A Alta Idade Média e suas fontes: reflexões de método | Signum – Revista da ABREM | 2016

A Idade Média não é apenas um período mal conhecido, mas também conhecido de maneira desigual. Seus primeiros séculos constituem, de longe, sua porção menos explorada. No senso comum, vigoram imagens congeladas que se aplicam, mal e limitadamente, a alguns períodos particulares, sobretudo aos séculos XI-XIV, em que normalmente se considera que já são perceptíveis os sinais da modernidade. Tais desníveis de conhecimento resultam tanto da limitação numérica dos testemunhos escritos quanto dos vestígios da cultura material. No entanto, há razões de maior importância.

A partir do surgimento da História Científica, no século XIX, o envolvimento da historiografia com diversas formas de compromisso e/ou crítica da modernidade ajudou a colocar na sombra aspectos do passado que não fossem “úteis” às reflexões e às ações em curso. A Alta Idade Média, pelo menos desde o final do século XIX, constituiu um elemento-chave do discurso nacionalista europeu: os eruditos alemães e franceses viram nela o período por excelência de formação de suas nações. Por outro lado, a historiografia francesa da primeira metade do século XX habituou-se a mostrá-la como o fruto da decadência do mundo romano, da corrupção e mesmo do desaparecimento do legado antigo. Havia pouco espaço, em tais interpretações, para um olhar sobre os primeiros séculos da Idade Média em sua especificidade.

Esse cenário sofreu uma transformação sem precedentes nas últimas três décadas. Se, por um lado, o conjunto de fontes escritas disponíveis para o período permaneceu praticamente o mesmo, por outro, assistimos a um movimento de releitura crítica desses textos, ancorado notadamente nas contribuições da antropologia, da sociologia, da arqueologia e da linguística. Boa parte dessas mudanças se deve às pesquisas desenvolvidas no cenário europeu por especialistas da Alta Idade Média oriundos da França, da Itália, da Alemanha, da Inglaterra e da Áustria. Essas pesquisas impõem-se como principal desafio concentrar-se nos elementos constitutivos e originais das sociedades dos séculos V-XI. É o caso, notadamente, do programa Transformation of The Roman World de l’European Science Foundation (1993-1998), do qual participaram Stefano Gasparri (Università Ca’Foscari de Venise), Hans-Werner Goetz (Universität Hamburg), Régine Le Jan (Université Paris I), Cristina La Rocca (Università di Padova) e Rosamond McKitterick (University of Cambridge). Os membros desse programa ampliaram em seguida sua colaboração e se engajaram em uma pesquisa coletiva intitulada Transferts patrimoniaux en Europe occidentale (VIe-XIe siècle) (1999-2002), que associou universidades francesas (Lille 3, Paris I, Valenciennes e Marne-La- Vallée), italianas (Padova e Veneza), a Universidade de Hamburgo e a École Française de Rome. A partir desse programa foi lançada a pesquisa sobre as elites na Alta Idade Média, em 2003. Em 2010, foi lançado o projeto coletivo sobre a competição na Alta Idade Média, do qual fazem parte medievalistas franceses, alemães, italianos e ingleses.

A renovação dos estudos medievais, sobretudo no que diz respeito à Alta Idade Média, tem mostrado as limitações e preconceitos explicativos presentes nos pontos de vista tradicionais e, da mesma forma, sugerido mudanças na maneira de conceber problemas tradicionalmente associados à modernidade, como o surgimento do Estado e das formas modernas de governo, a economia e a racionalidade etc. Tais mudanças tornam urgente a reflexão sobre as especificidades desse campo de estudos, de sua documentação e dos métodos oportunos para sua abordagem. Ao exigir uma metodologia que capacite a leitura e a análise de uma documentação pouco numerosa e lacunar, que se constitui num desafio tanto ao método quanto à nossa sensibilidade para formas políticas e sociais específicas, a história da Alta Idade Média nos ajuda a aprimorar os instrumentos teóricos e metodológicos, bem como a perspectiva crítica a respeito do presente. É a esse domínio que está dedicado o dossiê A Alta Idade Média e suas fontes: reflexões de método.

