A cidade que dança: clubes e bailes negros no Rio de Janeiro (1881-1933) | Leonardo Affonso de Miranda Pereira
O livro aqui resenhado é resultado de mais de uma década de pesquisa realizada por meio da lente cuidadosa da história social. O historiador Leonardo Pereira apresenta ao público leitor uma pesquisa sofisticada, com ampla utilização de fontes conhecidas e inéditas, orais e escritas. Combina questões caras ao público especializado que se interessa por cultura, política, trabalho e sociedade, ou seja, pela história complexa da sociedade no sentido atribuído por Eric Hobsbawn.1 É capaz de proporcionar para aquela leitora e aquele leitor que não são versados na ciência histórica elementos fundamentais para compreender como a dança e a música, no seu aspecto vivencial, transformado e recriado por gentes negras de origens populares, tão caras ainda hoje à cidade do Rio de Janeiro, têm uma trajetória que remonta ao fim do regime escravista e, sobretudo, às primeiras décadas da República.
O livro tem um argumento central: foram homens e mulheres negros e negras – trabalhadores e trabalhadoras – que conferiram à cidade do Rio de Janeiro uma atmosfera de movimento proporcionado pela dança, e fizeram-no por meio de seus clubes e bailes. Os seis capítulos, mais a introdução e o epílogo, destrincham toda a movimentação que tornou a dança negra possível e de certo modo vitoriosa. A dança fez com que aquelas pessoas existissem a despeito do cerceamento de suas vidas em decorrência de experiências de classe, gênero e, principalmente, da estigmatização racial por meio de noções ditas científicas que então vigoravam. Aquelas mulheres e aqueles homens dançantes construíram possibilidades para se fazerem percebidas por outros setores da sociedade, com os quais procuraram dialogar. A complexa tessitura de relações sociais no universo dos clubes e bailes populares se impõe ao historiador, sob pena de seguir reforçando a ideia de ausência de sujeitos em um jogo político que tinha bem mais matizes.
Não obstante, as histórias dessas pessoas, seus bailes e clubes, não se reduzem à cidade do Rio de Janeiro, ainda que tenham sido vividas lá. Para compor uma história social do contexto do advento do samba, nos seus diferentes sentidos, o olhar atento do historiador nos permite adentrar histórias que circulavam por outros espaços atlânticos, digamos. Como a epígrafe ao livro, retirada de “AmarElo”, do rapper Emicida,2 ele nos conduz para muito além de meros apêndices ilustrativos: não são histórias em pedaços que Leonardo Pereira nos apresenta, mas histórias de gentes que lutaram por meio dos espaços associativos – de bailes e clubes – para existirem enquanto cidadãs, fazendo-se respeitar em meio a disputas e tensões, nos fazendo compreender esse capítulo importante da história do Brasil.
Desde o início da narrativa, evidencia-se o recorte metodológico em torno dos sujeitos centrais da análise, salientando as estratégias adotadas para identificar as tensões, disputas e lógicas. Fontes documentais foram, em grande medida, produzidas por órgãos de repressão e controle, como a polícia e a justiça e, sobretudo, as crônicas dos letrados nos jornais de grande circulação. O autor destaca que:
Ao invés de simplesmente repetir a perspectiva dos que lançavam sobre esse fenômeno diferentes olhares coercitivos, cabe assim tomar esses registros como meio de compreensão de um processo do qual os sócios dos pequenos clubes da cidade foram sujeitos ativos, tendo feito deles um meio importante de organizar sua própria experiência (p. 19).
No capítulo 1, “Os bailes da Cidade Nova”, o livro lança luzes sobre o processo de aproximação do ideal de modernidade e cosmopolitismo protagonizados por grupos de trabalhadores negros, num franco distanciamento da noção de primitivismo que os rotulava naquele início dos anos 1880. Ele demarca o território do bairro de Cidade Nova, em diálogo com as crônicas que narram o nascimento de gêneros de dança e de música que animavam as recém-criadas associações daquele bairro e de outras regiões, configurando-se numa verdadeira febre associativa. Isso nos permite observar como, ao fim daquela década, os trabalhadores negros de baixa renda já eram, por excelência, associados pela imprensa aos bailes em que a musicalidade dos ritmos atlânticos e do maxixe reinavam.
