A leitura e seus lugares | Júlio Pimentel Pinto

Júlio Pimentel Pinto, professor do Departamento de História da Universidade de São Paulo (USP), é um historiador que, em sua produção, tem se voltado para os estudos acerca das relações entre a História e a Literatura. Seu trabalho de doutoramento, intitulado Uma memória do mundo: ficção, memória e história em Jorge Luis Borges (publicado pela Editora Estação Liberdade, em 1998), já apresentava um pesquisador instigante, um narrador eficaz e, acima de tudo, um crítico preocupado em não perder a especificidade das áreas pelas quais transita.

Seu trabalho mais recente, A leitura e seus lugares (2004), como o próprio título sugere, reúne ensaios cuja temática principal é a leitura e, mais especificamente, os lugares ocupados por esta prática na historiografia e na ficção. Os textos apresentados no livro – estruturado em quatro blocos ou partes, com três ensaios cada um – foram escritos em diferentes momentos e são, em sua maioria, fruto de reflexão acadêmica (quatro destes textos já haviam sido publicados em revistas especializadas), sendo que cinco dos doze ensaios derivam de cursos de graduação e pós-graduação.

No primeiro bloco, “Leituras e críticas”, o autor problematiza as relações de distanciamento entre o leitor não-acadêmico e a crítica. Tal afastamento se deve, segundo ele, às características do atual universo crítico brasileiro, que produz reflexão destinada apenas aos iniciados. Além disso, toca em questões em voga, como a leitura e a construção dos cânones; a atualidade do clássico; a leitura e a autoria no mundo contemporâneo; o papel da memória no processo de leitura (bibliotecas imaginárias). Nesse entrecruzamento de diálogos, coloca-se a indagação: qual seria o lugar do leitor e quais suas possibilidades de leitura e interpretação de textos?

O autor não procura dar respostas, antes aprofunda o questionamento. Contudo, após o término do terceiro ensaio desse bloco, “O lugar do leitor: do texto aberto aos protocolos de leitura”, alguns indícios podem ser percebidos, como, por exemplo, as possibilidades de orientação da leitura conferidas à obra pelo autor a resposta específica de cada leitor frente a essas possibilidades, que podem ou não ter eficácia. Nesse sentido, ressalta-se a importância do repertório de leitura de cada indivíduo, que pode também atuar como elemento de restrição de interpretação. Não se pode esquecer que o lugar do leitor é privilegiado, havendo sempre espaço para uma nova leitura, sem perder de vista que dada “a existência, mesmo instável, de protocolos de leitura (…) existem limites para a interpretação” (p. 58).

Prosseguindo sua argumentação, no segundo bloco do livro, “Leituras da história”, o autor busca apresentar questões concernentes ao campo específico da historiografia e das práticas de interpretação da história. Em constante mudança desde o fim do século XIX, o “ofício do historiador” cada vez mais tem de lidar com um universo “oscilante”, “variável”, “mutante”. Uma história que “recusa as categorias fixas e inatas, colocando em seu devido tempo palavras, conceitos, comportamentos, idéias, discursos: historizando o próprio conhecimento, revelando consciência do tempo vivido […]” (p. 66). Uma história a ser pensada “como experiência de linguagem e, como tal, registro de múltiplas leituras e escrituras” (p. 68).

O ensaísta procura demonstrar que o diálogo entre História e Literatura é, na verdade, um diálogo entre duas áreas do conhecimento que não são passíveis de categorizações fixas, rígidas. E, diga-se de passagem, os dois últimos artigos desse segundo bloco tratam de uma realidade historicamente instável, a latino-americana, na qual a construção das identidades – tema do ensaio “A construção das identidades na América Latina” – ou a conformação das cidades e os limites da modernidade nos seus processos de modernização estão ainda abertos a novas interpretações, muitas das quais atravessam o universo literário de fins do século XIX e início do XX ou são por ele atravessadas.

Ocupando um lugar de destaque no livro (basta ler a introdução), Jorge Luis Borges é o tema dos três ensaios que compõem o terceiro bloco, “Leituras de Borges”. A obra borgeana – estudada há mais de uma década por Júlio Pimentel Pinto – é, conforme o próprio autor, a motivação inicial para a maior parte das questões debatidas no livro.

