Jardines en tiempo de los Austrias. De la ficción caballeresca a la realidad nobiliária | María del Rosario Aguilar Perdomo

Em um de seus certeiros artigos, a investigadora da Universidade de Zaragoza Maria Carmen Marín Pina há tempos chamou a atenção e estabeleceu algumas coordenadas para melhor avaliação das “histórias fingidas”1 – tal como ficaram conhecidos os livros de cavalarias ao longo do século XVI ibérico e dos seguintes, principalmente depois do Prólogo do Amadis de Gaula (1508), de Garci Rodríguez de Montalvo, onde vieram à baila questões polêmicas envolvendo a “verdade” e a “verossimilhança” na composição desse tipo de texto, no rastro da tradição aristotélica em plena voga em períodos de Humanismos e Renascimentos, quando ainda eram bem audíveis os ecos da matéria arturiana ou “de Bretanha”. De fato, o tema do “fingimento” em Arte não era e não é simples, conforme o atestaram tantos pensadores antigos e cristãos, a começar pela etimologia de fingo, fingere, de que se originou a palavra: ambíguo de nascença, colocando em cena o gosto medieval pelas similitudes analógicas, o termo significou inicialmente “modelar em barro, em cera, esculpir”; “arranjar, dar forma, representar”; derivando logo para “imaginar, inventar, fazer parecer real” e daí, em zona sempre limítrofe, para “dissimular, faltar com a verdade, criar como fantasia”. Cumpre lembrar, ainda, que justamente a “ficção”, em que o gênero cavaleiresco se insere, vem do latim fictio, onis = “invenção, coisa fingida, obras que tratam de personagens imaginárias”. Leia Mais

Shrinking the Earth: The Rise and Decline of American Abundance | Donald Worster

Shrinking the Earth, “Encolhendo a Terra”, em tradução livre, é a produção literária mais recente do historiador ambiental Donald Worster, que nasceu em 1941 e cresceu em Hutchinson, Kansas. Na década de 1970, ele se tornou mestre em filosofia pela Yale University e doutor em História pela mesma universidade. A partir de 1989, ocupou a cadeira de História Norte-americana da University of Kansas. Após sua aposentadoria, em 2012, Worster se tornou especialista estrangeiro e professor sênior da escola de História da Universidade Renmin, China. Ele é um dos fundadores da história ambiental norte-americana e foi presidente da American Society for Environmental History. Durante sua carreira, escreveu livros que influenciaram o campo da disciplina, como A River running West: the Life of John Wesley Powell (2000) e A Passion for Nature: the Life of John Muir (2008).

A História Ambiental pretende entender como ambiente e sociedade se relacionam. A disciplina surgiu em meados de 1970, predominantemente na Europa e nos Estados Unidos da América (EUA), quando cientistas naturais apontaram consequências danosas da ação humana sobre a natureza. Essa nova percepção de estudo enfrentou, e ainda enfrenta, resistência das Ciências Humanas, embasadas no paradigma durkheimiano, no qual o social se explica apenas pelo social. Worster dialoga nesse livro com a noção de fronteiras e limites, trabalhados pelos historiadores norte-­americanos Frederick Jackson Turner (1861-1932) e Walter Prescott Webb (1888-1963). A obra resenhada trata da história ambiental mundial e busca explicar como chegamos à atual situação planetária, marcada cada vez mais pela escassez de recursos, pontuando questões importantes para o estudo da sustentabilidade. O livro está dividido em três partes, além do prólogo e epílogo. Cada parte é composta de três capítulos narrativos e de um quarto capítulo referente a uma viagem de campo.

No prólogo “Luz Verde de Gatsby”, o autor utilizou uma passagem do romance de Francis Fitzgerald (1896-1940), The Great Gatsby (1925), para delinear uma visão alternativa do passado de devastação da natureza e guiar a leitura. A passagem se refere aos momentos em que Gatsby, um emergente social romântico e sonhador, enxerga uma luz verde à distância no porto e fica esperançoso de ser aceito pela rica Daisy Buchanan. A luz apenas assinala o ancoradouro da mansão de Daisy, mas simboliza as expectativas de Gatsby em relação ao seu futuro. Essa luz verde também representa as expectativas de crescimento da já próspera sociedade estadunidense de 1920. Worster chamou de “teoria da luz verde” a ilusão que os humanos têm de um futuro em que a natureza seja sempre abundante.

Ainda no prólogo, Worster avisa que abandonou três perspectivas familiares na história contemporânea: da simpatia pelos perdedores, da escola dos bons hábitos e das boas instituições e da continuidade do Holoceno. Sobre as duas primeiras, Worster afirma que trata dos êxitos na extração de matérias-primas da natureza, principalmente os referentes à colonização dos EUA. Sobre a terceira visão, ele aponta que alguns cientistas já consideram que estamos no Antropoceno, uma era de grandes transformações causadas na biosfera pelo ser humano, principalmente a partir da Revolução Industrial do século XVIII. A era anterior, o Holoceno, iniciada há doze milênios e pós período de glaciação, teve sua relativa estabilidade da natureza abalada justamente pela atuação humana.

Na parte I, Worster descreve as revoluções que ocorreram na sociedade europeia após o descobrimento do Novo Mundo pelos colonizadores europeus. Eles conseguiram expandir suas fronteiras e promover o desenvolvimento utilizando recursos naturais obtidos de suas colônias, mas mesmo alguns dos primeiros economistas advertiram que o crescimento econômico e social tinha um limite. O inglês John Stuart Mill (1806-1873) foi o primeiro a dizer que essa limitação não era necessariamente ruim, pois impunha novos desafios ao estilo de vida europeu (1848). Além disso, para Mill nem tudo do mundo natural podia ser precificado ou utilizado, ideia semelhante à dos primeiros defensores da natureza selvagem, ou wilderness, como William Wordsworth (1770-1850) e Henry David Thoreau (1817-1862). Worster finaliza a primeira parte descrevendo a caça desenfreada às baleias na ilha de Nantucket na metade do século XIX, o que levou à quase extinção do animal.

A parte II, “Depois da Fronteira”, narra uma sequência de práticas de extração de recursos naturais nos EUA, as suas consequências e os estudos feitos pelo conservacionismo norte-americano, encabeçado por George Perkins Marsh (1801-1882). É descrito o poder destrutivo da agricultura, que desequilibrava ciclos d’água. A crise hídrica foi tema da viagem de campo, que trata do “Vale Imperial”, na Califórnia, estado que passou por uma grande seca em 2003. A devastação continuou por meio do desenvolvimento industrial do século XIX, quando o combustível propulsor da indústria, o carvão, levou à contaminação do ar, solo e da água por substâncias tóxicas, alterando o ciclo do carbono. Combinado com o ferro, o carvão proporcionava a criação do aço, que passou a ser utilizado nas ferrovias, amplificando a expansão das cidades e a destruição ambiental. Com a escassez do carvão, o gás natural e o petróleo se tornaram os próximos combustíveis das atividades humanas. Essa grande dependência dos recursos naturais e como lidar com ela é descrita na sequência. O presidente Theodore Roosevelt (1858-1919) tentou associar o conservacionismo aos interesses industriais, o que foi desastroso para o meio ambiente. Para Roosevelt, a construção de barragens, por exemplo, significava transformar um “desperdício” de força d’água em lucro para a sociedade. Atualmente, essa associação falaciosa fica explícita em empresas que utilizam o prefixo “eco” em seus produtos, sem praticar qualquer forma de proteção à natureza.

Após tanta devastação, chegamos ao limite, tema da terceira parte do livro. A narrativa inicia com a fase posterior à Segunda Guerra Mundial nos EUA, que se caracterizou pelo aumento do consumismo e desenvolvimento desenfreado, incomodando até mesmo os conservacionistas mais adeptos da prosperidade econômica. Surgiu, então, uma categoria mais prática de conservacionistas, a dos ambientalistas modernos, que comprovaram como a ação exploradora humana acarretava na degradação do meio ambiente.[1] Worster dispende boa parte dos capítulos seguintes discorrendo sobre a obra dos cientistas Dennis Meadows e Donella Meadows (1941-2001), autores principais de The Limits to Growth (1972). O livro foi um alerta sobre as dinâmicas do sistema social, seus limites e a necessidade de ajustes para que o mundo não colapse. A partir desse estudo, outros pesquisadores começaram a delimitar uma zona de perigo relacionada à capacidade de suporte da Terra. A viagem de campo, “Rio Athabasca” (Canadá), encerra a terceira parte. O betume descoberto no rio canadense, localizado em uma floresta boreal, tinha extração e tratamento difíceis e onerosos. Após a crise do petróleo em 1973, investiu-se desesperadamente em sua extração e área e o rio ficaram devastados.

No epílogo, “Vida em um pálido ponto azul”, Worster cita a viagem ao espaço da Voyager I, em 1977. O astrônomo Carl Sagan (1934-1996) pediu que fosse fotografado o que havia ao redor da nave. Foi registrada apenas a Terra, um pálido ponto azul. O Novo Mundo esperado pela ida do homem ao espaço não existe. Worster propõe que é preciso aprender a viver com os recursos disponíveis. Ele alerta que, por conta do crescimento da tecnologia, da população e do consumo, o nosso mundo está encolhendo ecologicamente. A lógica da composição do livro se completa: descoberta, exploração e limites.

