A História repensada | Keith Jenkins
Até meados do século XX, a História ainda era muito parecida com as estradas do oeste norte-americano imortalizadas por Hollywood: reta, plana e sem vicinais. Essa estrada chamada positivismo era percorrida com segurança pelos historiadores até seu destino, a verdade. No entanto, novos caminhos surgiram para novos pontos de chegada trazidos pelo que conhecemos como pós-modernismo. As estradas também começaram a ser percorridas por novos transeuntes. É nesse emaranhado viário, ou melhor, paradigmático, de tráfego intenso, que muitos historiadores estão perdidos, tanto os mais jovens, que se sentem obrigados a escolher um dentre vários caminhos, como os mais velhos, que têm dificuldades para percorrer as novas estradas. Nessa situação, ainda que apresente algumas imprecisões e lacunas, A História repensada (Rethinking History) do historiador inglês Keith Jenkins permite aos historiadores se localizarem com mais precisão perante as mudanças provocadas pelo pós-modernismo. Apesar de ter sido publicado em 1991 e traduzido em 2001 – primeiro livro de Jenkins no Brasil -, sua discussão continua pertinente e assim promete continuar por muito tempo.
Uma pequena observação sobre a tradução do título: ainda que a tradução esteja certa, o tradutor teria sido mais feliz caso tivesse optado por Repensando a História. O gerúndio aproximaria mais o título do texto, que discorre sobre os questionamentos, superações e mudanças que marcam a História atualmente. A História Repensada traz a idéia do fechamento de um novo conceito de História, o que poderia levar Jenkins a ser enquadrado, erroneamente, na antiga estrada positivista.
Jenkins afirma que o texto é introdutório e polêmico. Na introdução, coloca a clássica pergunta “O que é a história?”[2] . O caráter introdutório da questão dispensa comentários e o polêmico está na resposta que se delineia ao longo do texto. A polêmica está presente desde a introdução, quando o autor afirma que novos transeuntes como literatos e filósofos pensam muito mais sobre seus respectivos objetos do que os historiadores. Mais do que isso, são considerados modelos a serem seguidos pela preocupação com “as ‘leituras’ e a elaboração de significados”[3].
Assim, o autor questiona a visão positivista do passado. Jenkins considera que a História não consegue, não pode apreender plenamente a complexidade do passado. Ao invés de procurarem “a” verdade, os historiadores deveriam se preocupar com “as” verdades do passado. Jenkins alerta que isso não é nenhuma novidade, visto que a historiografia sempre lotou prateleiras sobre um mesmo tema: “Fica evidente que os historiadores deveriam levar em conta esses argumentos quando põem mãos à obra, mas com freqüência, eles não o fazem. E, quando o fazem, raramente os desenvolvem” [4].
O autor ainda lembra que a quantidade de fontes é muito grande, o que gera a necessidade de recortes espaciais, temáticos e temporais, ou muito pequena, o que impossibilita o desenvolvimento de uma pesquisa. Além disso, coloca que os historiadores nunca encontram todas as respostas para suas questões nas fontes e, assim, precisam formular hipóteses para prosseguirem com suas pesquisas. Nesse ponto, novos buracos aparecem na estrada quando o autor lança a questão da ideologia na História e sua influência nos recortes e nas hipóteses dos historiadores.
A ideologia é apresentada em A História repensada de um modo amplo, não somente na dimensão política ou partidária. A ideologia é o presente, o contexto econômico, social e cultural no qual estão inseridos os historiadores e produtores das fontes. Jenkins frisa o condicionamento ideológico da leitura e produção textual. “Assim como somos produtos do passado, assim também o passado conhecido (a história) é um artefato nosso. Ninguém, não importando quão imerso esteja no passado, consegue despojar-se de seu conhecimento e de suas pressuposições”[5]. Se a ideologia influencia tanto as fontes como os historiadores, a historiografia deveria ser analisada como uma fonte.
Além disso, ao dar destaque à ideologia, Jenkins questiona a neutralidade, objetividade do historiador ao relacionar a História com o poder. O autor lembra da importância da História para a legitimação de movimentos sociais e instituições como a universidade. Por isso, Jenkins reformula a pergunta da introdução. “Assim (…) fica claro que responder à pergunta ‘O que é a história?’ de modo que ela seja realista está em substitui-la por esta outra: ‘Para quem é a história?’” [6].
O autor também destaca pressões do cotidiano que dificultam a apreensão do passado pelos historiadores. Pressões de familiares e amigos por mais convivência, do local de trabalho, no qual se manifestam divergências pessoais e profissionais, das editoras, que impõem extensão, formato, estilo, reescritas e prazos. Contudo, essas pressões ainda são minimizadas ou mesmo ignoradas pela maioria dos historiadores.
