A história na escola: autores, livros e leituras | Helenice Aparecida Bastos Rocha, Luís Reznik e Marcelo de Souza Magalhães

Na última década, tenho vislumbrado um significativo avanço nas pesquisas na área de ensino de história no Brasil, traduzido pela presença de dissertação e teses defendidas nos programas de pós-graduação em História e Educação versando sobre temas como produção, circulação e usos dos livros didáticos, formação e prática do professor, novas linguagens e tecnologias, políticas públicas e currículos entre outros. Esse crescente interesse pelo assunto fica evidente na quantidade de livros, coletâneas e dossiês em periódicos científicos publicados no país. A Revista de História da Biblioteca Nacional, criada em 2005, à guisa de ilustração, desde o seu primeiro número tem dedicado uma seção às questões do ensino da História na escola de educação básica.

Em 1998, quando iniciava os primeiros passos na pesquisa, podia-se rapidamente levantar mentalmente a pequena lista de obras de referência sobre a história do ensino da História no Brasil, mesmo as dissertações e teses ocupavam poucas páginas após uma busca bibliográfica. Não me esqueço da alegria que fora mim receber do orientador de iniciação científica a coletânea O saber histórico na sala de aula, organizado pela historiadora Circe Bittencout. Até então só conhecia Repensando a história, organizado por Marcos Silva (1984), Ensino de História: revisão urgente (1986), de Conceição Cabrini e outras autoras, O ensino de história e a criação do fato (1988), organizado por Jaime Pinsky, Caminhos da história ensinada, de Selva Guimarães Fonseca (1993), e artigos publicados em um ou dois dossiês na Revista Brasileira de História e Cadernos CEDES.

Hoje estas obras constituem, ao lado de outras tantas, a historiografia do ensino de história no Brasil. Esta multiplicação de estudos na área foi ricamente observada pela historiadora Thais Nivia de Lima e Fonseca, em artigo publicado na coletânea Ensino de História: trajetórias em movimento (2007), organizada por mim, Nauk Maria de Jesus, Osvaldo Mariotto Cerezer. Neste ensaio, a autora ofereceu um panorama das publicações em coletâneas, revistas e anais de eventos dedicadas às tramas do fazer histórico na sala de aula, evidenciando a sofisticação e diversidade de estudos com diferentes objetos, problemas e abordagens.

A valorização das pesquisas nesta direção também se refletiu nas reformas curriculares dos cursos de licenciatura em História no Brasil com a ampliação do espaço das disciplinas de didática, práticas e estágio supervisionado na sua carga horária, apontando para a necessidade de se investir na formação de professores – sem deixar de lado a dimensão da pesquisa histórica como componente formativo.

Atualmente, na condição de professor da área de prática de ensino nos curso de licenciatura em História, tenho a cada dia encontrado uma infinidade de opções bibliográficas para a elaboração do planejamento das disciplinas e desenvolvimento das aulas. Arrolá-las aqui seria tarefa de demasiado fôlego para o momento. Dentre as novidades lançadas pelo mercado editorial do ano passado para cá gostaria de apresentar a coletânea A história na escola: autores, livros e leituras, organizada pelos professores Helenice Aparecida Bastos Rocha, Luís Reznik e Marcelo de Souza Magalhães, vinculados à Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), publicada pela Editora da Fundação Getúlio Vargas. Esta publicação é fruto dos trabalhos desenvolvidos pelo grupo de pesquisa Oficinas de História, criado em 2004, que reúne especialistas de diversas instituições universitárias do estado do Rio de Janeiro. Geralmente são historiadores das diferentes áreas do conhecimento histórico que têm se dedicado, a partir das suas vivências de pesquisa e ensino, ao estudo da produção e usos dos materiais didáticos e das relações entre saberes e práticas na formação docente.

Fugindo de uma leitura maniqueísta ou mesmo preconceituosa das obras didáticas, o conjunto dos textos desta coletânea assume o desafio de pensar a sua produção, circulação e usos no cotidiano escolar. A instituição escola é analisada pela perspectiva de um de seus artefatos fundamentais no sistema de ensino brasileiro: o livro didático. A prática inquiridora do “tribunal das belas mentiras” cede lugar para uma leitura múltipla deste objeto: como produto cultural, suporte de saberes e métodos de ensino-aprendizagem, espaço de construção e disputas de identidades, depositário de valores e visões de mundo. Nesta história aparecem autores, professores e alunos como sujeitos sociais, responsáveis pela concepção e apropriações dos livros didáticos de História.

A grande contribuição do livro para nós – professores, pesquisadores e estudantes – é a preocupação dos autores em adentrar o mundo das práticas de leitura na sala de aula, tomando como referência os usos por parte dos professores e alunos dos livros didáticos. Há uma busca por parte desses pesquisadores das marcas fragmentárias e errantes deixadas pelos leitores dessas obras que têm se feito presente no dia-a-dia escolar de gerações de estudantes. Neste sentido, A história na escola dá saltos qualitativos nas pesquisas sobre este objeto controverso – digno de paixões e ódios – chamado livro didático, superando a conhecida denúncia das ideologias que povoam suas páginas.