Worster expõe a sua preocupação principal com a devastação ambiental desde o primeiro capítulo do livro e a reitera ao longo de sua narrativa: “Mas quais são as chances de encontrar outra natureza, outro hemisfério de abundância tão fácil? Zero”[2] (p. 25). Apesar do livro ser definido como de História Ambiental global, Worster concentra sua narrativa na Europa e nos EUA, o que não desvirtua a proposta da obra. Sua riqueza de informações a torna acessível a qualquer pessoa que tenha interesse em compreender o “encolhimento” da Terra, situação explícita a quem se propõe observar minimamente as condições em que se encontra o meio ambiente. Shrinking the Earth não se desenvolve em tom alarmista, mas não deixa de ser um alerta sobre a situação atual e futura da Terra e seus habitantes: não temos mais um longo passado pela frente.

Notas

1. Para melhor compreensão das categorias de proteção da natureza, sugiro NASH, 1990.

2. Trad. livre da autora: “But what are the odds of finding another nature, another hemisphere of such easy abundance? Zero”.

Referências

FITZGERALD, Francis Scott. The Great Gatsby. New York: Charles Scribner’s Sons, 1925.

MEADOWS, Donella H. et al. The Limits to Growth: a Report for the Club of Rome’s Project on the Predicament of Mankind. New York : Universe Books, 1972.

MILL, John Stuart. Principles of Political Economy with Some of their Applications to Social Philosophy. Vols. I & II. London: John W. Parker, 1848.

NASH, Roderick. American Environmentalism: Readings in Conservation History. New York: McGraw-Hill, 1990.

WORSTER, Donald. A River running West: the Life of John Wesley Powell. New York: Oxford University Press, 2000.

WORSTER, Donald. A Passion for Nature: the Life of John Muir. New York: Oxford University Press, 2008.

Julıana da Costa Gomes de Souza – Universidade de Brasília, Centro de Desenvolvimento Sustentável. E-mail: [email protected]


WORSTER, Donald. Shrinking the Earth: Th e Rise and Decline of American Abundance. London: Oxford University Press, 2016. Resenha de: SOUZA, Julıana da Costa Gomes de. Como chegamos a este ponto?  Varia História. Belo Horizonte, v. 37, n. 74, p. 635-639, maio/ago. 2021. Acessar publicação original [DR]

screver história do direito: reconstrução/ narrativa ou ficção?

Com a publicação do livro de Michael Stolleis (2020)2 a literatura de teoria da história do direito em língua portuguesa ganha um fecundo estímulo.3

O campo da teoria e metodologia da história é uma especialização consolidada, com congressos e periódicos próprios. No Brasil, já há uma volumosa bibliografia a respeito traduzida, com peso maior para a linhagem francesa (de Bloch e Braudel a De Certeau, Ricoeur e Hartog, afora tantos outros), mas também da língua inglesa (Collingwood e Hayden White), italiana (Ginzburg) e alemã (Koselleck e Rüsen)4. Estes textos são referência inescapável para boa parte da pesquisa em história do direito produzida em âmbito universitário entre nós. A lacuna maior se dá justamente para a bibliografia específica de teoria e metodologia da história do direito (Fonseca, 2011; Paixão, 2002).5 Embora sem o nome de fantasia de “teoria da história do direito” ou “legal metahistory”, há muita reflexão metodológica acumulada, com alguma institucionalização6 , se bem que, na maior parte das vezes, esta reflexão ocorre (quando se dá explicitamente) entrelaçada com a pesquisa monográfica sobre um objeto qualquer. O livro de Stolleis, pois, é um convite para uma reflexão atenta e destacada dos pressupostos teóricos e metodológicos da escrita da história do direito em diálogo com a teoria da história. Leia Mais

Los rastros del imperio. El ideario del régimen en las películas de ficción del primer franquismo (1939-1951) – PÉREZ NÚÑEZ (PL)

Jesús Pérez Núñez. Foto: Noticias de Álava /

NUNNEZ J P Los restros del Imperio películas de ficciónDe una manera bastante generalizada, las producciones cinematográficas y del ámbito de la cultura visual suelen ser calificadas de simples (en lo técnico) y estandarizadas (bajo el prisma de la innovación y la originalidad) en España durante los primeros años de la dictadura. En relación a las temáticas y los mensajes de dichas producciones, se suele hablar de instrumentalización política, manipulación de los hechos históricos e ideologización de los referentes culturales.Esa corriente de opinión suele contar con gran aceptación en la mayoría de los casos, pero no profundiza en la efectividad que tuvo el sistema de propaganda sobre las nuevas generaciones y los sectores conservadores adheridos a la causa del Movimiento Nacional. El impacto psicológico fue mayúsculo, en un contexto de euforia inicial (por la victoria en la Guerra Civil) y de desconcierto pesimista (por la situación de aislamiento tras la II Guerra Mundial). Leia Mais

O fio perdido: ensaios sobre a ficção moderna | Jacques Rancière

No início dos anos 1970, Hayden White causara grande agitação entre os historiadores ao demonstrar o recurso destes aos procedimentos e elementos poéticos na construção da narrativa e da interpretação histórica (WHITE, 1992). Trinta anos depois, François Hartog evidenciava, a partir de seus regimes de historicidade, não somente outra faceta da historiografia oitocentista, como também, de modo mais geral, da relação da sociedade ocidental com o tempo histórico. De acordo com Hartog (2013), o regime historicista moderno, marcado por uma concepção de tempo futurista, não se limitava às narrativas historiográficas – ia além, perpassando diversas formas de relação social com a temporalidade, inclusive a literatura.

Contemporâneo de White e Hartog, Jacques Rancière, filósofo francês, foi gradativamente afastando-se do marxismo althusseriano [2] – que marcou o início de seu trabalho – até se aproximar, sobretudo nos anos 1990, das discussões em torno da relação entre estética e política, e mesmo entre a ficção e a historiografia. No âmago dessas reflexões, Rancière (2005) identificou a existência, no Ocidente, de três regimes na produção das artes: um regime ético, cuja base é a filosofia platônica; um regime representativo, orientado pela poética aristotélica; e, finalmente, um terceiro regime, o estético, que é propriamente moderno, e cuja origem encontra-se no questionamento e na subversão da poética representativa. Esses regimes implicam não somente concepções e relações poéticas, mas igualmente políticas, uma vez que o filósofo identifica certa indissociabilidade entre essas esferas. Desse modo, esses regimes são fundamentais na compreensão, tanto da composição poética quanto dos seus desdobramentos críticos em sua recepção. As implicações de sua reflexão, no entanto, não se limitam à ficção e à política, permitindo recolocar em questão a relação entre estas e a história, compreendendo sua articulação, especialmente, no momento da constituição da disciplina ou ciência histórica no século XIX.

Em O fio perdido, um conjunto de ensaios sobre a ficção moderna, Rancière percorre, ao longo de três capítulos, diversos nomes consagrados do romance, da poesia e do drama com o intuito de identificar mecanismos e indícios específicos que demarcam em cada obra e em cada segmento a decadência do regime representativo, centrado no modelo orgânico e na lógica da ação, e a emergência do regime estético que caracteriza propriamente essas ficções como modernas.

O primeiro capítulo da obra, O fio perdido do romance, é aberto por um texto sobre Gustave Flaubert, O barômetro da Sra. Aubain. Nele, Rancière tenta dar conta da novidade contida na obra flaubertiana, identificando-a, primeiramente, a partir das críticas tecidas ao romancista. Logo no início do prólogo do livro, o filósofo recorre à sentença de Barbey d’Aurevilly sobre a Educação sentimental: “não há livro ali dentro; não há essa coisa, essa criação, essa obra de arte de um livro, organizado e desenvolvido, que vai em direção a um desfecho” (1869 apud RANCIÈRE, 2017, p.7). A crítica é sintomática, ela evidencia a cisão que o filósofo identifica na obra do romancista. Conforme afirmava Michel de Certeau (1998, p.91-106; p. 266-268), a crítica pertence ao terreno das táticas, consiste em um instrumento de controle, no caso, não somente das leituras, mas também das práticas de escrita literária. Ela demarca, segundo a própria reflexão rancieriana, uma concepção de ficção literária vigente. Nesse caso, trata-se do regime representativo, presente na poética aristotélica, que define a ficção, positivamente, como uma “intriga de saber” que implica na construção poética o estabelecimento de uma ordem temporal (começo, meio e fim), de uma ordem causal regida pela verossimilhança, pela necessidade, pela subordinação dos detalhes e das partes ao conjunto da obra e também por certa proporcionalidade e correspondência entre a descrição, o pensamento e a ação.

Desse modo, para o crítico de Flaubert, sua obra transgredia esses princípios, logo ela era carente de elementos necessários para qualificá-la enquanto ficção. No entanto, para Rancière, não se trata de uma carência, mas sim do efeito da emergência de um novo “paradigma estético”, que não deixa de ser um “novo paradigma da vida”. Nesse sentido, o excesso descritivo presente no romancista – encarnado na presença do barômetro da sra. Aubain, em Um coração simples –, demarcaria não a deficiência de um elemento destoante e desnecessário, muito menos um efeito de real pelo qual Roland Barthes e a crítica estruturalista estipulavam o lugar da descrição inútil e demarcavam a tentativa burguesa de petrificação e naturalização da ordem social, mas um aspecto próprio ao regime estético.

