: fontes e métodos”, que introduz e problematiza os demais, dedicados à análise das particularidades da vida, das posses, das relações familiares e das doações de sujeitos que viviam nos séculos XVI e XVII nas duas grandes áreas da expansão ibérica, o Estado da Índia e a América portuguesa. Foi por meio desses territórios que emergiram, segundo a autora, as fortunas mais significativas legadas à Misericórdia do Porto, que provinham de homens, mulheres e membros do clero (p.66). Ao final de cada subcapítulo em que analisa indivíduos e famílias, Guimarães Sá organizou uma cronologia das dinâmicas testamentárias no que tange às doações e, ao final do livro – vale mencionar – trouxe interessante “índice remissivo” (p.309-331).

Ao reunir diferentes casos de doadores – dezesseis ao todo, embora se desdobre em muitos outros ao considerar ascendentes e descendentes dos quadros genealógicos – Guimarães Sá tenciona identificar repetições que constituam “padrões de comportamento” relativamente homogêneos, buscando também compreender esses sujeitos “enquanto pessoas” e seus motivos para a realização de doações à Misericórdia do Porto, entre eles, o de cuidar da salvação eterna da própria alma. Pode-se identificar uma proximidade com os trabalhos de história social desenvolvidos por pesquisadores que se valem de metodologias prosopográficas,fn3 embora a autora não faça qualquer menção ao método.fn4

A obra propõe uma abordagem micro-histórica para tratar das singularidades dos sujeitos, da vida mercantil ultramarina, das religiosidades, dos valores, dos consumos e das relações familiares. São tecidas considerações sobre a interpretação dos bens/materialidades e suas conversões em dinheiro para pagamento dos benefícios espirituais. Na dinâmica que vinculava o doador e a instituição receptora dos recursos, em período da história moderna marcado pelo entusiasmo português na expansão oceânica, as relações familiares tornar-se-iam fragmentadas e a vida material dos portuenses aberta a novos produtos e mercadorias.

A escolha dos indivíduos que mereceram atenção investigativa partiu de dois critérios: geográfico, com foco em doadores que transitavam pelo império português na Ásia e na América; e documental, privilegiando aqueles que deixaram registros (p.19). Esses doadores eram indivíduos que pertenciam à elite mercantil e possuíam experiências no trato marítimo e na circulação de pessoas e bens. Constituíam redes sociais e comerciais que legitimavam seus movimentos, seus laços de família e suas “últimas vontades” (p.197). É a atenção dispensada às figuras dos doadores e às doações, individuais e coletivamente, que, segundo a autora, justifica a pesquisa frente à produção historiográfica relativa às Misericórdias.fn5 Além disso, as reflexões propostas por Guimarães Sá (p.16), ao perceber as influências dos territórios da expansão sobre os doadores e sobre as próprias doações se inserem nos debates sobre “mundos conectados”, tal como proposto pelo historiador Serge Gruzinski (2014).

Importante destacar o conjunto de fontes privilegiadas para análise, constituído por testamentos e inventários de bens, mas também genealogias, registros paroquiais, escrituras notariais, entre outros. Há um exemplar cuidado em explicitar as possibilidades e limites dos testamentos (p.93-95) e com a esmerada análise dessas fontes (ponto forte da obra), Guimarães Sá estabelece interpretações sobre vínculos familiares, relações de valores morais e monetários e contatos culturais entre a Ibéria e a Ásia. A experiência com os testamentos permite à autora captar “impressões” (p.181) e realizar inferências pertinentes sobre vida privada (p.193), reconstituindo os laços familiares e a dimensão subjetiva de cada indivíduo. Quando a análise assume feições generalizantes, a autora justifica como sendo “pincelada larga”, a exemplo da caracterização dos doadores. Ao traçar um perfil destes – domínio da escrita, vida de caráter urbano, “elites” da cidade -, merecem destaques o manejo das fontes e a apresentação das dificuldades no fazer historiográfico, como a necessidade de presumir que muitos doadores fossem solteiros a partir da ausência de referência à cônjuges na documentação.

Em relação à metodologia, é elogiosa a preocupação demonstrada em frisar o que o livro não é ou não pretende ser: não é um estudo de longa duração, não é história econômica; não tem como objeto os irmãos, apenas os doadores (p.49); não é um estudo de quaisquer casos de doações, apenas daquelas com escritura notarial (p.50) e ligados aos territórios da expansão ibérica, que correspondiam a 20% do total de doadores (p.67, 75); não faz análise da logística e das transferências de heranças através dos oceanos (p.96).