Essas são as principais questões levantadas por A História Repensada. O autor menciona Alex Callinicos, para quem o pós-modernismo demonstrou a “inadequação da realidade aos conceitos” [7]. Em poucas palavras, a resposta polêmica que se delineia ao longo do texto é que não existe “a” História, pois não existe “o” caminho para “a” verdade.
No entanto, conforme mencionado, o texto apresenta algumas imprecisões e lacunas, provocadas mais pelo momento de crise e transição paradigmática no qual vivemos do que por equívocos de Jenkins.
Em primeiro lugar, o autor coloca que seu objetivo é ajudar o historiador “a ter controle de seu próprio discurso” [8]. Ora, Jenkins demonstra exatamente o contrário, considerando-se o leque amplo de interferências sobre o trabalho do historiador. Nas notas, coloca que ter controle do discurso é “ter poder sobre o que você quer que a história seja, em vez de aceitar o que outras pessoas dizem que ela é” [9]. Nesse trecho, o autor parece se esquecer das diferentes leituras às quais estão sujeitas as fontes e a historiografia. Os historiadores precisam ter consciência, não controle do próprio discurso, consciência dos seus propósitos e limitações.
A aproximação entre Geoffrey Elton, segundo o qual “o estudo da história equivale a uma busca pela verdade” [10] e Edward Palmer Thompson também soa estranha em A História Repensada. Até o marxismo mais ortodoxo não admite a existência de uma única verdade e Thompson, ao enfatizar a cultura na formação da classe operária inglesa, demonstra as apropriações e mudanças efetuadas pelos trabalhadores no discurso dominante. Logo, Thompson também trabalha com leituras e produção de significados. Jenkins coloca que apesar de Thompson não considerar que todo “conhecimento seja passível de ‘prova científica’, ele mesmo assim o tem por conhecimento real” [11]. No entanto, quando discorda da crítica segundo a qual o passado seria, para os pós-modernos, inteiramente inventado, Jenkins também coloca que a História é um conhecimento real:
“Não quero dizer (…) que nós simplesmente inventamos histórias sobre o mundo ou sobre o passado (…), mas (…) que o mundo ou o passado sempre nos chegam como narrativas para verificar se correspondem ao mundo ou ao passado reais, pois elas constituem a ‘realidade’.” [12]
Finalmente, considerando-se o destaque dado à ideologia, acredito que Jenkins poderia ter escrito sobre sua formação e o que o teria levado ao pós-modernismo. A formação da classe operária inglesa de Thompson é apresentada por Jenkins como um texto que “pode ser lido tanto como uma introdução a aspectos da Revolução Industrial, quanto como um estudo do que certo tipo de historiador marxista tinha para dizer no final dos anos 50 e começo dos 60” [13]. Assim, além de um ensaio teórico, A História repensada pode ser lida como um estudo de certo tipo de qual historiador? Se tivesse explorado sua trajetória intelectual, certamente seria mais fácil compreender o que Jenkins entende por controle do próprio discurso.
A questão da ideologia em A História repensada deveria fazer com que as narrativas positivistas não fossem apenas criticadas, mas também compreendidas como uma forma de discurso igualmente válida, considerando-se o momento no qual o positivismo surge e se enraíza entre os historiadores. Afinal de contas, como o próprio Jenkins afirma ao comentar os aspectos positivos da crise paradigmática enfrentada pelos historiadores, “o relativismo moral e o ceticismo epistemológico constituem a base da tolerância social e do reconhecimento positivo das diferenças”[14].
A História repensada é uma leitura obrigatória neste momento de incertezas. Apesar de não fornecer todas as respostas, coloca perguntas pertinentes para os historiadores repensarem seu objeto. O maior mérito de Jenkins é colocar um espelho na nossa frente, de modo que enxerguemos que as coisas não são tão simples e perfeitas quanto pareciam na viagem pela antiga estrada positivista.
Notas
2. JENKINS, A História…, p. 17.
3. JENKINS, A História…, p. 20.
4. JENKINS, A História…, p. 61.
5. JENKINS, A História…, p. 33.
6. JENKINS, A História…, p. 41.
7. JENKINS, A História…, p. 100.
8. JENKINS, A História…, p. 17.
9. JENKINS, A História…, p. 109.
10. JENKINS, A História…, p. 35.
11. JENKINS, A História…, p. 36.
12. JENKINS, A História…, p. 28.
13. JENKINS, A História…, p. 79.
14. JENKINS, A História…, p. 90.
Resenhista
Paulo Renato da Silva1 – Mestrando em História pela Universidade Estadual de Campinas.
Referências desta Resenha
JENKINS, K. A História repensada. Trad. Mario Vilela. Revisão Técnica de Margareth Rago. São Paulo: Contexto, 2001. Resenha de: SILVA, Paulo Renato da. Repensando ‘a história repensada’ de Keith Jenkins. SÆCULUM – Revista de História. João Pessoa, n. 11, p. 203-206, ago./dez. 2004. Acessar publicação original [DR]