Essa descrição inútil é, para Rancière, primeiramente a recusa à progressão do relato, e consequentemente uma recusa à ação, à submissão das partes – inclusive do detalhe – ao todo, ou seja, ao desfecho, que marca a poética representativa e seu modelo orgânico. A multiplicidade desses detalhes que antecedem ao ato, à ação, também são sintomas da ampliação e da complexificação das relações causais.

No entanto, segundo o autor, a poética aristotélica não é somente uma estrutura de racionalidade, mas “uma categoria organizadora de uma divisão hierárquica do sensível” (RANCIÈRE, 2017, p.21). Em outras palavras, a ordem representativa, na qual a ficção constrói-se como um corpo no qual os membros se submetem a um centro e as ações se ordenam pela necessidade ou pela verossimilhança, é também a metáfora de uma concepção do ordenamento social, segundo a qual os homens dividem-se hierarquicamente entre ativos e passivos. Nessa ordem, os aristocratas são ativos, pois podem conceber grandes fins ou outros fins e buscar sua realização, enquanto os demais – a grande maioria, o povo – são considerados passivos, não por sua inação, mas porque sua ação não pode conceber outro fim senão a mera reprodução da vida cotidiana (RANCIÈRE, 2017. p. 21). Essa distinção limitava, portanto, o acesso dos passivos à ficção, da qual não eram dignos devido às suas supostas capacidades sensíveis inferiores. É como contraponto a essa “política representativa” que o filósofo propõe sua leitura da obra flaubertiana. Desse modo, não somente o barômetro da sra. Aubain, mas principalmente Emma Bovary, são anunciadores de uma democracia ficcional própria ao regime estético. A presença do barômetro produz um “efeito de igualdade” entre os elementos da ficção, ele não está a serviço do real, nem da ação e muito menos do todo, enquanto Emma marca a igualdade sensível de todos: “a descoberta de uma capacidade inédita dos homens e das mulheres do povo de obter formas de experiência que lhes eram, até então, recusadas” (RANCIÈRE, 2017, p.19). Essa afirmação da capacidade sensível dos anônimos proporciona, de acordo com Rancière, um poder de desidentificação em relação à velha ordem representativa que articulava posições sociais, identidades e capacidades sensíveis. No entanto, esse poder dos anônimos é deles afastado para forjar o “poder impessoal da escrita” (RANCIÈRE, 2017, p.33). Dessa forma, segundo o autor, Flaubert incorpora em sua escrita o poder da “igualdade sensível dos anônimos” e dos “estados sensíveis coexistentes”, mas acaba por submetê-los à “velha lógica da ação” (RANCIÈRE, 2017, p.37).

No texto seguinte, A mentira de Marlow, dedicado à obra de Joseph Conrad, Rancière observa a radicalização desse novo regime da ficção. Se a obra flaubertiana evidenciava a debilidade dos encadeamentos causais orientados pelo necessário e pelo verossímil, próprios a uma concepção orgânica de totalidade (ta katholou), mas também subordinava a ordem das sucessões (kath’hekaston) e das coexistências ao curso de uma intriga ainda causal, os romances de Conrad recusam totalmente qualquer controle que tente se impor à verdade da ficção – que é também a verdade da vida –, ou seja, à ausência de qualquer ordem ou qualquer sentido.

Consequentemente, na obra de Conrad, a ordem que orienta a composição das ficções advém do kath’hekaston, não tomado como mera sucessão de fatos da vida cotidiana, mas como uma ordem das coexistências que não pode ser reduzida a qualquer ordenamento. Uma temporalidade das coexistências substitui, portanto, os encadeamentos possíveis. Mas não somente isso, para Rancière, o ceticismo do romancista inglês conduz a uma indistinção entre a ficção e o real, de modo que este real passa a englobar tudo, inclusive a ficção e o sonho. Dessa concepção ampliada do real decorre a destruição da verossimilhança, e toda a lógica da ação tradicional torna-se o indício de uma mentira. Mentira não somente sobre a ficção, mas principalmente sobre a própria vida.

Por conseguinte, de acordo com o filósofo francês, a narrativa de Conrad compõe-se, contrariamente à escrita de Flaubert, de modo a ampliar os círculos das coexistências, revelando-as e evidenciando a tirania mentirosa das intrigas bem construídas. Portanto, a ficção não deve mostrar a progressão rumo a um desfecho, mas tão somente esse “meio sensível” que é a própria vida, cuja única temporalidade é o presente, um presente que engloba tanto resquícios do passado quanto antecipações do futuro. Ela torna-se, desse modo, palco “de um encontro aleatório e inevitável entre um ser de desejo e de quimera, e uma realidade cuja síntese escapa a qualquer cálculo das causas e dos efeitos” (RANCIÈRE, 2017, p.54).

Contudo, Rancière indica que essa temporalidade das coexistências que recusa qualquer sentido, controle ou finalidade encontra certos limites impostos pela ficção. Um deles é o “fim”. Desse modo, se a mentira dos inícios é contornada por Conrad ao iniciar suas ficções com algum equívoco ou acaso desdobrando-o, a necessidade do ponto final, sempre mentiroso, não faz o romancista recuar em sua convicção. Pelo contrário, para o filósofo, os fins das ficções do capitão Conrad sempre reafirmam sua concepção mesmo quando mentirosos. Esses artifícios para encerrar o livro são basicamente dois: o recurso a um deus ex machina ou à mentira necessária (como no caso de O coração das trevas) que deixam transparecer, no entanto, a verdade da ficção.

O último texto do primeiro capítulo do livro aqui resenhado, A morte de Prue Ramsay, analisa a obra de Virginia Woolf. A romancista partiria, segundo a leitura rancieriana, dos mesmos pressupostos de Conrad. Dessa forma, a imagem que lhe traduz a verdade da vida e, conseguintemente da própria ficção, é a da “chuva sempre cambiante de acontecimentos sensíveis” e impessoais (RANCIÈRE, 2017, p.39). A verossimilhança e a necessidade não podem, portanto, regular a ficção, pois tanto a vida quanto a ficção pertencem à ordem do kath’hekaston (entendido como coexistência). Consequentemente, a intriga torna-se, para Woolf, uma tirania, que pode ser: paterna, em sua forma clássica; ou materna, em sua forma contemporânea, aquela que “ordena a grande rede das coexistências” e reduz a “chuva anárquica dos átomos às pequenas coisas e aos pequenos milagres da vida cotidiana” (RANCIÈRE, 2017, p.60).

Entretanto, o autor observa que a forma desta “chuva anárquica de átomos” é incompatível com a forma narrativa da ficção que precisa de uma mínima organização de ações. Nesse caso, a saída encontrada nos romances de Woolf consiste na prática de instaurar no próprio romance a “tensão entre várias maneiras de inscrever a chuva de átomos” (RANCIÈRE, 2017, p.64). Nessa prática, o filósofo distingue dois procedimentos complementares: por um lado, a multiplicação, pela qual se ampliam as redes das coexistências que conservam sua autonomia escapando a tirania de uma intriga que busca apropriar-se dessa multiplicidade; por outro lado, opera-se uma divisão, pela qual se separa a multiplicidade que evidencia o amor e a vida universais dos “prazeres conhecidos e das virtudes familiares” (RANCIÈRE, 2017, p.69) que compõem a tirania materna da intriga, mas também do equívoco dos que confundem toda multiplicidade da vida impessoal com mensagem individual, apropriando-se dela e submetendo-a a qualquer pessoalidade. Septimus Warren Smith, personagem de Mrs. Dalloway, vítima dessa segunda indistinção que se torna loucura, é também, aos olhos do filósofo, uma figura essencial da nova ficção, pois seu sacrifício resolve a “relação entre a verdade da chuva de átomos e a lógica mentirosa das intrigas” (RANCIÈRE, 2017, p.72), e impede igualmente que “o halo luminoso da vida universal” seja confundido com as “aspirações pessoais dos filhos do povo semieducados” (RANCIÈRE, 2017, p.74).

O segundo capítulo do livro, A República dos poetas, é composto por dois textos. O primeiro deles, O trabalho da aranha, é dedicado à obra de John Keats. Keats encarna, aos olhos de Rancière, uma das novidades do regime estético, pois ele é antes de tudo, como Emma e Septimus, um “filho do povo” que, no entanto, recusa a posição e a identidade que, de acordo com a ordem clássica, o nascimento lhe impunha. Contudo, a política de sua poesia, conforme assinala o filósofo, não se encontra na articulação do poema com as agitações sociais, os posicionamentos políticos, ou em seu sentido, mas em uma “identidade dos contrários” (RANCIÈRE, 2017, p.81).

Essa identidade dos contrários não os relaciona como “antípodas”, mas como “equivalentes”. Ela subverte a lógica da ação tradicional ao equiparar a atividade com a passividade, mais precisamente, ao fazer perceber na ação o seu contrário, a passividade, e nesta última um caráter ativo, liberto, no entanto, da necessidade dos fins ou da função utilitária que caracteriza a ação na ordem clássica. Essa subversão é observada por Rancière na “negative capability” forjada por Keats, a qual consiste em uma “‘capacidade de não’: não buscar uma razão […], não concluir, não decidir, não impor” (RANCIÈRE, 2017, p.85). Tal recusa à determinação é uma marca da própria estética e sua disponibilidade a todos destrói a “diferença sensível entre duas humanidades”, aquelas que orientavam o regime representativo e a “distribuição dos corpos em comunidade” (RANCIÈRE, 2017, p.86).