A autora aponta para o que considera como “uma das constatações mais importantes” do livro: a forma como se processava a circulação de gêneros e bens e sua transformação. Mercadorias, dinheiro, terras, roupas, móveis poderiam se converter em “papéis de crédito” para a Misericórdia (sua riqueza preferida) e esta poderia, através de rituais, converter os bens materiais em espirituais (p.90). A Misericórdia do Porto estava longe de se limitar a cuidar apenas dos sufrágios e dos pobres, desejando lucrar com as rendas proporcionadas pelas heranças recebidas. As doações pressupunham uma dinâmica de troca entre o sujeito que doava e a instituição: aqueles que deixavam seus legados esperavam, em troca, “missas anuais”, “para sempre”, “todos os anos” ou “enquanto o mundo durar”, o que poderia gerar situações de heranças recusadas, quando os serviços requisitados fossem desproporcionais com os rendimentos atribuídos (p.80). Ao cumprir o “acordo”, ao tratar da eternidade das almas, a Misericórdia promovia o “regresso dos mortos” (referência ao título do livro), um regresso póstumo e simbólico destes doadores, que viviam em outros territórios e teriam sua memória garantida entre os vivos na sua terra natal.

Por fim, vale dizer que a obra poderá interessar a quem se volta ao período moderno português, à história das religiões, à história das instituições e à história das elites no Antigo Regime. De narrativa encadeada, ao reunir textos inéditos e reformulações/revisões de outras publicações realizadas pela própria autora a partir do ano de 2011, acaba por portar algumas recorrências explicativas, embora haja cuidadosa coesão de ideias e mereça, com certeza, forte recomendação de leitura.

1Informação acionada em Academia.edu. Disponível em https://uminho.academia.edu/IsabelDosguimaraessa. Acessado em 21 jun. 2019. Destaco, entre tantas, as seguintes publicações: SÁ, Isabel Guimarães. Quando o rico se faz pobre: misericórdias, caridade e poder no império português, 1500-1800. Lisboa: Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1997; em parceria com a historiadora Maria Antónia Lopes, publicou História Breve das Misericórdias Portuguesas, 1498-2000. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2018. No Brasil, publicou As misericórdias portuguesas, séculos XVI a XVIII. Rio de Janeiro: FGV, 2013 (Coleção FGV de bolso). Nesse sentido, indico alguns trabalhos publicados no Brasil nos últimos anos, que fazem parte das reflexões que constam na obra resenhada: Entre consumos suntuários e comuns: a posse de objetos exóticos entre alguns habitantes do Porto (séculos XVI-XVIII), Anais do Museu Paulista, v. 25, n. 1, p.35-57, abr. 2017; As misericórdias e as transferências de bens: o caso dos Monteiros, entre o Porto e a Ásia (1580-1640), Tempo, v. 22, n. 39, p.88-109, abr. 2016; Conectando vivos e mortos nos territórios da expansão ibérica: religião e ritual entre os doares da Misericórdia do Porto (1500-1700). In: HERMANN, Jacqueline; MARTINS, William de Souza (Orgs.). Poderes do Sagrado: Europa católica, América Ibérica, África e Oriente portugueses (séculos XVI-XVIII). Rio de Janeiro: Multifoco, 2016, p.111-138. Outros textos, inclusive com diferentes temáticas, tem atualmente mobilizado as pesquisas de Guimarães Sá: Rainhas e cultura escrita em Portugal (séculos XV-XVI). In: GANDELMAN, Luciana; GONÇALVES, Margareth de Almeida; FARIA, Patrícia Souza de (Orgs.). Religião e linguagem nos mundos ibéricos: identidades, vínculos sociais e instituições. Seropédica: UFRRJ, 2015, p.169-180; Os rapazes do Congo: discursos em torno de uma experiência colonial (1480-1580). In: ALGRANTI, Leila; MEGIANI, Ana Paula Torres (Orgs.). O Império por escrito: formas de transmissão da cultura letrada no mundo ibérico, séculos XVI-XIX. São Paulo: Alameda, 2009, p.313-332.

