A escrita da repressão e da subversão | Vivien Ishaq, Endrico P. Franco e Teresa E. Sousa

O livro “A escrita da repressão e da subversão” reúne uma coletânea das palavras e expressões, seus significados e sentidos, mais usadas durante a ditadura militar (1964-1985), tanto por agentes da repressão, quanto por militantes de esquerda considerados subversivos. Para a redação do glossário, foram usados como fontes diversos acervos e documentos do período do regime que estão sob custódia do Arquivo Nacional.

A historiadora Vivien Ishaq, juntamente com Pablo Endrigo Franco e Tereza Eleutério de Sousa, pesquisadores do Arquivo Nacional, se debruçaram especialmente sobre o acervo do Serviço Nacional de Informações (SNI). A escolha segue uma lógica importante. O órgão coordenava toda a atividade de informação e espionagem do regime e recebia compulsoriamente dados de órgãos municipais, estaduais e federais do Poder Executivo, tendo então uma abrangência nacional. Além do enorme volume de documentos reunidos. Além do SNI, também foram usados documentos do Conselho de Segurança Nacional (CSN); do Serviço Secreto da Aeronáutica (Cisa); da Divisão de Inteligência da Polícia Federal, entre outros. Todos esses acervos são compostos por diferentes documentos: fichas pessoais dos militantes da esquerda, análises da conjuntura nacional e internacional, relatórios secretos de informação e contrainformação, entre outros. Além dos documentos citados, os pesquisadores também buscaram fotografias para ilustrar os verbetes nos acervos do jornal Correio da Manhã e da Agência Nacional.

Cada palavra, ou expressão, do glossário se inicia com uma explicação redigida pelos autores do livro, sempre citando a fonte: “de acordo com o órgão tal”, “segundo o documento X” e, em seguida, dependendo do assunto, é colocado um trecho do material citado ou até mesmo a cópia integral do documento. Exemplos de verbetes: “abordagem após perseguição ostensiva”, o primeiro de todos, ou ainda, “lei de segurança nacional”, “jornais apreendidos”, “marxismo-leninismo”, “tortura”, “união nacional dos estudantes”, e “vanguarda popular revolucionária (VPR)”, o último. O principal diferencial do livro, é que cada vocábulo traz ao final a indicação da fonte primária de onde foi retirado, o número da caixa, da pasta, enfim, toda informação necessária para quem quer ir direto ao documento original. Por exemplo, o verbete “Luta Armada”, traz a seguinte informação: “Fonte do verbete: SNI, BRANBSB V8, ACE A027019 (Agência Central, 1982)”.

Entre os mais de 300 verbetes, não há nenhum biográfico, nem sobre figuras importantes como Carlos Marighella ou Emílio Garrastazu Médici. Como também os pesquisadores optaram por não fazer verbetes para cada organização de esquerda. Além do glossário, há também um anexo com a relação dos jornais apreendidos por agentes da SNI até 1982.

Ao acabar a leitura do livro, têm-se um panorama do período da ditadura militar. Tanto de como operavam as organizações de esquerda, suas diferentes ideologias, formas de atuar. Mas também como funcionava a questão hierárquica, estratégica e os conceitos dos próprios militares. O regime autoritário montou um forte aparato de espionagem e repressão para conhecer e entender como pensava e agia o seu inimigo subversivo. A autora destaca que os livros apreendidos quando da prisão dos suspeitos eram de extrema importância. Eles eram usados não só como provas de crime de subversão, mas também como fonte para a construção dos manuais usados nos treinamentos dos agentes, para instruí-los sobre o perigo vermelho.

Antes dos verbetes e da relação dos jornais apreendidos, uma longa introdução relata como se encontram os documentos dos períodos ditatoriais na América Latina, especialmente Argentina, Peru, Chile e Uruguai, quais foram os avanços jurídicos que permitiram o acesso a esses acervos e como os países vizinhos lidam com a questão da reparação e do julgamento dos crimes de lesahumanidade cometidos durante estes períodos. Também relata como organizações internacionais, como o Conselho Internacional de Arquivos e a Unesco, se mobilizaram para orientar sobre a preservação, divulgação e uso de documentos dos períodos repressivos.

A primeira parte do livro também traça um histórico do processo de recolhimento e liberação dos documentos da repressão, especialmente os que estão sob a guarda do Arquivo Nacional. São mais de 40 conjuntos documentais, dos mais variados órgãos, como Universidades, Ministérios, Escolas, empresas como Furnas e BNDES, Secretarias, além dos mais importantes e já citados, como o da SNI e Cisa. Além destes documentos, há um acervo enorme (mais de 4 milhões de páginas, filmes, fitas de vídeo e áudio) da Divisão de Censura de Diversões Públicas (DCDP). A autora Vivien Ishaq afirma que o Brasil possui um dos maiores acervos documentais produzidos pelo Estado, são mais de 16 milhões de páginas de registros, com “inquestionável valor histórico e informativo para a pesquisa científica e um precioso valor probatório para as vítimas da ditadura militar” (p.17).

Parte destes documentos, em especial os acervos do Serviço Nacional de Informações e de órgãos de informação estaduais, todos custodiados por entidades parceiras do Centro de Referência das Lutas Políticas do Brasil (1964- 1985) – Memórias Reveladas, foi reconhecida em 2011 como patrimônio da humanidade, dentro do programa “Memória do Mundo” (Memory of the World – MoW). Este projeto tem como objetivo preservar o acervo, facilitar o acesso e incentivar a sociedade sobre a “importância do patrimônio documental da Humanidade” (p.52).

Exatamente por essa importância, o livro deveria ter melhor distribuição e venda. Como um produto de divulgação dos documentos do Arquivo Nacional, dentro de uma política de amplo acesso às informações, o livro tem sua circulação restrita. A venda só é realizada na sede do Arquivo Nacional ou por correio. A distribuição deste tipo de livro, tão necessário para o debate nacional sobre o direito à verdade e à memória, deveria ser massiva, incluindo livrarias, universidades, mercado on-line. Um livro de extrema importância para quem deseja estudar e compreender melhor os vocábulos das forças de repressão, de como funcionava o pensamento e a ação dos agentes secretos e da espionagem, bem como das organizações clandestinas, merecia divulgação e distribuição melhores. É um limite que atinge quase todos os bons livros publicados pelo Arquivo Nacional.


Resenhista

Ana Caroline Silva de Castro – Doutoranda em Ciência da Comunicação na USP, São Paulo/SP, Brasil. Bolsista Capes. E-mail: [email protected]


Referências desta Resenha

ISHAQ, Vivien; FRANCO, Endrico Pablo; SOUSA, Teresa Eleutério de. A escrita da repressão e da subversão. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2012. Resenha de: CASTRO, Ana Caroline Silva de. Um glossário da repressão e da subversão: fonte de pesquisa e acesso à verdade. Diálogos. Maringá, v. 18, n.1, p. 517-520, jan./abr. 2014. Acessar publicação original [DR]

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