A formação da elite colonial. Brasil (c. 1530 – c. 1630) | Rodrigo Ricupero

Os momentos iniciais da efetiva conquista e ocupação dos territórios americanos do império português são de fundamental importância para todo o posterior desenvolvimento histórico do Brasil. Durante estes anos se desenharam os traços básicos da distribuição espacial da América portuguesa, traços que repercutem até hoje nas dinâmicas do país. Vem dessa época também algumas das principais feições sociais do país, bem como uma parcela importante do caldo sociológico que compõe suas culturas políticas. Apesar de sua importância, poucos são os historiadores que ousam mergulhar nestas águas profundas, nesta fase ao mesmo tempo tão longínqua e tão presente de nossa história. As razões para isso em geral giram em torno do problema das fontes. Essa é uma questão que se repete para outros objetos do período colonial, o que faz desta fase a menos conhecida de nossa história, pese seu caráter fundante.

A obra em tela enfrenta estas limitações e ousa incursionar no primeiro século de colonização. Sua baliza cronológica inicial é 1530, momento em que a política da coroa em relação às terras que lhe cabiam pelo Tratado de Tordesilhas “dá um salto de qualidade, com a iniciativa do povoamento das terras da costa do Brasil”. O fechamento do período do estudo é a invasão de Pernambuco pela West Indische Compagnie, em 1630, fase em que a conjuntura externa foi sacudida pela entrada em cena de novas potências e pela crise geral do século XVII. Do ponto de vista geográfico, o estudo abrange toda a área costeira da colônia, salientando o autor, que a repartição do estado do Maranhão somente se efetivou a partir de 1626.

As fontes foram magistralmente reunidas por Ricupero, que revisitou um vasto material transcrito e publicado em vários veículos como os Anais e a Coleção de Documentos da Biblioteca Nacional, as revistas de vários Institutos Históricos, inúmeras crônicas, relatórios, descrições, sumários, memórias e compêndios publicados no Brasil e em Portugal. As fontes manuscritas consultadas também foram variadas e numerosas. Ricupero utilizou-se de cartas régias, consultas, processos de disputa de terras, registros de chancelaria régia e das ordens militares, processos inquisitoriais e códices diversos depositados em Lisboa, no Porto e em Évora. No Brasil, consultou fundos da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro e do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. A relação das fontes e bibliografia ocupa sessenta e sete páginas e se constitui por si só num importante guia de pesquisa.

O trabalho se divide em três partes: “Honras e mercês”, “Conquista e Governo” e “Terra, Trabalho e Poder”. Ao longo destas três seções estão distribuídos nove capítulos. Os primeiros dois capítulos, inseridos na seção “Honras e Mercês” discutem como, a partir da concepção de que a principal tarefa da realeza é a distribuição da justiça, as práticas de recompensas por serviços prestados desempenharam um papel importante na atração de colonizadores e no pagamento de suas ações em prol da consolidação dos primeiros núcleos de colonização. O autor elenca um farto rol de exemplos de como a pressa em recompensar e a vagareza em castigar eram elementos indispensáveis no trato com os primeiros colonizadores.

Três capítulos formam a segunda parte do trabalho. Nela o autor esquadrinha as ações iniciais de ocupação efetiva do território, afrontando a presença cada vez mais intensa de outros europeus, sobretudo franceses. Os aspectos legais, militares, econômicos e administrativos são abordados. Destaca-se a necessidade de mais estudos sobre a administração colonial e dos ocupantes dos cargos nesse período. A montagem do Estado colonial nesta fase é analisada sob o prisma da legislação da época e dos provimentos passados aos designados para os cargos da governança. Não se descuida, entretanto, do papel que as redes familiares e clientelares tiveram na formação de uma elite de poder, na qual as principais figuras incrementavam seu raio de influência exatamente pelo controle das indicações e nomeações para os postos de mando.

A terceira e última parte, “Terra, trabalho e poder”, referência direta ao texto da Profa. Vera Lúcia Amaral Ferlini, orientadora do trabalho, é a mais extensa do livro, contendo quatro capítulos. Nesta seção o autor analisa como a ocupação dos cargos de governo permitia um acesso direto aos mecanismos de distribuição de terras e, conseqüentemente, na formação de dilatados patrimônios. Em paralelo, especialmente nos primeiros anos do período em estudo, o acesso privilegiado a outros bens explorados na imensa costa atlântica do continente representava uma considerável possibilidade de ganhos para aqueles que ocupavam posições cimeiras na administração local ou para seus apaniguados. Freqüentemente, esses ganhos e vantagens eram conseguidos ao arrepio da lei. Seja pelo trato ilícito, seja pelo açambarcamento de determinadas atividades, vários são os exemplos de como as autoridades se valiam dos poderes que lhe foram investidos para sacar proveito próprio de recursos que deveriam ser exclusivos do monarca ou que poderiam beneficiar um maior número de colonizadores.