2Em Portugal, estudos sobre os papéis, funções e atuações das Santas Casas de Misericórdias são profícuos e continuam a florescer. Ao lado da própria Isabel dos Guimarães Sá, merecem menção as pesquisas de ARAÚJO, 2018ABREU, 2017 e LOPES, 2010.

3Sobre os significados das pesquisas com essa metodologia, VARGAS, Jonas Moreira. “Rastreando Indivíduos e Redes de Relações”: algumas contribuições teóricas e metodológicas para o estudo das elites e grupos dirigentes no Brasil. In: SOARES, Fabrício Antônio; SILVA, Ricardo Oliveira da (Orgs.). Diálogos: estudos sobre teoria da história e historiografia. Vol. II. Criciúma: Unesc, 2017, p.133-165; BULST, Neitard. Sobre o objeto e o método da prosopografia, Politeia, V. 5, n. 1, p.47-67, 2005.

4Embora a autora não faça referência direta ao trabalho de Peter Burke (1991) sobre as mudanças e semelhanças no estilo de vida, atitudes e valores das elites de Veneza e Amsterdã no século XVII, existem dialogias entre as abordagens de ambos.

5Para a misericórdia do Porto, a autora dialoga com dois historiadores “da instituição”: Artur Magalhães Basto e Eugénio de Andrea da Cunha Freitas, além de uma vasta historiografia, especialmente portuguesa e brasileira.

Referências

ABREU, Laurinda. Misericórdias, Estado Moderno e Império. In: PAIVA, José Pedro (coord.). Portugaliae Monumenta Misericordiarum. Vol. 20. Lisboa: União das Misericórdias Portuguesas, 2017, p.245-277. [ Links ]

ARAÚJO, Maria Marta Lobo de (org.). As sete obras de Misericórdia corporais nas Santas Casas de Misericórdia (séculos XVI-XVIII). Braga: Santa Casa de Misericórdia de Braga, 2018. [ Links ]

BULST, Neitard. Sobre o objeto e o método da prosopografia. Politeia, V. 5, n. 1, p.47-67, 2005. [ Links ]

BURKE, Peter. Veneza e Amsterdã: um estudo das elites do século XVII. São Paulo: Brasiliense, 1991. [ Links ]

GRUZINSKI, Serge. As quatro partes do mundo: história de uma mundialização. Trad. Cleonice Mourão e Consuelo Santiago. Belo Horizonte/São Paulo: UFMG; Edusp, 2014. [ Links ]

LOPES, Maria Antónia. Protecção Social em Portugal na Idade Moderna. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2010. [ Links ]

VARGAS, Jonas Moreira. “Rastreando Indivíduos e Redes de Relações”: algumas contribuições teóricas e metodológicas para o estudo das elites e grupos dirigentes no Brasil. In: SOARES, Fabrício Antônio; SILVA, Ricardo Oliveira da (Orgs.). Diálogos: estudos sobre teoria da história e historiografia. Vol. II. Criciúma: Unesc, 2017, p.133-165. [ Links ]

Mauro Dillmann – Departamento de História Universidade Federal de Pelotas Rua Alberto Rosa, 154, Pelotas, RS, 96.010-610, Brasil [email protected].

Portugal em transe. Transnacionalização das religiões afro-brasileiras: conversão e performance – PORDEUS JÚNIOR (VH)

PORDEUS JR. Ismael de A. Portugal em transe. Transnacionalização das religiões afro-brasileiras: conversão e performance. Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais, 2009, 168 p. Resenha de: SANTOS, Milton Silva dos. Varia História. Belo Horizonte, v. 27, no. 46, Jul. /Dez. 2011.

Os portugueses, assim como os brasileiros, estão familiarizados desde antanho com rezas, mezinhas, bruxedos, simpatias, previsões, promessas, ex-votos e toda sorte de amuletos capazes, creem muitos, de afastar malefícios e infortúnios. Isto bastaria para evitar o assombro a quem recebesse a inédita notícia de que na terra de Camões também há diversos terreiros (ou “macumbas”, diriam outros sem pudor) frequentados por lusitanos em busca de auxílio espiritual e alívio dos estados de aflição causados pela modernidade secular. Este é o cenário de Portugal em transe, livro publicado por Ismael Pordeus Jr., professor titular aposentado da Universidade Federal do Ceará e autor dedicado, há mais de quinze anos, ao estudo da expansão transnacional dos cultos afro-brasileiros nos países da Europa e, principalmente, em Portugal, “onde esse fenômeno encontra-se intrinsecamente relacionado [num primeiro momento histórico] com a migração, sobretudo a migração feminina portuguesa” (p. 9).