Naquele momento os batuques, ainda bastante ligados a tambores e percussões, bem como a um rótulo de primitivismo diretamente vinculado ao passado africano, davam lugar, nos salões, às danças de par, polcas e valsas. O autor destaca que, num primeiro momento, essa forma de dançar de origem europeia, que viajou pelo Atlântico, era ensinada em espaços elitistas, mas isso não foi suficiente para manter trabalhadoras e trabalhadores alijados dessa cultura, que aprendiam por meio de folhetos. Não apenas aprenderam a dançar como a executar a nova música, vinda também de outros espaços do mundo afro-atlântico, como o tango e a habanera, de Buenos Aires e Havana, respectivamente.
A circulação dava-se, contudo (ou inclusive), entre grandes sociedades carnavalescas, como pode ser observado no caso do maxixe, que na segunda metade da década de 1880 estava por toda a cidade, embora a imprensa identificasse com a Cidade Nova aquela forma sincopada de dançar, até bem pouco tempo tida como moralmente ofensiva. O autor destaca que:
Consolidava-se, nesse processo, um novo padrão de associativismo dançante. Distantes tanto dos antigos batuques negros quanto das festas elegantes promovidas nos salões frequentados pelas elites da cidade, mas com pontos de contato com ambos (p. 74).
No segundo capítulo, “Uma febre dançante”, Pereira faz uso da imprensa como fonte, principalmente as crônicas acerca da dita febre, bem como dos processos de concessão de licença para o funcionamento das sociedades recreativas, com o objetivo de desvendar a lógica dos trabalhadores dançantes, quanto aos seus motivos, circunstâncias e incentivos. O início do século xx é marcado por uma mudança na linguagem dos jornais, que passam a apontar a relevância, na vida da cidade, dos bailes e clubes negros. Leonardo Pereira dá destaque ao jornalista que ficaria conhecido como Vagalume – de nome Francisco Guimarães, ele mesmo um homem negro oriundo de uma família de trabalhadores –, que escrevia a coluna “Ecos Noturnos” no jornal A Tribuna. Sobre Vagalume, o autor escreve:
Conhecedor do universo social que se propunha a retratar, sua proposta era afirmar a legitimidade daqueles sujeitos, visões de mundo e práticas, de modo a colocá-los em diálogo com círculos letrados, em geral, avessos às práticas e costumes dos trabalhadores da cidade (pp. 87-88).
No entanto, era ainda comum a referência pejorativa aos clubes e bailes nas páginas policiais, onde aparecem como alvos frequentes da repressão policial, o que fazia com que seus membros considerassem importante iniciativas como as de Vagalume e outros cronistas simpáticos àquelas manifestações. Iniciativa comum era a presença de convidados dos jornais nas festas dos clubes, que depois eram relatadas com qualificações como “elegância” e “respeitabilidade”.
Ao analisar as licenças solicitadas anualmente pelas sociedades, indispensáveis para seu funcionamento legal, o autor constata que a Cidade Nova continuava dentro dos limites onde se encontrava a maior concentração delas, a saber, o distrito Santana, que incluía também os bairros da Saúde e a Gamboa. Aponta, ainda, que muitas estavam próximas umas das outras. Fenômeno que, ao longo da primeira década do século XX, se deu em outros distritos, com presença marcante de trabalhadores, e em bairros localizados no entorno de fábricas de tecidos fundadas ainda no século XIX. Nessas licenças estavam os estatutos das sociedades (e não apenas as negras) e por meio destes o autor destaca as desavenças e solidariedades entre os trabalhadores, por vezes de uma mesma região, acentuando suas diferentes nacionalidades e os sentidos atribuídos à identidade de classe que envergavam. Assim, enfatiza um universo de sentidos e lógicas próprios, acobertados sob a denominação de sociedades coirmãs.
