A medicalização da raça: médicos, educadores e discurso eugênico | Vera Regina Beltrão Marques || Higiene mental e eugenia: o projeto de “regeneração nacional” da Liga Brasileira de Higiene Mental (1920-30) | José Roberto Franco Reis

Quando Foucault organiza seu quadro conceituai, ele tem em mente uma dimensão analítica do objeto a ser estudado. O que lhe interessa é saber de que maneira engendraram-se os dispositivos e as disciplinas. Para atingir este objetivo, ele recorre sistematicamente à arqueologia — dos saberes, dos poderes, dos prazeres —, buscando identificar, nos discursos, as táticas e estratégias desenvolvidas ao longo de diferentes processos históricos.

Como método historiográfico, Foucault utiliza-se dos discursos produzidos durante o período estudado, privilegiando os discursos científicos e tomando-os como o principal lugar de articulação dos dispositivos e das disciplinas.

Trabalhando ao nível das relações de poder, o modelo teórico proposto por Foucault permite construir uma história social capaz de apreender uma dimensão bastante abrangente de materialidade do real. Além disso, permite que se introduza o imaginário como um elemento importante na concretização das relações saber-poder, colocando-o no mesmo patamar das outras produções discursivas afetas à sociedade estudada.

Orientados por este modelo, os trabalhos de Vera Regina Beltrão Marques e de José Roberto Franco Reis alinham-se entre as importantes contribuições ao estudo da medicalização dos costumes na sociedade brasileira e, de forma mais específica, ao papel da eugenia dentro deste processo.

A época enfocada nas duas obras é a mesma, a década de 1920, conturbada por crises políticas, sociais e econômicas, e que serviu de palco para a introdução de todo um aparato de disciplinarização da sociedade fundado nas idéias eugenistas. A partir da ascensão de Getúlio Vargas, em 1930, estes elementos foram incorporados às ações práticas e políticas do Estado.

No Brasil, o mito da raça pura alinhavou-se a outros movimentos que emergiam das preocupações das novas elites urbanas, apreensivas com o deprimente quadro de miséria encontrado pelos sanitaristas em suas incursões pelo interior do país.

A construção do sentimento de nação, a necessidade de sanear os hábitos e a vida dos brasileiros, a exigência de integrar a “heterogênea mescla racial com tonalidade cromática caprichosamente variada”, como disse Renato Kehl, citado por Marques (p. 38), num projeto de Estado moderno, ajudaram a definir os contornos das práticas eugênicas por aqui.

Calcada nestas correlações, a pesquisa de Vera Marques nos aponta uma série de interfaces produzidas pelo discurso médico-eugênico, com destaque para a educação das crianças e para o papel da escola na formação do cidadão.

As formulações eugênicas não eram privilégio dos médicos, envolvendo também juristas, educadores, sociólogos, entre outros, que as utilizavam como técnica de poder, no dizer da autora, para introduzir, no cotidiano da sociedade, “controles reguladores que se constituíram em verdadeiros agenciadores do sexo, a definir a constituição das famílias; … enfim, os meios de existir, para atingir o progresso biológico e então desfrutar do progresso social” (p. 20).

O movimento eugênico brasileiro, então, é apresentado como uma teia de relações que incluem os higienistas brasileiros da virada do século e articulam-se com os pressupostos do francês Francis Galton. Analisando dispositivos ou identificando estratégias e técnicas de poder, Vera Marques conduz o leitor através deste movimento que influenciou os hábitos e a cultura brasileira.

Ao desnudar os mecanismos que permeiam estas relações, a pesquisa nos aponta fortes vínculos entre o aparato discursivo produzido no seio da intelectualidade brasileira e ações e políticas efetivas do Estado, como no caso da imigração, por exemplo, onde a eugenia colocava-se de maneira favorável à imigração européia, já que esta facilitaria a tarefa de uarianização da raça” (p. 88).

O terceiro capítulo expõe as técnicas de disciplinamento que deveriam prevalecer nas escolas. O corpo era o principal objeto desta intervenção, era ele quem deveria ser higienizado, moralizado, disciplinado. Mas os eu genistas visavam atingir, também, os espíritos dos estudantes. “Esta visão de escola modeladora, que não só aperfeiçoava o espírito como também conformava o corpo, fazia ver como indispensável a presença de novos saberes a compor o universo da escola. Higiene e eugenia seriam exemplares nesta tarefa” (p. 101).

A pesquisa de José Roberto Reis traz inúmeros pontos de contato com o que foi aqui exposto, no entanto, é nas diferenças que iremos encontrar os seus aspectos mais interessantes. A primeira e fundamental diferença refere-se ao objeto da investigação, que, neste caso, é a Liga Brasileira de Higiene Mental — a instituição — e não a eugenia, que vem a ser o corpus teórico desta instituição.

Ao resgatar a história da Liga Brasileira de Higiene Mental, José Roberto prende-se às inter-relações da eugenia com a psiquiatria, rastreando-as desde as pioneiras formulações dos degeneracionistas franceses e percebendo suas ligações com as principais correntes do pensamento alienista brasileiro.

Nesse sentido, o autor explora a transição de um modelo de medicina mental centrado na figura do louco para um dispositivo que se propõe a abarcar, também, “os normais de mentalidade, visando o aproveitamento máximo de sua capacidade” (p. 34).

Fundada em janeiro de 1923, a liga surge sob o signo das concepções intervencionistas balizadas pelos ideais eugênicos, e tenta interferir não apenas no que se refere ao tratamento específico dos indivíduos que apresentem distúrbios mentais, mas atuar de forma mais difusa, atuando fortemente, por exemplo, nas campanhas promovidas contra o alcoolismo.

A imigração e a infância são dois temas que aparecem com destaque neste trabalho e que também marcaram presença na obra de Vera Marques. Novamente, ressalte-se que o fato de trabalhar com o foco voltado para uma instituição e não para uma vertente teórica produz não apenas diferenças de procedimentos analíticos, mas também traz novos dados e informações.

Vera Regina Beltrão Marques e José Roberto Franco Reis partiram de um quadro teórico semelhante, inspirado nas formulações de Michel Foucault, e de um conjunto de temas que, se não se sobrepõem, têm longas áreas de tangência, mas conseguiram imprimir, cada qual, a sua própria identidade à elaboração de cada estudo, proporcionando, assim, uma complementaridade surpreendente a respeito de um assunto tão importante quanto atual.


Resenhista

Fernando Dumas – Pesquisador da Casa de Oswaldo Cruz.


Referências desta Resenha

MARQUES, Vera Regina Beltrão. A medicalização da raça: médicos, educadores e discurso eugênico. Campinas: Editora da Unicamp, 1994. REIS, José Roberto Franco. Higiene mental e eugenia: o projeto de “regeneração nacional” da Liga Brasileira de Higiene Mental (1920-30). Campinas: Dissertação de mestrado defendida no Programa de Pós-Graduação em História do IFCH/Unicamp, 1994. Resenha de: DUMAS, Fernando. A eugenia em cena: dois estudos sobre a questão. História, Ciência, Saúde-Manguinhos. Rio de Janeiro, v.2, n.3, nov. 1995/fev. 1996. Acessar publicação original [DR]

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