Desde então os lusitanos têm multiplicado o número de terreiros onde é possível vivenciar experiências antes desconhecidas, como, por exemplo, a “técnica do transe” mediúnico e suas variadas performances nos cultos afro-brasileiros transnacionalizados para Portugal. Daí o título do livro, que também pode remeter-nos à adoção de formas culturais em “mouvance“, de religiões que pululam na modernidade contemporânea, movimentando e instalando-se em diferentes países. Isso vem ocasionando não só a recomposição do campo religioso português, como também o solapamento do catolicismo, que agora divide espaço com outras orientações religiosas, incluindo as redes neopentecostais brasileiras também de olho nas aflições alheias.

Baseado numa etnografia híbrida e dialógica (Mikhail Bakhtin e Hommi Bhabha), na interpretação e não na explicação (James Clifford) e no intercâmbio entre observador e observado (Vincent Crapanzano), Pordeus Jr. abre espaço aos discursos dos próprios convertidos1 e procura encontrar, nas histórias de vida e nos relatos de conversão, o motivo para a adoção de uma religião oriunda de outro país. Seu universo de pesquisa é composto por aproximadamente vinte terreiros, percorridos ao longo de várias estadias entre os portugueses; a última delas, ocorrida entre 2005 e 2007, originou a publicação ora apresentada. A fim de analisar as formas de atuação religiosa dos novos convertidos, ele evoca Victor Turner e propõe duas categorias, que podemos chamar de descritivas e analíticas. A primeira delas é a performance do tipo “communitas” que resulta em comunidades de adeptos dispostos a receber e a incorporar “um sistema de significados” e “a construir e disciplinar uma identidade comunitária dentro dos valores” peculiares aos cultos luso-afro-brasileiros (p. 27). A segunda é a performance “anticommunitas“, estritamente mágico-religiosa e individual, dos pais e mães-de-santo portugueses e brasileiros que vão a Portugal, por curta temporada, veicular seus serviços especializados em jornais locais e atender suas clientelas nas casas de parentes consanguíneos e/ou religiosos, bem como em espaços alugados para consulta espiritual. Ao contrário da primeira, a segunda categoria não cria comunidades religiosas baseadas em laços sociorreligiosos.

A partir desse quadro teórico-metodológico delineado no capítulo um (e retomado no final do segundo) é possível acompanhar os depoimentos, identificando neles as performances “de todos aqueles que dizem e fazem as religiões luso-afro-brasileiras em Portugal” (p. 15). Dentre esses performers encontram-se Fernanda e Georgete, as “irmãs precursoras” da “nova religião”, e Mãe Virgínia Albuquerque, que fundou a primeira “casa luso-afro-brasileira com certeza”2 em 1974, ano em que a “Revolução dos Cravos” pôs fim à ditadura de Marcello Caetano, sucessor de Salazar. Essas três mulheres emigraram para o Brasil em meados de 1950, mas retornaram para Lisboa, duas décadas depois levando, na bagagem, a umbanda, “uma religião brasileira”.3 Seus relatos de conversão, assim como os depoimentos de suas filhas-de-santo portuguesas, são muito semelhantes. Através de parentes, amigos, anúncios de jornal, etc., elas acorreram aos terreiros a fim de solucionar problemas familiares, espirituais ou “dificuldades de saúde em consequência dos guias” (p. 33).