Na leitura rancieriana, essa identidade é produzida pelo estabelecimento de três formas de comunidade: a primeira é aquela estabelecida “entre os elementos tecidos pelos poemas: as palavras e a presenças que elas suscitam”; a segunda comunidade se constitui “entre os poemas e outros poemas: os que o poeta escreve e os que ele não escreveu”; a terceira forma de comunidade é “aquela que o modo de comunicação sensível próprio do poema projeta como possível comunicação entre os humanos”. A política do poema consiste, portanto, na “configuração de um sensorium específico que mantém juntas essas três comunidades” (RANCIÈRE, 2017, p.81-82).

Desse modo, a imagem que define, em grande medida, a interpretação que Rancière faz de Keats é da teia de aranha, pois ela pressupõe uma igualdade horizontal, a qual desconhecia qualquer superioridade, e que se opunha, a seu tempo, à igualdade vertical ou cristã, proclamada por Willian Wordsworth, que a reconhecia como concessão ou presença divina comum, o que evidenciaria, segundo Rancière, uma superioridade do poeta que a proclama. A igualdade da teia liberta, dessa forma, as sensações de qualquer identificação pessoal e faz da obra poética uma disponibilidade acessível a cada um, pela igualdade sensível, para integrar suas teias.

O outro texto desse segundo capítulo, O gosto infinito pela República, é dedicado a Baudelaire. A expressão que dá título ao ensaio, tomada do próprio poeta que a utiliza para caracterizar a obra de Pierre Dupont, serve igualmente a Rancière para caracterizar uma categoria estética ou uma política estética presente na obra baudelairiana, que marca a participação de todos na Vida Universal, esta compreendida como um poder que perpassa e iguala a todos.

Entretanto, para compreender esse “republicanismo estético” é preciso, afirma o filósofo, distanciar-se da “interpretação benjaminiana”, demasiadamente centrada no “dado antropológico constitutivo da modernidade: o da perda da experiência, produzida pela reificação mercantil e pelo encontro da cidade grande e da multidão” (RANCIÈRE, 2017, p.103). Desse modo, essa interpretação que percebia nos escritos do poeta a substituição do modelo orgânico por um modelo inorgânico é incapaz de perceber a novidade contida em sua obra ou, mais precisamente, o “tecido estético” dentro do qual esse republicanismo ganha sentido.

Para apresentar esse “paradigma poético” da época, Rancière analisa os temas do heroísmo e da beleza modernos. O que ambos evidenciam e que permeia toda a época romântica é a falência da ação, da ação como modo de pensamento e racionalidade que normatiza os “comportamentos sociais legítimos” e a “composição das ficções” (RANCIÈRE, 2017, p.108). Essa falência é, para o filósofo, fruto do excesso, da ampliação e complexificação do mundo e do conhecimento, pois a ação demandaria “um mundo finito”, “um saber circunscrito”, “causalidades calculáveis” e “atores selecionados” (RANCIÈRE, 2017, p.108). A leitura rancieriana de Baudelaire é, consequentemente, tributária de Balzac, pois seria dele que o poeta teria tomado não somente a característica da beleza moderna, ou seja, o “flutuante”, a fugacidade, mas, sobretudo, a percepção do divórcio entre o saber e a ação. Em outras palavras, desde Balzac o mundo social perdera-se gradativamente em “infinitas ramificações”, e o tema perdera-se, igualmente, em uma “rede infinita de sensações” (RANCIÈRE, 2017, p.111-112), tornando o tecido sensível incompatível com a ação clássica. Essa ampliação também produziria um efeito de desidentificação, positivado pelo filósofo. A multidão, portanto, não igualaria a todos, mas, pelo contrário, o olhar sobre ela abrir-se-ia para a sua multiplicidade.

No último capítulo de O fio perdido, O teatro dos pensamentos, Rancière analisa a relação entre “o pensamento, a palavra e a ação no teatro moderno” (RANCIÈRE, 2017, p.123) ou, mais precisamente, no chamado teatro popular. Sua análise parte do diagnóstico, dado por Barthes, de “aburguesamento” do Théâtre National Populaire (TNP), de Jean Villar, sobretudo pela atuação de Gérard Philippe, seu maior astro nos anos 1950, para retomar a longa história do teatro moderno.

O primeiro protótipo do teatro popular é encontrado por Rancière no princípio do “palco aberto”, formulado por Victor Hugo. Este consistiria não somente na destruição das convenções ligadas aos gêneros, mas na “mistura de tudo” como na vida, “um igualitarismo radical” (RANCIÈRE, 2017, p.126). Esse palco aberto ao povo celebrava, no entanto, algo maior que ele. Celebrava, segundo tal leitura, a vida universal que ultrapassa todas as individualidades, constituindo uma dramaturgia da coexistência.

Porém, a reflexão de Hugo detém-se aí. O teatro representa, contudo, não apenas uma metáfora do ordenamento social, mas é também uma metáfora do pensamento, afirma o filósofo. Nesse sentido, duas imagens governaram historicamente a relação entre pensamento e teatro: uma negativa ou platônica opõe um ao outro, fazendo do teatro o reino da imagem, da mentira do poeta e do ator, da ilusão e da passividade, do excesso e da paixão, o contrário do pensamento; e há uma imagem positiva, a aristotélica, que faz do teatro uma “intriga de saber”, um “modelo de racionalidade”, ou do “pensamento em ato”, no qual “o espaço visível da representação é dado como o lugar de efetuação de um esquema” e a palavra adere e expressa o pensamento, controlado por uma vontade, anunciando o ato (RANCIÈRE, 2017, p.128-29). A subversão da segunda imagem dessa relação é encontrada por Rancière nos trabalhos de George Büchner. Em sua obra o modelo orgânico é substituído por um modelo vivo, resultado de uma nova concepção do meio da ficção, não mais entendido como intervalo entre um início e um fim, mas como uma rede infinita que ultrapassa qualquer forma de unidade, seja a do organismo seja a da ação.

O pensamento torna-se desse modo, sinônimo do excesso, afirma o filósofo. Suas operações infinitas excedem o corpo, a palavra, o gesto e o ato, e a sua origem e fim imprecisos impedem que qualquer vontade possa controlá-lo. Isso não significa que ele não age, mas que o modelo de sua ação verdadeira, aquele que desconhece suas origens e fins, opõe-se à forma da ação racional controlada do modelo aristotélico, e a sua nova forma será, pelo contrário, a do sonho ou do sonambulismo. Essa nova imagem do pensamento faz da imagem aristotélica do teatro como “intriga de saber” uma mentira, um equívoco sobre a natureza, a forma e a origem do pensamento, bem como sobre o modo como ele ganha corpo e age.

Como consequência dessa nova concepção do pensamento no palco, Rancière observa o surgimento de uma “arte da direção” que compreende duas modalidades: a primeira, presente nas reflexões de Maurice Maeterlinck, faz da direção a “arte da disposição das palavras no espaço” (RANCIÈRE, 2017, p.142), atribuindo à palavra não uma função de anunciar o pensamento ou o ato, mas de evidenciar o meio sensível, o “fora-do-espaço”, que é o lugar desse pensamento tomado como excesso. Ela demarca, dessa forma, a distância entre o verdadeiro pensamento e as pretensões da intriga clássica. Asegunda modalidade é proveniente, entre outros trabalhos, das atuações de Jean-Gaspard Deburau no Théâtre dês Funambules, e “consiste em bordar na trama ficcional das causas e efeitos um cenário de pura atuação”, uma atuação que consiste não na representação, mas na pura ação dos corpos (RANCIÈRE, 2017, p.144-45).

O teatro moderno que culmina no TNP é, portanto, marcado por essa disjunção entre o pensamento, caracterizado pelo excesso, a palavra, cuja função é evidenciar a distância que marca o meio seio sensível do palco, e o ato, tomado como pura atuação dos corpos. Para Rancière, essa longa história é ignorada no juízo de Barthes, que toma por base a oposição brechtiana entre um teatro da identificação e um teatro do distanciamento, pela qual Brecht buscava restabelecer o vínculo entre o prazer estético e o saber necessário para a ação revolucionária. Essa oposição omite essa história, pois, como concepção “revolucionária”, ela busca restabelecer a velha lógica da ação em crise desde o século XVIII. Desse modo, a “questão pela qual a política está ligada ao teatro não é saber como sair do sonho para agir na vida real; é a de decidir o que é o sonho e o que é a vida real” (RANCIÈRE, 2017, p.149).

Embora O fio perdido de Rancière consista em um livro dedicado à ficção, sua leitura inquietante não se limita aos interesses do crítico literário ou do ficcionista, indo além desses limites. Ao reconhecer, como White, que a constituição da História, e mesmo, das Ciências Sociais, enquanto saberes e disciplinas modernas ou ciências é tributária do modelo da poética tradicional, centrado na lógica da ação e da intriga causal, e que a própria poética representativa é igualmente uma concepção de comunidade ou de um ordenamento social, Rancière fornece novos elementos para a compreensão de aspectos que permeiam a constituição do campo de trabalho e das práticas dos historiadores. Desse modo, cabe também questionar, a partir desses indícios da falência da ação e desses deslocamentos nas práticas da escrita ficcional, suas possíveis consequências no campo da historiografia e das ciências da sociedade.