O capítulo 3, “As donas do baile”, volta-se para as duas primeiras décadas do século XX, sendo, certamente, o ponto alto do livro de Leonardo Pereira. O capítulo concentra-se na presença feminina nos clubes e bailes, destacando a preocupação que seus promotores tinham com a respeitabilidade, a decência e o decoro familiar, itens que, não raras vezes, compunham a denominação das associações dançantes ou carnavalescas, como a Sociedade Dançante Familiar Democracia e Progresso, Sociedade Dançante Carnavalesca União das Costureiras e Sociedade Dançante Carnavalesca Meninas Vaidosas. Atento às lógicas dos próprios membros, o autor destaca o cuidado com a roupa adequada para frequentar as atividades, objetivando assim combater estereótipos de imoralidade comportamental que existiam contra a população negra. Os órgãos da imprensa, porém, percebiam nisso algo muito distante da pretendida elegância quando o modelo de comparação eram os salões refinados da elite carioca. Não obstante – e essa ressalva é fundamental –, tais ambientes não estavam imunes à lógica patriarcal, cabendo aos homens ditar os termos de decisão e representação familiar. Lógica esta que também foi ponto de contestação e negociação no cotidiano das associações, permitindo-nos observar como as mulheres negras conseguiram se fazer ouvir e, assim, em muito se anteciparam à emergência daquilo que posteriormente eclodiria sob a forma de movimentos feministas.
No capítulo 4, “O forrobodó negro”, seguimos acompanhando as sociedades dançantes na década de 1910, mas no que se diz respeito às suas representações nas páginas da imprensa. Ora a análise trata de peças do teatro ligeiro, que transformavam elementos culturais em objeto, como o dito forrobodó, ora trata de piadas que explicitavam a influência das teorias raciais na formação e divulgação dos preconceitos que circulavam por meio de escritos e ilustrações em revistas e jornais locais. Assim, o autor nos apresenta exemplos do racismo dirigido à parte considerável dos membros das pequenas sociedades dançantes, manifestado também através de representantes do poder público. O racismo era contestado desde dentro, a partir de como os grupos negros criaram imagens positivas sobre si, bem como através das complexas relações que mantinham com a religiosidade de matriz africana e as causas negras. Reafirmavam, desta forma, um lugar de liberdade e humanidade a partir de reelaborações que escapavam à dicotomia tradição- -modernidade, ao mesmo tempo que evocavam continuidades e influências, como é salientado pelo surgimento dos ranchos e a reconfiguração dos ritmos tocados dentro dos salões.
“No ritmo da cidadania” é o quinto capítulo, que inicia apresentando ideias que circulavam na imprensa operária, principalmente de viés anarquista, acerca das sociedades bailantes e carnavalescas. Ideias essas bastante negativas, demonstrando a disputa em torno dos associados, como também dos sentidos atribuídos ao ato de trabalhadores se reunirem em associações daquele tipo. De toda forma, não era isolado o argumento de que a festa refletia e causava a alienação da classe trabalhadora negra, o que é discutido pelo autor por meio da análise centrada na imprensa de grande circulação. Interpretação semelhante já se consolidou na historiografia da classe trabalhadora na Primeira República.
Neste capítulo, elementos antes apresentados paulatinamente são agora mais evidenciados. Refletindo sobre os trabalhadores que frequentavam os clubes e bailes negros, Pereira afirma que, “longe de pensá-los em oposição aos militantes operários, trata-se de analisar como eles fizeram do lazer um canal de afirmação de seus direitos e de sua cidadania” (p. 233). O complexo processo histórico de constituição do baile enquanto um direito, ao longo da década de 1910 e 1920, evidencia tanto as contradições da ordem política republicana em tolerá-lo ou persegui-lo, quanto a transformação da imprensa em arena de disputa acionada por trabalhadores para garantir na justiça a liberdade da festa. Destaca-se, ainda, a importância dos laços de proteção forjados, em grande medida, pela possibilidade de funcionamento das sociedades dançantes, seguindo uma experiência que remontava ao século anterior. Agiam aqueles coletivos negros, por exemplo, como promotores de laços de solidariedade horizontais, acudindo famílias em caso de dificuldades, tal qual as antigas irmandades e sociedades de ajuda mútua. E, externa às associações, verifica-se a atuação de seus membros na defesa dos interesses dos operários, inclusive junto às associações proletárias. Os clubes negros, por vezes, chegaram a abrigar essas associações nas dependências de suas sedes.