Além dessas sacerdotisas pioneiras, existem outros pais e mães-de-santo que atuam “além de Lisboa”, ou seja, em Sintra, Mafra, Cadaval, Coimbra, Porto e noutras cidades. Seus depoimentos reunidos nos capítulos três e quatro evidenciam, pode-se dizer, a segunda fase de expansão dos cultos luso-afro-brasileiros, que ocorreu, mais intensamente, na última década do século passado, período no qual alguns brasileiros desembarcaram em Portugal e lá se instalaram como sacerdotes. Dentre os brasileiros ouvidos por Pordeus Jr. estão o cearense Pai Cláudio – “Terreiro de Umbanda Caboclo Nharauê”, fundado em 2002 -, que se diz responsável por uma “rede” de três terreiros, sessenta médiuns e cerca de “200 filhos e filhas de fé” (p. 73); o pernambucano Pai Arnaldo, que viveu em Madrid (Espanha), onde dirigia um terreiro de candomblé e jurema, antes de migrar e fundar um novo terreiro na cidade portuguesa de Cadaval; o “juremeiro” Josenildo, também natural de Pernambuco, amigo e auxiliar de Pai Arnaldo; e a Mãe Virgínia de Mafra, natural do Espírito Santo, a única mãe-de-santo de nacionalidade brasileira encontrada pelo autor, dirigente da “Casa de Caridade Maria de Nazaré”, inaugurada em 2007. Outros terreiros também foram fundados na mesma década em que Portugal promulgou, em 2001, a Lei de Liberdade Religiosa.

Se os processos de transnacionalização afro-religiosa comportam “a criação e não simplesmente a repetição” (p. 141), no penúltimo capítulo da obra é possível conhecer a primeira “entidade genuinamente portuguesa”, o Marinheiro Agostinho, um marujo nascido numa localidade perto de Peniche, uma tradicional região de pesca portuguesa. Incorporado numa sessão dirigida por Pai Cláudio, performance cambaleante e típica de alguém não habituado à terra firme, Agostinho narra sua biografia de pescador e fala de suas viagens pelo Brasil durante uma longa “entrevista (…) entrecortada de risos” (p. 144). Diz que nasceu em 1874 e que morreu no mar, naufragado no álcool. Aliás, a bagaceira, “líquido de ouro”, do lado de lá, e a cachaça, o rum ou a cerveja, do lado de cá, são bebidas rituais sem as quais a “linha” da marujada ébria não trabalha. Antes de “subir” ou morrer, Marinheiro Agostinho já havia conhecido o catimbó (culto afro-ameríndio) em Sergipe e a umbanda, tendo sido doutrinado para “trabalhar no astral” (p. 144).

Tal criatividade pode provocar a ampliação e a reordenação do panteão de entidades cultuadas cujos perfis imitam ou se aproximam dos perfis sociais de alguns personagens e tipos populares e regionais, como o marujo Agostinho. Certas ressemantizações ou adaptações estimulam a aceitação das religiões afro-americanas em países cujas populações reconhecem nos guias e orixás os atributos associados aos santos da Igreja. Esse é um dos caminhos para se compreender a adesão transnacional aos cultos afro-brasileiros, conforme revela Pordeus Jr. no conclusivo capítulo sete.

Graças às pistas que abre, é inevitável sair deste “ensaio”, conforme define seu autor, sem interrogações. A propósito, convém perguntar: em razão das disputas por espaço e reconhecimento na esfera pública, as performances “communitas” dos pais e mães-de-santo portugueses vêm originando laços de solidariedade extrarreligiosa entre os seguidores e as casas de culto? Como os peregrinos-convertidos interpretam o processo de conversão? Se sentem abrasileirados e/ou africanizados pela fé? Será que estão adotando as novas religiões e descartando as identidades religiosas herdadas através das gerações? Ou se posicionam como dúplices religiosos, isto é, indivíduos que optam pelo continuum, conjugando, na vida cotidiana, as cerimônias católicas e os ritos de terreiro?

Se considerarmos especialmente o quinto capítulo onde o autor descreve as “interritualidades” da “linha das capelas”4 e do rito do “lava-pés”,5 podemos concluir que os portugueses em transe estão compatibilizando, aqui e ali, diferentes sistemas de crenças cada vez mais procurados e acessíveis no luso mercado de bens mágico-religiosos.

Em se tratando de acessibilidade, no caso desta edição – de fácil leitura e atraente tanto para especialistas em história, antropologia e ciências da religião quanto para os demais leitores interessados nos trânsitos religiosos entre Brasil e Portugal – há um glossário de termos religiosos, entre os quais a curiosa e lusitana expressão “bruxedo da intrusa”. A edição ficaria ainda mais interessante se reunisse imagens do trabalho de campo, ou melhor, dos terreiros visitados, das cerimônias públicas observadas, etc., e dos adeptos-narradores para os quais a obra foi dedicada.