É intrigante, igualmente, refletirmos acerca dos contrastes entre, de um lado, essa emergência de um regime estético na ficção desde o final do século XVIII, identificada nesse conjunto de ensaios de Rancière, cuja marca fundamental consiste em uma crescente abertura, pluralização ou multiplicação heterogênea do social, da noção de acontecimento e de pensamento, e do próprio vínculo entre pensamento, palavra e ação. Por outro lado, no que tange à historiografia, mas também à ampla parcela do pensamento filosófico, sociológico e antropológico, observamos, nesse mesmo período, um crescente processo de unificação, homogeneização e hierarquização da temporalidade histórica e do conjunto dos recursos conceituais de análise histórica, sociológica e antropológica. Portanto, trata-se de uma leitura fundamental, pois implica um conjunto de problemas cruciais às ciências humanas tanto em sua origem quanto na contemporaneidade.

Nota

2 Rancière participou inclusive do primeiro volume da obra Ler O capital, coordenada por Louis Althusser (1979).

Referências

ALTHUSSER, Louis; RANCIÈRE, Jacques; MACHEREY, Pierre. Ler O Capital. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1979. 1v.

CERTEAU, Michel de. Fazer com: usos e táticas. In: ______. A invenção do cotidiano: Artes do fazer. 3. ed. Petrópolis: Vozes, 1998. p. 91-106

. ______. Ler uma operação de caça. In: ______. A invenção do cotidiano: Artes do fazer. 3. ed. Petrópolis: Vozes, 1998. p. 259-276.

HARTOG, François. Regimes de historicidade: presentismo e experiências do tempo. Belo Horizonte: Autêntica, 2013.

RANCIÈRE, Jacques. O fio perdido: ensaios sobre a ficção moderna. São Paulo: Martins Fontes, 2017.

______. A partilha do sensível: estética e política. São Paulo: Editora 34, 2005.

______. O conceito de anacronismo e a verdade do historiador. In: SALOMON, Marlon (Org.). História, verdade e tempo. Chapecó: Argos, 2011. p. 21-49.

WHITE, Hayden. Meta-História: a imaginação histórica no século XIX. São Paulo: Editora da USP, 1992.

Cássio Guilherme Barbieri – Mestrando no Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Ciências Humana da Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS) – Campus Erechim. Graduado em História pela UFFS – Campus Chapecó. É membro do Laboratório Escrita, Memória e Arte (LEMA) e do Grupo de Estudos Teoria da História, ambos vinculados ao Curso de História da UFFS. E-mail: [email protected]


RANCIÈRE, Jacques. O fio perdido: ensaios sobre a ficção moderna. São Paulo: Martins Fontes, 2017. Resenha de: BARBIERI, Cássio Guilherme. Estética, política e historiografia: indícios da emergência do regime estético na ficção moderna. Aedos. Porto Alegre, v.11, n.25, p.627-636, dez., 2019. Acessar publicação original [DR]

História e Ficção em Paul Ricoeur e Tucídides | Martinho T. M. Soares

Em sua tese de doutoramento na Universidade de Coimbra, Portugal, Martinho Soares aborda uma lacuna relevante na história da teoria contemporânea da historiografia: o papel do paradigma historiográfico de Tucídides nas reflexões do filósofo Paul Ricoeur; o primeiro uma referência clássica que resiste pertinente e atual há milênios, o segundo talvez quem melhor sintetizou a polêmica sobre a relação entre histórica e ficção ao longo do séc. XX. O objetivo é em si problemático: Soares está ciente que Ricoeur cita Tucídides apenas em notas, não dedica nem uma página para análise específica de sua obra, e não apresenta indícios de conhece-la a fundo, para além de alguns de seus comentaristas modernos mais ilustres (SOARES, 2014, p.23). No entanto, Tucídides é um marco inaugural, exercendo inegável influência em intelectuais com quem Ricoeur dialoga, principalmente historiadores e teóricos modernos que o viam como paradigma de historiografia antiga. Se o filósofo moderno foi a pedra angular nos intensos debates do séc. XX sobre história e ficção, os estudos sobre a fortuna crítica da obra História da Guerra do Peloponeso extrapolam o próprio ambiente acadêmico, como demonstram os constantes apelos às lições tucideanas em situações geopolíticas contemporâneas2. Para cumprir tal tarefa Soares divide seu livro em duas partes: a primeira, mais longa, dedica-se exclusivamente à Ricoeur; a segunda aborda Tucídides, mas seguindo uma estrutura organizacional estabelecida com base na leitura da obra ricoeuriana.

A primeira parte é a própria sistematização da contribuição do filósofo francês que, nas palavras de Soares (2014, p.18), serviu de “pretexto para uma compilação, inédita em Portugal, de teorias (e pensadores), ora complementares ora antagônicos, sobre história e ficção”. Em quatro capítulos, Soares refaz o longo percurso da contribuição ricoeuriana: começa em Histoire et Vérité (1964) no capítulo I, passando pelos três volumes de Temps et Récit (1983- 1985) nos capítulo II e III, e finalmente se concatena em La mémoire, l’histoire, l’oubli (2000) no último capítulo desta primeira parte do livro de Soares.

No capítulo I são abordadas as primeiras reflexões de Ricoeur sobre objetividade e subjetividade na interpretação histórica, que desembocam no capítulo II sobre a dialética entre explicação e compreensão histórica. Este segundo capítulo refaz o percurso duplo de Ricoeur que perpassa, de um lado, o eclipse da narrativa histórica, o qual envolve tanto a historiografia francesa dos Annales quanto o modelo nomológico de língua inglesa; e de outro lado, as teses narrativistas que, oriundas da filosofia analítica e da crítica literária, focam no papel da narrativa na historiografia, cujos nomes mais conhecidos são Hayden White e Paul Veyne.

A concepção narrativista, que pode ser simplificada na máxima “narrar já é explicar”, torna opaca a fronteira entre história e ficção, o que certamente serve de gatilho para a maior parte das reflexões de Paul Ricoeur. Contra ambas tendências – rejeitar a narrativa histórica em prol de seu caráter científico ou ofuscar seu caráter veritativo por conta da sua dimensão narrativa – Ricoeur interpôs sua dialética sobre o papel da compreensão narrativa à explicação histórica, restaurando a função da ficção na configuração narrativa histórica. O saber histórico procede da compreensão narrativa, resguardando seu caráter investigativo alicerçado na interpretação dos traços do passado, prática na qual a intenção do historiador não deixa de ter sua marca subjetiva, sem negar seu caráter epistêmico (SOARES, 2014, p.53, 76). Assim, Soares revisita as teses de Ricoeur de forma a sedimentar os instrumentos de análise com o qual abordará a obra tucideana.

Se a história precisa de narrativa para ser compreendida, a última não deixa de definirse pela sua relação com o tempo. O capítulo III de Soares concentra-se no itinerário de Ricoeur sobre o tempo desde a dimensão fenomenológica (tempo vivido) até histórica (tempo histórico e narrado). Soares sintetiza ideias já conhecidas de Ricoeur sobre a distentio animi de Agostinho de Hipona, a teoria das três mimeses e as abordagens da ficção do século XX sobre as aporias do tempo vivido, de forma a desembocar no axioma de que o tempo se torna humano na medida em que é articulado de modo narrativo. Deste longo percurso, Soares retém a narrativa enquanto tríplice mimese da prefiguração ética, configuração narrativa e refiguração receptiva (ou leitura). Tal tríplice noção de narrativa organiza a leitura que Soares faz da História da Guerra do Peloponeso na segunda parte da obra. Na fase final da vida intelectual de Ricoeur, o prestígio da narrativa havia se restabelecido na historiografia francesa, devido a fatores que vão do ressurgimento da história política, e perpassa a micro-história e principalmente a predominância do conceito de representação histórica. Daí que Soares concentre-se no capítulo IV sobre os conceitos de representação e representância, especialmente se a narrativa histórica e seu encadeamento do tempo resolve (ou não) as aporias da representação mnemônica enquanto presença do ausente. A questão envolve debates éticos intensos sobre a possibilidade de representação do holocausto judeu e o risco do fortalecimento do negacionismo histórico, com as teses narrativistas que ofuscam a fronteira entre histórica e ficção. Até aqui, pode-se parabenizar a leitura industriosa que Soares faz de Paul Ricoeur, mas não sem notar o longo percurso percorrido até finalmente concatenar tais reflexões com o texto tucideano.

A segunda parte volta-se para Tucídides em dois capítulos. O primeiro se preocupa com a noção de história e verdade na obra, revisitando discussões já consagradas sobre a noção de “ktema es aei” (tesouro para sempre) e sobre o procedimento de composição dos discursos na História da Guerra do Peloponeso. O segundo capítulo se desdobra na aplicação dos três estádios ricoeurianos da operação historiográfica na obra: a fase documental (prefiguração compreendida como testemunhos, indícios e prova documental), a fase narrativa, (explicaçãocompreensão e configuração narrativa), e a fase da refiguração ou leitura, que concentra-se nas estratégias retórico-persuasivos e seus efeitos de “fazer ver” (SOARES, 2014, p.405-406). Em contraste com Heródoto, Tucídides é lacônico e reticente ao expor suas fontes e procedimentos de investigação, logo Soares admite e enfatiza as dificuldades em abordar a metodologia histórica da obra, bem como sua inadequação para os parâmetros modernos (2014, p.502-504, 545-549). A leitura de Soares, portanto, desenvolve-se melhor quando aborda as estratégias persuasivas do autor ateniense, de forma a encontrar nelas ecos das teses de Ricoeur.