O artigo que abre este dossiê, de autoria de Régine Le Jan, apresenta, em linhas gerais, as principais mudanças que ocorreram, nos últimos anos, na relação dos historiadores medievalistas com suas fontes. Resultado da crise que atingiu em cheio as ciências humanas durante as duas últimas décadas, devido em grande parte ao recuo das grandes ideologias, essas mudanças conduziram os historiadores a colocar em questão sua própria disciplina e sua maneira de escrever a história. Interessa à autora mostrar como, privado de suas referências tradicionais, tendo consciência de que utiliza modelos que ele nem sempre domina, bem mais crítico que seus predecessores em relação às suas fontes e a seu próprio trabalho, o historiador foi obrigado a delimitar seu objeto, para construir após desconstruir.

“As leis bárbaras: objetos da história e da historiografia”, artigo de Sylvie Joye, discute os contextos e as motivações de escrita dessas leis. A autora pretende, assim, esboçar ao mesmo tempo um retrato desses textos e da historiografia que lhes é pertinente, para analisar a forma como os historiadores modernos e como os legisladores antigos interpretaram os documentos normativos.

Néri de Barros Almeida, em “História e conflito no De correctione rusticorum”, discute, a partir da consideração dos elementos formais desse texto, o público ao qual ele foi dirigido, bem como os objetivos visados por seu percurso argumentativo. A autora procura mostrar que, ao invés da lógica do conflito cultural sob a qual foi muitas vezes abordado, o De correctione rusticorum é testemunho de uma pastoral centrada na percepção histórica do tempo e que a referência que faz às superstições está subordinada a este imperativo.

Em seu artigo intitulado “Um depósito sagrado? A inserção dos atos judiciais nos livros santos da Alta Idade Média (séculos IX-XI)”, Laurent Jégou analisa a presença de atos judiciários ou extrajudiciários nos textos escriturísticos e patrísticos, e, sobretudo, nas Bíblias compostas entre os séculos VI e XI. Laurent Jogou procura demonstrar que os eclesiásticos fizeram transcrever intencionalmente as decisões judiciais ou extrajudiciais nos códices de grande valor. Eles esperavam, assim, assegurar a conservação, preservar a memória da ação jurídica que era registrada e, sobretudo, colocar essa ação sob o selo do sagrado, a fim de garantir a execução.

Em “O corpus documental para o estudo do reino suevo: possibilidades e limites de uma abordagem histórica”, Leila Rodrigues da Silva discute o axioma da escassez de documentos, desenvolvido pela historiografia que marcou as décadas de 1950 e 1960. A autora discute três questões principais: a delimitação do corpus documental face aos interesses prévios da investigação; a identificação e a inserção de tal corpus em uma dada conjuntura; finalmente, a circunscrição do conjunto de referenciais e pressupostos teóricos.

Em “As ‘fontes’ literárias nas chancelarias do século VI: ornamento cultural ou arma política?”, Stéphane Gioanni aborda dois gêneros, em particular o elogio e a biografia narrativa, que manifestam a fidelidade dos dictatores medievais aos gêneros literários da Antiguidade profana. Para tanto, analisa dois exemplos hagiográficos da Itália ostrogoda, nos primeiros anos do século VI. Além disso, procura determinar as funções – ornamentais, mas também políticas e diplomáticas – dos reempregos literários em alguns textos célebres da chancelaria autrasiana (por volta dos anos 570-580).

Em seu artigo intitulado “Quando a traição torna-se uma enfermidade: a infidelidade política e a prática do morbo gothorum no reino hispano-visigodo de Toledo (século VII)”, Renan Frighetto discute as tentativas de usurpação do poder régio por parte de segmentos aristocráticos e nobiliárquicos rivais ao rei, de que foi palco o reino hispano-visigodo de Toledo ao longo do século VII, bem como suas interpretações na historiografia. Esta tendência à traição, com a ruptura dos juramentos de fidelidade prestados ao rei, denominada como o morbo gothorum, aparece nas fontes como uma autêntica “enfermidade política” que enfraqueceu a instituição monárquica hispanovisigoda, levando o regnum gothorum à confrontação interna e ao desaparecimento.


Organizador

Marcelo Cândido da Silva – Professor de História Medieval da Universidade de São Paulo (USP), Coordenador do Laboratório de Estudos Medievais (LEME) e Pesquisador do CNPq.


Referências desta apresentação

SILVA, Marcelo Cândido da. Apresentação. Signum- Revista da ABREM, v. 17, n. 1, p.1-4, 2016. Acessar publicação original [DR]

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