1 Cit. HERVIEU-LÉGER, Danielle. A religião despedaçada: reflexões prévias sobre a modernidade religiosa. In: O peregrino e o convertido: a religião em movimento. Petrópolis: Vozes, 2008, p.31-56. Pordeus Jr. baseia-se em dois modelos descritivos ideais, a saber: o peregrino, que trilha um caminho espiritual individual, e o convertido, que escolhe a sua própria família e pertença religiosas. Em se tratando das religiões luso-afro-brasileiras, ele funde os dois modelos e propõe um terceiro, o do peregrino-convertido. Este, vindo “de outras práticas religiosas, passa por experiências em outros credos, deambula no campo religioso e converte-se a uma religião onde encontraria uma resposta para os seus problemas”. HERVIEU-LÉGER, Danielle. A religião despedaçada: reflexões prévias sobre a modernidade religiosa, p.68.
2 PORDEUS Jr., Ismael. Uma casa luso-afro-brasileira com certeza: emigrações e metamorfoses da umbanda em Portugal. São Paulo: Terceira Margem, 2000.
3 CONCONE, Maria Helena Vilas Boas. Umbanda: uma religião brasileira. São Paulo: FFLCH/USP, CER, 1987.
4 Pessoas que trabalham em capelas de Lisboa, realizando também trabalhos de umbanda.
5 Rito realizado por Mãe Virgínia Albuquerque numa Sexta-Feira Santa. O mesmo está relacionado à Última Ceia, momento em que Cristo lava os pés dos Apóstolos. Na umbanda lisboeta de Mãe Virgínia é o preto velho, espírito tido como humilde e caridoso, quem “lava cada pé da pessoa, enxuga-o e faz uma cruz na parte de cima do pé com pemba” (p. 110).

Milton Silva dos Santos – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, UNICAMP. Rua Cora Coralina, s/nº, Campinas. São Paulo. 13083-896. [email protected].

A invenção de Goa: poder imperial e conversões culturais nos séculos XVI e XVII – XAVIER (H-Unesp)

XAVIER, Ângela Barreto. A invenção de Goa: poder imperial e conversões culturais nos séculos XVI e XVII. Lisboa, Imprensa de Ciências Sociais, 2008. Resenha de: MOURA, Denise A. Soares de. História [Unesp] v.28 no.1 Franca  2009.

Em A invenção de Goa, Ângela Barreto Xavier discute a experiência monárquica portuguesa no sul da Índia como um processo de tensões, confrontos e acomodações entre colonizadores e colonizados entre os séculos XVI e XVII.

As quase 500 páginas de sua consistente pesquisa em arquivos de Portugal, Itália e Índia, resultado de sua tese de doutorado defendida no Instituto Universitário Europeu, estão divididas em sete capítulos.

A narrativa, construída através da interpretação de documentação administrativa, jesuítica e do Santo Ofício articula o projeto e as ações imperativas do colonizador com as de criação e resistência dos colonizados. Dos capítulos 1 ao 4, são apresentados e discutidos os êxitos da presença portuguesa nas aldeias de Goa, através da aliança que existiu entre a Coroa e as ordens missionárias jesuíticas e franciscanas. A ação criativa e a resistência sutil e violenta das populações indianas às imposições da ordem metropolitana são tratadas entre os capítulos 5 e 7.

O primeiro capítulo, intitulado “Reforma do reino, reforma no império” critica a tese da historiografia portuguesa que defende a crise e decadência do império asiático português no período 1530-40 e discute uma das diretrizes metodológicas do livro de que o fortalecimento do aparelho político-administrativo do reinado de D. João III serviu para implantar um modelo de relacionamento político mais imperativo no Estado da Índia.

Uma aliança político-religiosa, comum em várias unidades políticas européias da época, teria conservado o poder imperial e promovido a cristianização das sociedades coloniais, substituindo antigas ligações sociais comunitárias e horizontais por laços verticais próprios da relação súditos e autoridades.

Para Ângela Xavier, o traçado político centralizado do Estado da Índia envolveu a conversão e evangelização sistemática das populações locais. No Reino, estaria ganhando evidência o modelo imperial romano, desenhado em suas paredes e cantado por poetas e cronistas.

Este primeiro capítulo é concluído com a idéia de que os territórios do que seria Goa foram os primeiros a experimentar esta atitude centralizadora e imperial, através da constituição de tombos, forais e da implantação de redes de fortificação.