O estudo é industrioso e pertinente, mas desmembrar a análise em duas partes acaba por ser simultaneamente uma qualidade e um defeito da pesquisa. Sua exposição sobre Ricoeur revela excelência e domínio das discussões, por outro lado, alonga-se demasiadamente divorciada do seu segundo objeto de pesquisa. Isto significa que não teremos notícias de Tucídides pelas 360 páginas e 4 capítulos que compõem a primeira parte da obra. Da segunda parte, somente o segundo capítulo propõe interpelação direta entre Ricoeur e Tucídides, ou seja, de um volume de 600 páginas o leitor pode esperar tal confronto apenas na última centena, e ainda assim de forma tímida, ao que se segue uma conclusão extremamente sucinta.

No entanto, as sendas abertas pela pesquisa de Soares são profícuas, por exemplo, na abordagem do método de composição de discursos de Tucídides (I. 22.1-2) à luz das teses ricoeurianas. Desde Heródoto a dramatização (no sentido de “representação da ação”) de discursos e debates oratórios são conectores de acontecimentos que conferem sentido a estes tanto progressivamente (antecipam fatos ainda não narrados) como regressivamente (julgam e explicam fatos já narrados), assim o historiador revela ao leitor as disposições dos agentes históricos frente a uma ação inacabada, bem como expectativas frustradas ou não pelos acontecimentos desenrolados (SOARES, 2014, p.454-455). Ainda que construção subjetiva, os discursos ligam-se à interpretação dos acontecimentos, na medida em que funcionam como narração-explicação do sucesso ou insucesso das ações (SOARES, 2014, p.479). Tucídides na sua escrita não procura a descrição asséptica de acontecimentos, mas enreda-os narrativamente. Tal procedimento revela ressonância evidente com a tríplice mimese ricoeriana, na medida em que exige do historiador uma prefiguração ética na avaliação e seleção das fontes e traços do passado, bem como uma configuração narrativa na forma de ação (discurso e acontecimento), e por fim, subscreve a intenção deste em elementos persuasivos que visam alcançar a refiguração do leitor capaz de reconhecer o que foi ali prefigurado e configurado.

Soares desdobra-se com competência na apresentação destas questões, no entanto, lidar simultaneamente com a tradição milenar da hermenêutica tucideana e a profundidade das discussões de Ricoeur é, de fato, muito trabalhoso, e a pertinência destas fontes acaba por ofuscar a marca autoral de Soares. O diálogo entre duas referências fundamentais para a historiografia, no qual consiste a originalidade da obra, acaba ficando frágil na separação rígida das duas partes do livro.

Soares ressalta especialmente o papel da narrativa como uma forma da história “cativar o público”, “se dar a ler” (2014, p.30), em suma, “uma forma estilizada de apresentar a verdade”, sendo esta a “tese maior” que pretende expor (2014, p.483), e defende enfaticamente a fronteira entre história e ficção, e talvez por isso privilegia a função ornamental e persuasiva da narrativa. Afirmar isto parece subestimar o papel da narrativa na configuração do tempo histórico: as reflexões de Ricoeur e a metodologia de Tucídides apontam que a ficcionalização dos fatos está para além da persuasão e do elemento imagético (ou cor local) da história: ela é a forma privilegiada de expressar o pensamento e a compreensão do historiador sobre as ações humanas no tempo, resolvendo poeticamente o embaraço da distentio animi agostiniana e a própria noção aristotélica de história enquanto narrativa episódica, sem vínculo com o provável e o necessário. Sua discussão do confronto entre a Poética aristotélica com a obra de Tucídides (2014: p.552-565) faz excelente balanço bibliográfico da questão, mas não responde se Tucídides almejava configurar um tempo histórico nos moldes ricoeurianos a partir das suas generalizações, ou se ele de fato tentava se aproximar do cronista imaginado por Aristóteles que narra indiscriminadamente o que “Alcibíades fez ou sofreu”. Soares opta por descrever Tucídides como parte poeta e parte historiador (2014, p.561-565), e por fazer eco às teses que Aristóteles não reconhecia nele um historiador, mas sim um pensador político (2014, p.552- 558).

Esta indefinição, no entanto, tem implicações. Por exemplo, Soares afirma, com base em A. W. Gomme (1954), que os contrastes dramáticos de Tucídides residem nos próprios acontecimentos que “se sucedem no tempo, sem nada de relevante entre eles” (SOARES, 2014, p.492), o que faz parecer que o historiador apenas revela os acontecimentos sem precisar configurá-los narrativamente. Isto deixa em segundo plano a configuração narrativa que Ricoeur extrai da Poética de Aristóteles (“um por causa do outro” ao invés de “um depois do outro”) e faz parecer que Tucídides seguia uma sucessão natural dos eventos, e nãos os compôs e enredou numa síntese do heterogêneo. Tucídides poderia ter apresentado outros eventos menores entre a sucessão, poderia ter-se dado às digressões tipicamente herodoteanas, mas é na disposição das ações que reside o efeito dramático alcançado, que não se pode atribuir aos próprios acontecimentos sem subestimar o papel da configuração narrativa, que Soares claramente não ignora de todo, mas ao longo do texto dá mais ênfase ao seu papel ornamental e persuasivo, especialmente na sua discussão sobre o “fazer ver” o passado, sua exposição sobre os conceitos de enargeia e ekphrasis (2014, p.582-595).

Em conclusão, Soares faz justíssima representação das teses ricoeurianas e das principais discussões em torno da obra de Tucídides, mas na hora de enredá-las em conjunto na sua própria configuração narrativa, oferece ao leitor uma interpretação que, por vezes, subestima a complexidade da configuração narrativa histórica enquanto síntese do heterogêneo e ordenador do tempo humano e histórico, ao menos no que diz respeito na sua interpelação das teses ricoerianas com o texto tucideano. Esta característica não apaga o brilho das conquistas de Soares, pois o leitor da sua obra pode esperar excelente abordagem da contribuição de Ricoeur sobre história e ficção, bem como uma expedição competente aos debates em torno da obra tucideana, cuja sombra projetou-se desde as teorias positivistas e metódicas da história do séc. XIX até as teses narrativistas que agitaram o debate historiográfico no séc. XX.

Nota

2. Para um estudo de dois casos relevantes nos quais o paradigma tucidideano foi invocado em contextos geopolíticos contemporâneos ver PIRES, Francisco Murari. “O General Marshall em Princeton, Tucídides na Guerra Fria”. História da Historiografia n. 2, 2009, pp. 101-115.

Referências

GOMME, A. W. The Greek atitude to poetry and history. Berkeley: University of California Press: 1954

RICOEUR, Paul. Histoire et Vérité. Paris: Seuil, 1964 (2003).

______. Temps et Récit – Tome I. Paris: Seuil, 1983 (2005).

______. Temps et Récit – Tome II. Paris: Seuil, 1984 (2005).

______. Temps et Récit – Tome III. Paris: Seuil, 1985 (2005).

______. La mémoire, l’histoire, l’oubli. Paris, Seuil, 2009.

SOARES, Martinho T. M. História e Ficção em Paul Ricoeur e Tucídides. Fundação Eng. António de Almeida: Porto, 2014, 638 pp.

Denis Renan Correa – Professor Adjunto II na área de História Antiga e Medieval na Universidade Federal do Recôncavo da Bahia e estudante de doutoramento da Universidade de Coimbra.


SOARES, Martinho T. M. História e Ficção em Paul Ricoeur e Tucídides. Porto: Fundação Eng. António de Almeida, 2014. Resenha de: CORREA, Denis Renan. História e Ficção em Paul Ricoeur e Tucídides por Martinho Soares. Aedos. Porto Alegre, v.11, n.24, p.388-393, ago., 2019.Acessar publicação original [DR]

A vista particular | Ricardo Lísias

Centro Livre de Expressão Intervenção na Praça da Sé SP 1979 e1594138843669 películas de ficción

Centro de Livre Expressão (CLE), intervenção na Praça da Sé, em São Paulo, intitulada Páginas Escolhidas, um dos pré-eventos que anunciavam o Evento de Fim de Década, 1979.

A arte como intervenção é uma questão antiga, embora siga atual e relevante. E a literatura desempenha um papel muito especial nesse debate. Se o paradigma da ficção realista vem fazendo água há tanto tempo, é porque modernamente não caberia mais, à literatura, reproduzir com fidelidade o mundo. Ninguém hoje defende o romance como grande mural da sociedade burguesa, como se lhe coubesse, exclusivamente, desvendar o drama do sujeito num mundo individualizado. De forma diversa, o escritor moderno instaura, em pleno gozo do caráter artificial de sua produção, um outro mundo, encravando-o no que cotidianamente chamamos de realidade. Resta lembrar que o “modernamente”, aqui, refere-se a um projeto mais que centenário de literatura moderna. Ou talvez se trate de uma potência ainda mais antiga, que aponta para os primeiros tempos do que orgulhosamente chamamos de era moderna. Mesmo evitando a mitologia dos momentos fundacionais, é difícil escapar da ideia de que Cervantes terá sido um dos primeiros autores a brincar livremente com as traves do próprio artifício literário, vendo nelas uma espécie de prisão fantástica, invenção que ameaça tomar o sujeito para transformá-lo em outra coisa. Ninguém escapa do mundo ficcional moderno: nem os personagens, nem o escritor, que se torna, ele mesmo, personagem.

