Perspectivas recentes da História Medieval no Brasil / Revista Brasileira de História / 2016

Muito embora os estudos medievais no Brasil não possuam longa tradição, uma observação mais atenta mostra que seu desenvolvimento acompanhou de perto a institucionalização dos estudos históricos no país. Exemplo significativo disso é que a reunião que deu origem à Anpuh – a Associação Nacional dos Professores Universitários de História (atual Associação Nacional de História) -, acontecida em 1961 na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Marília, foi um momento decisivo também para os estudos medievais. Eurípedes Simões de Paula, professor da Universidade de São Paulo e autor da primeira Tese de Doutorado em História defendida no Brasil, um trabalho na área de História Medieval, coordenou a discussão, cujo resultado foi a veemente e unânime defesa da especialização como condição necessária à interação efetiva entre ensino e pesquisa. Entendia-se que formar medievalistas, inclusive incentivando estágios em centros de excelência no exterior, significava sustentar a importância do próprio conhecimento histórico no país.

As moções aprovadas em Marília por representantes das principais instituições de ensino e pesquisa histórica brasileiras dependiam, para se efetivar, de repercussão na política nacional de ciência e tecnologia. Essa repercussão foi conquistada, mas levou tempo até sua efetivação. A separação entre a História Antiga e a História Medieval permaneceu algo raro nas universidades públicas ou privadas até o final dos anos 1970 – como também era raro encontrar especialistas dessas áreas ministrando as respectivas disciplinas. Foi somente a partir dos anos 1990 que o Brasil passou a contar com um número considerável de centros de formação de Mestres e de Doutores; foi também a partir desse período que as instituições de fomento puderam acompanhar de forma mais efetiva as demandas decorrentes do crescimento da Pós-Graduação.

Desde então, assistimos à ampliação considerável dos grupos de pesquisa, à diversificação das temáticas abordadas e a um aumento sem precedentes do número de pesquisadores na área de História Medieval. Os setenta programas de Pós-Graduação atualmente existentes na área de História – cerca de metade deles estabelecida nos últimos 10 anos – permitiram que se criasse um ambiente cada vez mais favorável à pesquisa em História Medieval e à formação de medievalistas. Essa expansão dos estudos medievais explica o aparecimento recente de uma série de balanços sobre a área. Artigos, e mesmo um livro, procuraram refletir sobre os estudos medievais no Brasil, contrapondo passado e futuro das pesquisas e do ensino e estabelecendo perspectivas para sua inserção social.[1]

Nossa intenção com este dossiê é bastante distinta. Não se trata de olhar para o que já foi feito, mas de oferecer ao leitor um panorama da pesquisa recente na área de História Medieval no Brasil. É claro que não se trata de um panorama completo, o que exigiria – felizmente, diga-se de passagem – um espaço bem maior do que o de um dossiê. Trata-se aqui de apresentar, efetivamente, alguns resultados desse futuro presumido pelos balanços realizados. Os textos aqui reunidos mostram a pujança temática da área, a atualidade de seu diálogo com as ciências sociais e a persistência de sua autocrítica.

“A Cronaca di Partenope e o Reino de Nápoles: contribuições de e para a historiografia brasileira no século XXI”, artigo de Igor Teixeira, propõe um estudo do Ms. Italien 301 Cronaca di Partenope, levando em conta o acesso digital aos manuscritos e as habilidades necessárias para a análise, procurando responder à questão: “Em que este estudo pode contribuir para os estudos medievais no Brasil?”.

Em seu artigo, intitulado “Algumas experiências, perspectivas e desafios da Medievalística no Brasil frente às demandas atuais”, Aline Dias da Silveira discute alguns dilemas das pesquisas brasileiras na área de História Medieval, bem como a originalidade de seu olhar sobre a historiografia europeia.

Em “Uma calamidade insaciável: espaço urbano e hegemonia política em uma história dos incêndios (880-1080)”, Leandro Rust dedica sua atenção aos incêndios que devastaram os espaços urbanos do Regnum Italicum nesse período de 200 anos. O autor questiona as interpretações tradicionais que ou naturalizam essas ocorrências como fatalidades ou acidentes, ou buscam explicá-las como epifenômenos de uma suposta desordem feudal. Para Leandro Rust, o aparecimento documental dos incêndios teria raízes políticas.

Maria Filomena Coelho, em seu artigo “Cartas políticas da Dinastia de Avis: a arte de ditar o bem comum (século XV)”, pretende analisar algumas cartas escritas no século XV por personagens-chave da dinastia de Avis, a partir da noção de “cultura política”. Essa noção permite que a análise vá além da retórica, tal como era tradicionalmente entendida a epistolografia, permitindo ao historiador compreender uma trama discursiva complexa, que, embora pareça seguir fórmulas, não deixa de atender às circunstâncias e aos casuísmos da política, mas, sobretudo, que propõe e evoca valores políticos, como o do bem comum.