Em “Traças para a conversão”, capítulo seguinte, a ação conjunta entre Monarquia e Igreja aparece através dos projetos de evangelização sustentados pela Coroa e implantados por missionários jesuítas e franciscanos.

Para evitar a islamização do território e combater as práticas religiosas tradicionais, houve a catequização pelo medo, com a introdução da Inquisição, a perseguição à religiosidade tradicional e a promoção da separação física entre cristãos e não convertidos. A ordem religiosa local foi destruída fisicamente e em seu lugar foram edificadas instituições cristãs, como a Confraria da Santa Fé, o seminário e colégio homônimos, a Casa dos catecúmenos.

Vários mecanismos de persuasão também foram implantados, como a construção de edifícios de culto cristão, o aperfeiçoamento da formação dos convertidos locais e do clero, a concessão de privilégios para convencer os indianos à conversão – como restrição do exercício de alguns ofícios apenas aos cristãos – concessão de terras em mercê aos convertidos, atribuição de capacidades jurídicas e autonomia econômica às mulheres convertidas – algo impensável na ordem social em que nasceram.

Mas, como escreveu a autora, entre portugueses estabelecidos localmente – os casados – e entre os brâmanes – .o grupo da elite local -, existiram vozes contrárias ao processo de conversão dos indianos.

O dilema histórico português de dividir poderes e fazer alianças para erguer um Império é discutido no capítulo 3, “Novos templos e novos sacerdotes”. A Companhia de Jesus e os franciscanos receberam da Coroa portuguesa e conquistaram junto às elites locais tamanho poder político, econômico, administrativo e judicial que, segundo a autora, quando o Estado da Índia vivia uma situação de fragilidade financeira, os conventos estavam acumulados de bens materiais, o que interferia nos índices demográficos e de fecundidade local por atraírem os habitantes das aldeias.

Mesmo os êxitos do trabalho missionário de intervenção nos costumes, na estrutura das famílias, na rotina de trabalho, na festas, na concepção de tempo e organização do espaço físico das comunidades locais e na implantação de uma estrutura de vigilância, punição e premiação, não impediram que a Monarquia portuguesa, a partir do século XVII, entrasse em atrito com os párocos locais e regulares e procurasse diminuir os amplos poderes alcançados pelas ordens missionárias.

Tarefa difícil, sabendo-se que, como mostra o capítulo 4, foram a Igreja e as ordens missionárias que forneceram os dispositivos essenciais da cristianização, base de sustentação do Império. Através da articulação confraria-misericórdia-colégio-hospital, franciscanos e jesuítas, nas suas diferentes concepções, interferiram na sensibilidade e na formação goesa. A caridade, educação, pregação, comunhão e confissão eram vistas como formas de ampliação do rebanho cristão.

O capítulo 5 inventaria os comportamentos dos agentes cristãos e das populações das aldeias da ilha de Chorão em relação à conversão e cristianização. Do lado dos convertidos, destacam-se o pragmatismo, visando tirar proveito da nova ordem em termos hierárquicos, ascensão, preservação do status e obtenção de privilégios.

Parcelas da população local convertiam-se, mas continuavam praticando clandestinamente sacrifícios e rituais próprios da sua tradição. A população local também protagonizou fugas e rebeliões, recebendo como resposta dos religiosos a aplicação da violência aos que recusavam a conversão, e a gratificação aos que aderiam ao cristianismo.

Em outros povoamentos locais, especialmente os da periferia de Goa, a resistência ocorria através da violência explícita, com assassinatos rituais de jesuítas e motins, como demonstra o capítulo 6. A autora pondera, contudo, que o prestígio e o poder alcançado por muitos destes missionários deu-lhes autoridade para promover estas manifestações de franca oposição à Coroa portuguesa.

O capítulo 7 incursiona pelo campo da memória histórica das elites nativas, mostrando como, na disputa pela condição de intermediador entre ordem imperial e local, elas se apropriaram e aplicaram à sua história o discurso de honra e nobreza do colonizador.

Um dos aspectos mais positivos da obra é a recuperação que faz da centralidade política da Coroa portuguesa, evidenciando-a, ao mesmo tempo em que esta abordagem não implica em desconsiderar o desenvolvimento político das populações e territórios que fizeram parte desta monarquia.