Teoria, método, problematização e pesquisa documental fazem parte das tramas que produzem as diferentes interpretações sobre a História contada nos livros didáticos produzidos e/ou utilizados no Brasil desde meados do século XIX até o começo do novo milênio. Para os que alardeam que falar ou escrever a respeito do ensino de história é tarefa fácil, ou que seja algo carente de pesquisa, ou mesmo distante da seara dos historiadores – preocupados com os “grandes temas” da nossa história – este livro será um bom momento para a reflexão e revisão de (pré)conceitos. Como nos lembra o historiador francês René Remond,

Revelando, acentuando ou, pelo contrário, escondendo as disposições inatas ou adquiridas, entrando em composição com as influências, as circunstâncias da existência têm um papel determinante na formação de um historiador, assim como de todos os homens. As circunstâncias são, em primeiro lugar, a profissão, e a profissão, para os historiadores, é geralmente o ensino: na nossa sociedade, raros são os verdadeiros historiadores que não sejam professores (REMOND, 1987, p. 312).

Não está fora das nossas atribuições na oficina da História debater e refletir sobre a história ensinada nos bancos escolares. Pelo contrário, é um assunto necessário para professores de História no ensino fundamental e médio, bem como dos formadores de professores nos cursos de História.

A história na escola está dividido em três partes: a primeira – “Autores e livros” – apresenta ensaios dedicados a um determinado livro didático que tenha marcado a história da produção didática em História no Brasil; a segunda – “Leituras” – traz textos que abordam a diversidade de leitores e usos dos livros didáticos; e, por último – “Personagens: índios e negros”, reúne um conjunto de reflexões sobre as representações dos índios e negros nas páginas do livros didáticos de História do Brasil. Aqui os autores não deixam de lidar com as questões dos preconceitos, da discriminação e do racismo presente nas imagens didáticas forjadas ontem e hoje desta população marginalizada, silenciada ou estereotipada.

Para além de todos os méritos acadêmicos que se poderá identificar neste livro, há ainda a belíssima introdução do professor Ilmar Rohloff de Mattos, que capta bem o espírito da idéia dos autores dos ensaios. Em uma espécie de memorial, o renomado historiador de O tempo saquarema (1984) relata suas preocupações de longa data com o ensino da História na educação básica e também com a formação dos professores, a partir de um passeio pelos livros didáticos que marcaram os tempos de escola, a faculdade e sua prática como professor na educação básica e na universidade, assim como autor também de material didático. A narrativa da história do estudante-professor-autor Ilmar Mattos serve para anunciar o que nos espera nas páginas seguintes: o saber escolar percebido pela perspectiva dos livros didáticos de História; apresenta as marcas da temporalidade da escrita, da circulação e dos usos.

O livro didático, como sugere Ilmar Mattos, só acontece se existirem os autores-professores, professores-autores e os alunos-leitores. Contar a história da produção e leituras dos livros didáticos de História é uma forma de trazer a historicidade para o próprio oficio do professor: da sua formação, vivências, leituras, saberes e práticas. É uma das possibilidades dentre outras imagináveis de se adentrar o universo da sala de aula de ontem e hoje.

Referências

BITTENCOURT, Circe Maria F. (org.). O saber histórico na sala de aula. São Paulo: Contexto, 1997.

CABRINI, Conceição et al. O ensino de História: revisão urgente. São Paulo: Brasiliense, 1986.

FONSECA, Selva Guimarães. Caminhos da História ensinada. Campinas: Papirus, 1993.

FONSECA, Thais Nivia de Lima e. Historiografia do ensino de História no Brasil. In: JESUS, Nauk Maria et al. Ensino de História: trajetórias em movimento. Cáceres: Ed. da UNEMAT, 2007. p. 11-19.

PINSKY, Jaime (org.). O ensino de História e a criação do fato. São Paulo: Contexto, 1988.

REMOND, René. O contemporâneo do contemporâneo. In: CHAUNU, Pierre et al. Ensaios de ego-história. Lisboa: Edições 70, 1987. p. 287-342.

SILVA, Marcos A. (org.). Repensando a História. Rio de Janeiro: Marco Zero, 1984.


Resenhista

Renilson Rosa Ribeiro – Professor Adjunto do Departamento de História da Universidade Federal de Mato Grosso – Campus Universitário de Rondonópolis, doutor em História Cultural pela Universidade Estadual de Campinas. E-mail: [email protected]


Referências desta Resenha

ROCHA, Helenice Aparecida Bastos; REZNIK, Luís; MAGALHÃES, Marcelo de Souza (Orgs.). A história na escola: autores, livros e leituras. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2009. Resenha de: RIBEIRO, Renilson Rosa. Fronteira: Revista de História. Dourados, v.11, n.20, p.191-195, jul./dez. 2009. Acessar publicação original [DR]

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