Esse tipo de solidariedade em torno da causa e da organização da classe trabalhadora não era meramente casual, ponto destacado pelo autor de forma a preencher o silêncio da historiografia brasileira quanto a esse ponto. Havia uma relação intrínseca entre associados de pequenos clubes negros e a política que remontava aos anos finais do século XIX, alcançando as primeiras décadas do século XX – relação passível de ser percebida ao se recompor as redes de sociabilidade daqueles sujeitos, como é demonstrado no capítulo. Tal entendimento não passou despercebido às lideranças políticas não negras do período. Os recursos eleitorais gastos com aqueles espaços associativos evidenciam negociações e percepções acerca da força política que neles se concentrava.
“Dos forrobodós ao samba” é o último capítulo do livro, que cobre a década de 1920 e os primeiros anos da década seguinte, por meio da análise de crônicas e outros escritos expressivos do pensamento social brasileiro que comentavam a música e a dança que rolavam nos salões dos clubes recreativos negros. O capítulo demonstra que o cosmopolitismo não foi solapado em detrimento de uma homogeneidade cultural, que supostamente caracterizaria a afirmação do samba como marca da cultura brasileira. O autor demonstra que esse processo de afirmação teve em suas bases múltiplas influências. Os trabalhadores negros que participavam daqueles clubes afirmavam tanto o samba “quanto a lógica por meio da qual eles fizeram dessa musicalidade um meio de se inserir definitivamente na imagem nacional, pelos conflituosos diálogos com os homens de letras e com o poder público” (p. 285).
No “Epílogo” o autor faz apontamentos sobre o que aconteceu depois do período tratado em seu estudo, especialmente na década de 1940, com ênfase no declínio dos pequenos clubes dançantes. Era chegado o tempo das escolas de samba, muitas nascidas em diálogo com as experiências musicais e performáticas tão bem evidenciadas ao longo do livro, e que ainda hoje dão o tom do carnaval na cidade do Rio de Janeiro.
A cidade que dança bem poderia ter o título de As gentes que dançam e as que as viram dançar, termos que descreveriam um dos aspectos mais relevantes dessa pesquisa: as tantas gentes envolvidas! Todas devidamente nomeadas, o que vale para os clubes e bailes, jornais e revistas, cronistas, chargistas e escritores, além daqueles diretamente responsáveis pela organização de clubes e bailes negros. O livro é sobre sujeitos individuais e coletivos evidenciados em seu processo e sua dinâmica. O historiador Leonardo Pereira nomeia a todos e todas, apresenta dados biográficos, investiga as cambiáveis lógicas internas e externas, apresenta também os diálogos, as tensões e as disputas entre os diversos protagonistas dessa história. Em respeito àquelas histórias tão marcadas por cicatrizes, apagamentos e atravessamentos, optei por não as nomear aqui para não incorrer na injustiça de lembrar umas em detrimento de outras.
Um ponto, porém, fica em aberto ao longo do livro: não há uma reflexão sobre o uso dos termos negro, pardo e afrodescendente. Considerando-se o período, seria compreensível a utilização dos termos preto e pardo, então vigentes. Trata-se, possivelmente, de vocabulário interpretativo, e nesse caso uma explicação para seu uso teria enriquecido a leitura do ponto de vista metodológico, visto que cada um daqueles termos carrega historicidades distintas.
Fica o convite à leitura de mais um olhar atento a quanto as experiências negras podem esclarecer acerca da história do Brasil
Notas
1 Eric Hobsbawm, “Da história social à história da sociedade” in Sobre História (São Paulo: Companhia das Letras, 1998), pp. 83-105.
2 “Permita que eu fale / Não as minhas cicatrizes. / Achar que essas mazelas me definem / É o pior dos crimes / É dar o troféu pro nosso algoz / E fazer nóiz sumir.”
Resenhista
Fernanda Oliveira – Universidade Federal do Rio Grande do Sul. https://orcid.org/0000-0001-8198-3552
Referências desta Resenha
PEREIRA, Leonardo Affonso de Miranda. A cidade que dança: clubes e bailes negros no Rio de Janeiro (1881-1933). Campinas: Editora da Unicamp; Rio de Janeiro: EdUERJ, 2020. Resenha de: OLIVEIRA, Fernanda. Clubes e bailes negros rompem a exclusão na Primeira República. Afro-Ásia, 66, p. 620-627, 2022. Acessar publicação original [DR/JF]