No conjunto da historiografia portuguesa que vem problematizando questões relativas ao estado e ao poder, este livro representa a revisão da imagem de Império descerebrado, surgida a partir do tipo de leitura que foi feita das pesquisas e interpretações realizadas por Antonio Manoel Hespanha para o século XVII1.

Dentre as várias contribuições do livro nesse aspecto, merece ser destacado que a própria existência de instâncias institucionais de comunicação e arbitragem nas partes de Goa, como o Conselho Ultramarino e os tribunais da inquisição, e o uso que a elite colonial fazia deles para petições, requerimentos e julgamentos denota a condição de árbitro legítimo que os colonos – casados ou elite local – da Índia atribuíam à Coroa portuguesa.

Das várias partes territoriais que compuseram a monarquia portuguesa, no atlântico ou no índico, nada funcionou desvinculado de um eixo central, como demonstra a própria malha institucional, administrativa ou fiscal, que unia e fazia funcionar estas partes.

A resistência e os processos autônomos existiram, como bem interpreta a autora, e ainda assim tiveram consistências muito diferentes num mesmo território, como no caso de Goa ou das aldeias em seus arredores, ambiente de conflitos mais intensos contra o projeto de cristianização da Coroa e dos missionários.

Dentre os que investigaram a história da Índia, o livro de Ângela Xavier avança porque não se restringiu a compreender a centralidade de Goa, como fez Catarina Madeira Santos ou Luis Filipe Thomaz, mas voltou-se para o que chama de “Goa rural” (p. 20), para as aldeias ao seu redor, que ao consentirem viver sobre o poder da Coroa portuguesa, refizeram sua própria identidade, participaram e asseguraram a existência da monarquia.

Recusando a abordagem orientalista presente em muitos trabalhos de origem indiana, a autora focaliza a população local da Índia, especialmente as elites, mostrando seu papel ativo na construção da ordem monárquica.

Diante desta abordagem, ao invés de um cortejo de ações violentas do colonialismo português ou de resistência goesa, o leitor se vê diante de uma realidade mais criativa, ativa, que faz uso de uma sociedade e cria relações novas, sem abolir a tradição e a partir das oportunidades abertas pela condição de colônia de uma metrópole portuguesa.

Esse quadro às vezes parece em desacordo com o vocabulário da autora, que poderia ter buscado expressões mais ponderadas. Hegemonia passa uma idéia de supremacia e totalidade que não corresponde ao tipo de interpretação que a obra faz da ação colonizadora. Neste caso, a idéia de presença, usada por Russell-Wood, ajusta-se mais à experiência monárquica e colonial portuguesa2. Ainda não é clara a expressão “economia de poderes” (p. 274). Embora a autora já a tenha usado em outro texto, escrito com Antonio Manoel Hespanha3, tal expressão merecia no livro uma nota explicativa.

Mais do que uma sólida investigação e reflexão sobre identidades, poderes e culturas, A invenção de Goa é uma ferramenta teórico-metodológica para os pesquisadores da Monarquia portuguesa. Sua leitura promete munir os interessados nas problemáticas monárquicas modernas de diretrizes para conceituações mais equilibradas da relação entre as várias porções territoriais da monarquia portuguesa e em outros campos, como o da história econômica e administrativa.

Notas

1 Hespanha, A. M. As vésperas do Leviathan: instituições e poder político. Portugal, século XVII. Coimbra, Liv. Almendina, 1994. Na historiografia crítica destaco apenas Monteiro, Nuno Gonçalo. As reformas na monarquia pluricontinental portuguesa: de Pombal a D. Rodrigo. Texto a ser publicado no Brasil e gentilmente cedido pelo autor para uma leitura prévia. °

2 Russell-Wood, A. J. R. The Portuguese empire: 1415-1808. A world on the movie. Baltimoreand London, The Johns Hopkins University Press, 1992, pp. 21-22.

3 Xavier, Ângela Barreto e Hespanha, António Manoel. In: As redes clientelares. In: Hespanha, António Manuel. História de Portugal: o Antigo Regime (1620-1807). Lisboa, Editorial Estampa, 1992, pp.381-394.

Denise A. Soares de Moura – Professora Doutora – Departamento de História – Faculdade de História, Direito e Serviço Social – UNESP – 14409-160 – Franca – SP – Brasil. E-mail: [email protected].