O trabalho minucioso diante dos limites da ficção não é novo para Ricardo Lísias. Mas está claro, ao menos para o autor, que o rótulo da “autoficção” é insuficiente para compreender sua prosa. Para além do debate sobre a autobiografia, o que está em questão, no caso de Lísias, não é a contaminação do texto pela “realidade” vivida pelo autor, mas sim a possibilidade de se inventar um mundo completamente diferente do nosso, embora, ao mesmo tempo, incrivelmente próximo e passível de reconhecimento. É como se identificássemos cada milímetro do que é narrado, enquanto somos levados, sub-repticiamente, a um universo de absurdos que nos faz pensar que o que vemos através das lentes da ficção não é real. Ou será real? Leia Mais

História e Psicanálise: entre ciência e ficção | Michel de Certeau

“O que fabrica o historiador quando “faz história”? Para quem trabalha? Que produz?”2. Essas são as questões que norteiam a célebre obra de Michel de Certeau A Escrita da História onde aponta as principais características da “operação historiográfica” e os caminhos traçados pela historiografia no século XX. O autor, porém, não se limitou a esse trabalho, produziu uma vasta bibliografia resultante de sua reflexão sobre a elaboração do conhecimento histórico. Por volta de 1982 buscou dar continuidade a esse livro, através de uma coletânea que comporia um segundo tomo que nunca chegou a ser publicado pelo próprio autor3. Nesse volume reuniria vários artigos que tratariam da relação entre a história e a psicanálise. Após sua morte, em 1986, esse projeto foi retomado numa obra póstuma juntamente com outros artigos de sua autoria, todos já publicados, e que tratavam da mesma temática. Assim, em 1987 foi publicado em francês, pela editora Gallimard, a primeira edição de Histoire et psychanalyse entre science et fiction. Em 2002 foi lançada na França uma nova edição, revista e aumentada, com a introdução de Luce Giard. Essa edição foi traduzida para o português por Guilherme João de Freitas Teixeira sob o título História e Psicanálise: entre ciência e ficção, publicada em 2011 pela Autêntica Editora.

Nessa obra Certeau utiliza-se da literatura, da literatura psicanalítica, da historiografia e de vários estudiosos das mais variadas formações para estruturar seu pensamento. Encontramos nos seus textos estudos das obras de Freud como A ciência dos sonhos (1900), Totem e tabu (1912-1913), Mal-estar na civilização (1930) e Moisés e o monoteísmo (1939), bem como os diversos textos publicados por Jacques Lacan. E várias referencias de pensadores como Pierre Nora, Lévi-Strauss, Nietzsche, K. Popper, Todorov, Paul Veyne, Roland Barthes, Deleuze e especialmente Michel Foucault.

Neste livro, além das notas de rodapé do próprio autor, encontram-se várias notas do organizador da edição em francês, Luce Giard, geralmente para explicar onde foi inicialmente publicado cada texto e para fazer referências cruzadas ou referencias com outras obras do próprio Certeau. Existem também notas do tradutor quando há dificuldade de encontrar equivalentes entre o francês e o português, quando a tradução não garante todo o significado que existia no significante da língua original, ou nas diversas vezes em que o autor faz trocadilhos. No fim da coletânea nos é apresentada toda a bibliografia de Michel de Certeau. Em seguida, referências de estudiosos do pensamento do autor e por fim as referências bibliográficas das obras citadas no decorrer do livro, tanto pelo autor, quanto pelo organizador. Termina-se o livro com um índice onomástico.

A presente coletânea é composta pela introdução de Giard Um caminho não traçado em que percorre a relação de Certeau com o tema – história e psicanálise – bem como considerações acerca das obras e da vida do autor. Em seguida, uma série de dez capítulos, que foram publicados inicialmente de forma isolada e por diferentes meios, correspondendo a artigos científicos, capítulos de livros e conferências. Existe, contudo, unidade e sentido entre os textos, não apenas pela temática comum que os perpassa, mas também pela possibilidade de ponderar sobre a própria metodologia de Michel de Certeau e de perceber como suas ideias se imbricam em uma trama. Cada capítulo contribui para a maior compreensão do pensamento do autor, não de forma progressiva, pois não existe uma hierarquia entre os textos, mas passamos a perceber como os diferentes textos corroboraram na edificação de uma teoria coerente e complexa. Assim, à medida que os textos nos falam sobre a Escrita da História eles mesmos nos servem de modelo dessa escrita.

Os três primeiros capítulos – A história, ciência e ficção; Psicanálise e história; e O “romance” psicanalítico. História e Literatura – mostram a relação construída pelo autor entre a história e a psicanálise. Todavia, Certeau faz isso de modo cauteloso, sem misturar ou confundir as identidades de cada disciplina. Seu lugar de fala é a história, e deixa isso bem claro. Embora fosse membro participante e ativo da École Freudienne de Paris desde sua fundação, por Jacques Lacan, nunca se fez psicanalista profissional. Percorria por ambas as disciplinas, gostava da fronteira, mas não residia fora de sua formação. Não procurou construir uma epistemologia geral. Sua reflexão como epistemólogo origina-se de seu trabalho enquanto historiador da mística dos séculos XVI e XVII. Ao traçar relações entre a história e a psicanálise, não a faz por simples atração, capricho ou fruto de um insight. Certeau atravessava as disciplinas por necessidade, quando um saber não respondia suas inquietações, buscava satisfazê-las em outra, mas sempre orientado pela história. Desse modo tramitava pela filosofia, teologia, linguística, literatura, antropologia e especialmente a psicanálise.

O autor não busca historicizar a psicanálise, nem pretende criar uma explicação social e histórica para a sociedade contemporânea a partir de uma leitura psicanalista. A novidade do trabalho de Certeau reside na reflexão que realiza das empreitadas de Freud como historiador. De até aonde cabe, ou não, de até aonde soma, ou não, a teoria e metodologia da psicanálise aplicada à operação historiográfica.

Volta-se para o antigo debate entre a história e a ficção. Segundo Michel de Certeau ao realizar a crítica documental o historiador consegue diagnosticar o erro/falso nesses documentos. Esse erro é a ficção, que é transferida para o campo do irreal. O que resta acreditam os historiadores ser o real e, portanto, a verdade, que se dá pela denúncia do falso. Mas o discurso histórico utiliza-se da ficção: a econometria histórica (a suposição do que poderia ser); o uso de metáforas; a possibilidade de mais de uma interpretação. Todavia, o discurso do historiador não se torna uma mentira por se utilizar da ficção, nem abandona o status de ciência, mas é real na medida em que se considera uma representação dessa realidade. O problema reside na lógica adotada pelas ciências positivas que relacionam ficção ao irreal e apenas com Freud que essa relação é revista.

Freud não foi um historiador profissional, mas escreve sobre História, e faz isso com um toque de suspense do romance policial e a inquietação do romance fantástico. No seu fazer histórico ele desorganiza tudo o que os historiadores acreditavam estar arrumado. Ele foi o único autor contemporâneo capaz de criar mitos, no sentido de criar romances com funções teóricas. A psicanálise e a história percebem o tempo e a memória de modos distintos. Contudo, os problemas que apresentam são análogos: tornar o presente capaz de explicar o passado, compreender as diferenças e as continuidades entre as organizações antigas e atuais, construir uma narrativa explicativa. Assim, a questão que vem à tona é: qual o impacto do freudismo nas discussões sobre as relações entre história e literatura?

A literatura é para a história o que a matemática é para as ciências exatas – a forma que torna o discurso inteligível. Mas no discurso freudiano é a ficção que fornece a seriedade científica. A narrativa produzida pela psicanálise, o “romance”, deveria combinar os sintomas da doença (a coleta de dados) com a história de vida/sofrimento do paciente (historicizar seu problema). O estudo tradicional, científico, não acrescentava a historicidade do caso clínico à coleta de dados, portanto dentro do discurso dito científico não entrava a história. Essa historicidade vem para superar o modelo teórico vigente. O “romance” então supera a ciência, pois além da coleta de dados (o factual) ele historiciza o caso. Em Freud, torna-se possível pensar história e ficção.

Os capítulos IV-VI: O riso de Michel Foucault; O sol negro da linguagem: Michel Foucault; e Microtécnicas e discurso panóptico: um quiproquó apresentam os problemas levantados por Foucault em diálogo com as teses de Certeau sobre a história e a psicanálise. Não uma ingênua apresentação das ideias de Foucault, nem mais um dos comentários sobre sua obra, mas uma reflexão do próprio Certeau a partir da leitura de Foucault, de quem não era apenas amigo íntimo, mas um admirador de seu trabalho. As obras de Foucault que alicerçam essa parte da obra são fundamentalmente As palavras e as coisas (1966), Arqueologia do saber (1969) e Vigiar e punir (1975).