Esperamos, com este dossiê, apresentar algumas pesquisas que são, em última instância, o resultado da especialização e da institucionalização dos estudos medievais no Brasil. E, assim, divulgá-las não apenas a colegas e a estudantes que desejam aproximação com a área, mas também àqueles que, confiantes em que a pujança dos estudos humanos e sociais repousa no diálogo e no entendimento mútuo, estão interessados em estabelecer novas interlocuções.

Nota

1. ALMEIDA, 20082012BASTOS; RUST, 2009COELHO, 2006FRAZÃO, 2013MACEDO, 2003RIBEIRO, 2001.

Referências

ALMEIDA, Néri de B. La formation des médiévistes dans le Brésil contemporain: bilans et perspectives (1985-2007). Études et Travaux. Bulletin du Centre d’Études Médiévales d’Auxerre (BUCEMA), v.12, p.145-159, 2008. Disponível em: http: / / cem.revues.org / 6652. [ Links ]

______. L’histoire médiévale au Brésil: du parcours solitaire à l’inclusion dans le champ des sciences humaines, In: ALMEIDA, Néri; CÂNDIDO DA SILVA, Marcelo; MEHU, Didier. Pourquoi étudier le Moyen Âge? Les médiévistes face aux usages sociaux du passé. Paris: Publications de la Sorbonne, 2012. p.125-143. [ Links ]

BASTOS, Mario J.; RUST, Leandro. “Translatio Studii”. A História Medieval no Brasil. Signum, n.10, p.163-188, 2009. [ Links ]

COELHO, Maria Filomena. Breves reflexões acerca da História Medieval no Brasil. In: SILVA, Leila Rodrigues (Dir.) Atas da VI Semana de Estudos Medievais do Programa de Estudos Medievais da UFRJ. Rio de Janeiro: PEM, 2006. p.29-33. [ Links ]

FRAZÃO, Andreia. Os estudos medievais no Brasil e o diálogo interdisciplinar. Medievalis, v.1, n.2, p.1-15, 2013. [ Links ]

MACEDO, José Rivair. Os estudos medievais no Brasil: catálogo de teses e dissertações. Porto Alegre: UFRGS, 2003. [ Links ]

RIBEIRO, Maria Eurydice B. Os estudos medievais no Distrito Federal. In: MALEVAL, Maria do Amparo T. (Dir.) Atas do III Encontro Internacional de Estudos Medievais. Rio de Janeiro: ágora, 2001. p.155-158. [ Links ]

Marcelo Cândido da Silva – Universidade de São Paulo (USP), Laboratório de Estudos Medievais (LEME). São Paulo, SP, Brasil. Professor de História Medieval da USP, Coordenador do Laboratório de Estudos Medievais (LEME) e Pesquisador do CNPq E-mail: [email protected]

Néri de Barros Almeida – Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Núcleo Unicamp do Laboratório de Estudos Medievais (LEME). Campinas, SP, Brasil. Professora de História Medieval da Unicamp, Coordenadora do Núcleo Unicamp do Laboratório de Estudos Medievais (LEME). E-mail: [email protected]


SILVA, Marcelo Cândido da; ALMEIDA, Néri de Barros. Apresentação. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.36, n.72, mai. / ago., 2016. Acessar publicação original [DR]

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A Alta Idade Média e suas fontes: reflexões de método | Signum – Revista da ABREM | 2016

A Idade Média não é apenas um período mal conhecido, mas também conhecido de maneira desigual. Seus primeiros séculos constituem, de longe, sua porção menos explorada. No senso comum, vigoram imagens congeladas que se aplicam, mal e limitadamente, a alguns períodos particulares, sobretudo aos séculos XI-XIV, em que normalmente se considera que já são perceptíveis os sinais da modernidade. Tais desníveis de conhecimento resultam tanto da limitação numérica dos testemunhos escritos quanto dos vestígios da cultura material. No entanto, há razões de maior importância.

A partir do surgimento da História Científica, no século XIX, o envolvimento da historiografia com diversas formas de compromisso e/ou crítica da modernidade ajudou a colocar na sombra aspectos do passado que não fossem “úteis” às reflexões e às ações em curso. A Alta Idade Média, pelo menos desde o final do século XIX, constituiu um elemento-chave do discurso nacionalista europeu: os eruditos alemães e franceses viram nela o período por excelência de formação de suas nações. Por outro lado, a historiografia francesa da primeira metade do século XX habituou-se a mostrá-la como o fruto da decadência do mundo romano, da corrupção e mesmo do desaparecimento do legado antigo. Havia pouco espaço, em tais interpretações, para um olhar sobre os primeiros séculos da Idade Média em sua especificidade. Leia Mais