Entra nesta questão, além da terra, o indispensável aporte de mão-de-obra. Neste campo, o autor demonstra como os dilatados poderes concedidos aos representantes do poder real na colônia acabaram permitindo que os mesmos consolidassem suas redes clientelares através do controle da divisão do contingente humano indígena entre as propriedades de parentes ou achegados. Coloca-se em relevo a atuação dos jesuítas na arregimentação de indígenas, bem como as reações dos colonizadores as interferências inacianas e à legislação regulamentadora emanada de Lisboa e Madri.

Os dois últimos capítulos, “O patrimônio fundiário I e II” oferecem abundante informação sobre o processo de ocupação das terras pelas unidades produtivas nas capitanias, iniciando-se pela Bahia, seguida pelas capitanias do centro-sul, Pernambuco e Itamaracá, Paraíba e Sergipe e finalmente a costa leste-oeste. Nestes capítulos figuram cinco interessantes tabelas que reúnem e sistematizam dados sobre os senhores de engenho do Recôncavo Baiano e de Pernambuco e Itamaracá, apontando informações sobre sua participação na governança colonial e seu estatuto social.

Ao longo de todo o texto, Ricupero dá ao poder central um papel de relevo e de controle sobre o processo de ocupação da nova colônia. Esta inclinação deriva diretamente da opção que faz pela idéia de que a colonização se realiza dentro dos quadros do Antigo Sistema Colonial. Daí também o seu empenho em tentar afirmar a existência de um senso de unidade territorial e centralidade administrativa e a sua crítica à idéia de “América Portuguesa”, alegando sua ausência na documentação consultada. O autor faz questão, entretanto, de expressar sua negação à vinculação automática retroativa ao Estado que se formaria a posteriori.

Apesar deste posicionamento, no decorrer do seu trabalho, o autor menciona dezenas de exemplos de como as brechas da autoridade régia permitiam que os componentes das primeiras gerações da “elite brasileira” lograssem, em direto afrontamento às normais emanadas do centro, sacar vantagens para interesses próprios. Pese as afirmações do autor no sentido de dar um papel de relevo à coroa – como cabeça e impulsionadora do aparelho de dominação sobre a colônia através de seus representantes, máxime o Governador-geral – a impressão que fica do livro é de que ao contrário de defender os interesses da coroa, os seus oficiais instrumentalizam os poderes que lhe eram delegados para beneficiar a si próprios e a suas redes clientelares. O desvirtuamento das normativas sobre os indígenas é um bom exemplo disso.

Os mecanismos de formação das elites no eixo centro-sul, descritos por Fragoso e outros autores em trabalhos recentes, emergem claramente dos casos estudados por Ricupero, apesar de algumas discordâncias do autor em relação à interpretação da formas e intenções das concessões de mercês régias. Na própria referência ao que entende por elite (nota 43, página 22), o autor se remete às discussões propostas por Bicalho. Por isso soa “estranha” a defesa feita pelo autor, diretamente em duas ocasiões (na introdução e nas considerações finais) e indiretamente em algumas passagens ao longo do texto, da concepção do Antigo Sistema Colonial como chave interpretativa para a formação de uma elite brasileira.

A abordagem do autor sobre as esparsas fontes do período inicial da colonização lança indagações atuais sobre um material que se revela extremamente rico em informações históricas. O laborioso trabalho de pesquisa vem apresentado em um texto claro e de agradável leitura, e se beneficia ainda de um primoroso trabalho de edição. Os capítulos finais seriam ainda mais informativos se acompanhados de mapas para orientação espacial do leitor. Ricupero apresenta assim uma sólida contribuição para a crescente produção científica sobre o período colonial e nos oferece interessantes elementos para o salutar debate historiográfico em torno à suas interpretações. Seu livro integra, indiscutivelmente, o rol de obras obrigatórias para o estudo do nosso período fundacional.


Resenhista

George Félix Cabral de Souza – Universidade Federal de Pernambuco.


Referências desta resenha

RICUPERO, Rodrigo. A formação da elite colonial. Brasil (c. 1530 – c. 1630). São Paulo: Alameda, 2009. Resenha de: SOUZA, George Félix Cabral de. CLIO – Revista de pesquisa histórica. Recife, v.27, n.2, p.329-333, jul./dez. 2009. Acessar publicação original [DR]

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