A partir da discussão de alguns aspectos da história latino-americana apresentada no bloco anterior, o autor, no primeiro dos ensaios, “Ruas de Borges e de seus contemporâneos”, mostra a temática da urbe nos textos de Borges – mais detidamente estudado no ensaio –, de Mário e de Oswald de Andrade e de Oliverio Girondo. Mesclando a crítica histórica e a crítica textual, a análise do autor revela a cidade como signo de uma conjuntura histórica específica: “com suas alterações violentas, seus bruscos impulsos tecnológicos, foi de fato um lugar privilegiado para que se pensasse, em meio às aventuras vanguardistas, a questão do nacional, para que se situasse o tempo da mudança e da permanência” (p. 104-105).

Em “Borges, um leitor à luz da história”, o segundo ensaio do bloco, o autor enfoca a maneira através da qual a crítica borgeana tem revisto e revisitado algumas imagens do escritor e de sua obra até então incontestes, como, por exemplo, a associação de Borges ao irrealismo. Essa “nova” crítica insiste na historicidade contida em sua obra e, além disso, reafirma a condição de leitor do escritor argentino. O terceiro ensaio dessa parte, “Borges no periodismo das vanguardas”, é um esforço conjugado ao do ensaio anterior, de reposicionamento das periodizações da obra e da vida de Borges, a partir de sua produção em periódicos. Júlio Pimentel Pinto nos revela, através dos periódicos e de um diálogo com alguns críticos, um Borges “jovem” que se dilui no Borges “maduro”, percebendo-se, mais do que rupturas, continuidade e, também, o assentamento da experiência histórica das vanguardas.

O quarto – e último – bloco propõe leituras acerca das obras de Marcel Proust, Adolfo Bioy Casares e Andrea Camilleri. O primeiro ensaio, dedicado a Proust, debruça-se sobre as relações entre história, memória e ficção na obra Em busca do tempo perdido, texto que trata dos “movimentos incertos de aproximação com o passado” e das “ações e passividades que nos levam a oscilar entre a possessão da memória necessária, involuntária, e a pretensão da memória regradora” (p. 149). Partindo da idéia de que o tempo “é o único tema, o enigma essencial”, no segundo ensaio, o autor discorre acerca da obra A invenção de Morel, de Bioy Casares, e do diálogo que é possível estabelecer a partir dela “entre a noção de Tempo absoluto e a idéia de temporalidades plurais” (p. 151). A provisoriedade instaurada pelo narrador subverte o Tempo absoluto e mostra que nesse vivem muitas temporalidades: “Do Tempo passamos aos tempos, dotados de história e de mobilidade” (p. 161). T

empos, leituras e olhares múltiplos, o último texto do livro, “Montalbano, um policial de muitos olhares”, apresenta Andrea Camilleri, escritor italiano de sucesso, que nos seus livros busca representar a identidade siciliana por meio de um personagem, o policial Montalbano. Identidade também fragmentada, que confere à crítica múltiplas tonalidades. O trabalho investigativo do personagem, que guarda semelhanças com o trabalho do cientista, do crítico, desemboca na visão de Camilleri que afirma o “valor das verdades múltiplas, da compreensão do (e respeito ao) olhar alheio, da importância da verdade produzida no contexto de muitas perspectivas. Em vez de método, crítica. E, em vez de um ‘olho privado’, muitos olhares” (p. 182). De acordo com o autor, mais do que entretenimento, os livros de Camilleri são literatura.

Atingindo o objetivo de evitar o “intelectualismo infértil”, a “escritura fechada”, as “manias acadêmicas”, procurando a brevidade nas interpretações e sugerindo aos leitores a busca pelos autores discutidos nos textos, Júlio Pimentel Pinto reúne ensaios que interessarão a historiadores, críticos literários e, sobretudo, a leitores. Abertos a diversas interpretações e leituras, os textos de A leitura e seus lugares nos mostram que “todo livro supõe uma história de suas leituras.”


Resenhistas

Vanessa Moro Kukul – Mestranda em Letras – Universidade Estadual Paulista/Assis; bolsista CAPES. E-mail: [email protected]

Raphael Nunes Nicoletti Sebrian – Mestrando em História – Universidade Estadual Paulista/Assis; bolsista FAPESP. E-mail: [email protected]


Referências desta Resenha

PINTO, Júlio Pimentel. A leitura e seus lugares. São Paulo: Estação Liberdade, 2004. Resenha de: KUKUL, Vanessa Moro; SEBRIAN, Raphael Nunes Nicoletti. Diálogos. Maringá, v.8, n.2, 191-194, 2004. Acessar publicação original [DR]

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