Envolvido num certo tom de ironia, Foucault descarta as certezas que o evolucionismo pretende, mostrando certo desprezo pelo postulado de um progresso contínuo. Para ele, todo sistema cultural é uma aposta, por ser incerto e não saber precisamente aonde vai chegar, mas mesmo assim, busca dar um sentido, uma ordem à vida, elaborando um modo de enfrentar a morte. Foucault critica essa ideia de progresso porque ela pressupõe que uma cultura caminha sempre para frente, acumulando e superando a anterior, hierarquizando-as. Contudo, cada cultura oferece ao nosso pensamento um mundo de ordem, o exótico de um pensamento é o limite de compreensão do nosso. E nessa relação de alteridade, percebemos as diferenças culturais e transformamos nossa relação com nossa própria cultura. Nosso mundo de certezas desmancha-se, marcando o fim de um sistema cultural e o início de outro. Nesse processo, palavras e ideias são utilizadas para pensar teoricamente esse novo sistema, e embora tais palavras e ideias existissem nos dois sistemas elas podem alterar o significado por estarem inseridas em ordens de pensamento diferentes.

Dessa estrutura do pensamento de Foucault, Certeau detêm-se em algumas questões de ordem metodológica: a análise histórica deve ser estrutural, ou seja, fazer uma adequação entre significante e significado, pois o significado das palavras é construído historicamente; a noção de periodicidade perpassa erroneamente a ideia de continuidade, de progresso, assim, necessitamos confrontar nosso objeto com outras obras contemporâneas ao próprio objeto, não se concentrando demais no pensamento anterior (as “influências”) e no posterior (nossas próprias ideias, teorias).

Os últimos capítulos: História e Estrutura; O ausente da história; A instituição da podridão: Luder; e Lacan: uma ética da fala/palavra [parole] apresentam a perspectiva teórica de Michel de Certeau pensada em seu próprio objeto de pesquisa, a espiritualidade dos séculos XVI e XVII. Não encontraremos nesses artigos um estudo sistemático sobre essa temática tal como o faz em La Fable mystique: XVIe et XVIIe siècle (1982), por exemplo. O que norteia a composição da obra são as questões de ordem teórica e metodológica. Aqui, Certeau se detém a essas questões mostrando como elas se relacionam ao seu tema de pesquisa, é uma intervenção sobre seu próprio fazer historiográfico.

Certeau ao apresentar seu objeto lembra-nos que essa escolha – não apenas a sua, mas a de todos os historiadores – é uma escolha orientada por uma busca de identidade. Olhamos para o passado buscando algo do presente. Nesse primeiro momento encontramos com o outro por meio de nossa imaginação, reconstruímos um mundo que nunca conheceremos de fato, aí existe um erudito e não um historiador. Nossa busca é como a de um catador, que revira o lixo buscando os restos e sonhando com a casa que nunca terá. O pesquisador permanece o mesmo. Em seguida, com o contato maior com a documentação, numa relação de força, há um estranhamento com o outro e um afastamento de seu mundo. Percebemos que esse mundo nos escapa, que não é como imaginávamos ou como sonhávamos. O objeto de pesquisa se torna um outro, um estranho. Mas o que mudou com relação a nosso primeiro olhar não foi o passado, mas sim a maneira como olhamos para ele, uma mudança do próprio pesquisador diante de sua pesquisa, é nessa transformação que o erudito se torna um historiador. Fazer história é mais que produzir narrativas históricas, é ter consciência de que algo se passou, está morto, e é inacessível como vivo.

O trabalho do historiador deve fazer aparecer a alteridade. A história direciona nosso olhar para o passado a fim de se aproximar do estranho, do “selvagem” que habita as origens. O discurso histórico nos revela essa presença ameaçadora, tal qual a psicanálise, embora se utilizando de diferentes procedimentos. Assim, a concepção de história de Freud não é de uma permanência, mas de uma tensão que organiza uma sociedade ou um discurso.

Michel de Certeau é sem dúvidas um grande erudito e historiador do século XX e suas contribuições para as discussões acerca da teoria da história e metodologia da operação historiográfica estão para além do que conseguimos mapear. Encontramos nessa coletânea um compêndio de vários exercícios intelectuais do autor, uma verdadeira lição de como “fabricar” história. Certeau é comedido em sua escrita, mostra-nos como fazer a relação da história com as várias disciplinas que utilizamos como auxiliares. Escreve sobre teoria, mas preocupado em como essa serviria para resolver problemas do fazer historiográfico. Sua abordagem metodológica busca um entremeio [entre-deux] entre os eruditos do século XVII, os tratados de método do século XX e os pensadores pós-modernos. O caminho que traçou não busca responder definitivamente a toda problemática da Escrita da História, antes, porém insere mais questões para refletirmos e tomarmos consciência do que realmente fazemos ao escrever história, tomarmos consciência da nossa própria narrativa, e assim, como na psicanálise, trazer a tona o que está escondido/ ou o que escondemos no nosso ofício.

Notas

2. CERTEAU, Michel de. A escrita da História. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007. p. 65.

3. GIARD, Luce. Um caminho não traçado. In: CERTEAU, Michel. História e Psicanálise: entre ciência e ficção. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2011. p. 37.

Maicon da Silva Camargo – Mestrando em História. Universidade Federal de Goiás. E-mail: [email protected]


CERTEAU, Michel de. História e Psicanálise: entre ciência e ficção. Trad. Guilherme J. de Freitas Teixeira. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2011.  Resenha de: CAMARGO, Maicon da Silva. Aedos. Porto Alegre, v.5, n.13, p.294-298, ago./dez., 2013. Acessar publicação original [DR]

Hibisco Roxo | Chimanmanda Ngozi Adichie

A resenha aqui apresentada busca analisar o romance “Hibisco Roxo”, primeiro livro da autora africana Chimamanda Ngozi Adichie, lançado em 2003 e publicado no Brasil em 2011 pela editora Companhia das Letras e que conta a história de uma família nigeriana bem sucedida, mas permeada de conflitos a partir dos quais são apresentadas questões inerentes à cultura da Nigéria, bem como problemáticas ocasionadas pelo processo de colonização ocorrido no país.

Para compreendermos a obra em sua totalidade se faz necessário perceber o universo ao qual a autora se insere, a fim de se analisar a dimensão política e militante de sua produção. Chimamanda Ngozi Adichie nasceu em 1977, na cidade de Abba, estado de Anambra, Nigéria. É filha de um professor universitário e de uma administradora. Passou a infância em Nsukka, cidade universitária da região sudeste do país, indo para os Estados Unidos aos 19 anos, onde se formou em escrita criativa pela Universidade Johns Hopkins de Baltimore, além de mestre em estudos africanos pela Universidade de Yale. Leia Mais

K. | Bernardo Kucinski

Uma ficção que preenche as lacunas que a História oficial recusa-se a contar e, ao mesmo tempo, rompe “a muralha de silêncio” (para usar as palavras do Bernardo Kucinski) que ainda está erguida ao redor deste trecho da História brasileira. O livro K. se esforça por re-contar a História da ditadura militar brasileira a partir da visão dos vencidos.

Na introdução, o escritor nos alerta: é um livro de ficção, embora quase tudo tenha realmente acontecido. Após 40 anos do desaparecimento de A. (é apenas a inicial que aparece no livro), a família conseguiu reconstruir um quebra-cabeça cheio de falhas sobre esta história ainda proibida. Sabe-se que ela foi presa pelo Estado, talvez torturada, morta e, seu corpo, foi desaparecido. O esforço de K. (o livro e o personagem) é recriar o “como”. A ficção que busca dar conta do que o real se nega a contar. Leia Mais

Trilogia do controle – LIMA (PL)

Em Trilogia do Controle, composta na década de 1980, pelos livros O controle do imaginário, Sociedade e discurso ficcional, e O fingidor e o censor, Luiz Costa Lima encalça as vias que o levaram a pesquisar sobre o veto à ficção, o controle do imaginário, inquirindo a “qual interesse a que o suposto veto responderia” e “por que seria ele consumado justamente por aqueles que se dedicavam ao poético”.

É um trabalho de fôlego, erudito, crucial não apenas para estudantes ou professores das Letras, mas para todos aqueles que se interessam pelas Ciências Humanas. Costa Lima desvenda como e por que o controle sobre o imaginário traz as relações de poder provenientes do Estado, da Igreja, desde a baixa idade média até a nossa contemporaneidade. O autor, ao estudar o veto ao ficcional, oferta rico estudo das relações entre História e Literatura, suas aproximações e seus distanciamentos, especialmente no que concerne à primeira ser ligada à verdade e à razão, e a segunda ao fingimento e à mentira. Leia Mais

A leitura e seus lugares | Júlio Pimentel Pinto

Júlio Pimentel Pinto, professor do Departamento de História da Universidade de São Paulo (USP), é um historiador que, em sua produção, tem se voltado para os estudos acerca das relações entre a História e a Literatura. Seu trabalho de doutoramento, intitulado Uma memória do mundo: ficção, memória e história em Jorge Luis Borges (publicado pela Editora Estação Liberdade, em 1998), já apresentava um pesquisador instigante, um narrador eficaz e, acima de tudo, um crítico preocupado em não perder a especificidade das áreas pelas quais transita.

Seu trabalho mais recente, A leitura e seus lugares (2004), como o próprio título sugere, reúne ensaios cuja temática principal é a leitura e, mais especificamente, os lugares ocupados por esta prática na historiografia e na ficção. Os textos apresentados no livro – estruturado em quatro blocos ou partes, com três ensaios cada um – foram escritos em diferentes momentos e são, em sua maioria, fruto de reflexão acadêmica (quatro destes textos já haviam sido publicados em revistas especializadas), sendo que cinco dos doze ensaios derivam de cursos de graduação e pós-graduação. Leia Mais