Africanizar: resistências, resiliências e sensibilidades | Revista Transversos | 2021

A Revista Transversos em sua 22a edição propõe-se em um pensamento-ação. O dossiê Africanizar: resistências, resiliências e sensibilidades. A concepção temática emerge do encontro de pesquisadoras e pesquisadores brasileiros e africanos. Ele parte dos trabalhos realizados pela linha de pesquisa África e suas diásporas do Laboratório de Estudo das Diferenças e Desigualdades Sociais (LEDDES) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) em contato com a Universidade Eduardo Mondlane (Moçambique), a Universidade Católica de Angola (UCAN), a Universidade Federal da Bahia (UFBA), a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e o Instituto Nacional de Educação de Surdos (INES).

Africanizar como movimento é um imperativo de pensar as Áfricas para longe de cristalizações e essencializações redutoras. Africanizar surge como necessidade de ouvir as vozes do continente, as quais questionam os parâmetros fornecidos a partir do viés eurocêntrico, da branquidade, do androcentrismo, do heteronormativo, das metanarrativas nacionais homogeneizantes ou dos interesses dos dominantes, sejam eles, estrangeiros ou locais. Os conteúdos dos textos apresentados apontam para os agenciamentos e os saberes dos silenciados, dos invisibilizados e daqueles que foram colocados à margem.

No dossiê, as resistências expressam-se pelos atos de persistir, de se assumir, de não aceitar a ser coisificado pelo outro. As resiliências como arte do mais fraco em se adaptar às situações adversas, reinventando-se positivamente, buscando autoestima ou significado para a vida, preservando ou reconstruindo identidades, para enfrentar e, se possível, superar as sujeições. E não menos importante as sensibilidades como uma forma de confrontar as estruturas políticas, econômicas, sociais e culturais cerceadoras dos desejos, das formas de sentir, imaginar, valorar e agir, que se constroem contra o estabelecido.

E os responsáveis por essa edição não poderiam ser indiferentes em relação à situação dantesca que vivemos no mundo. A escassez de vacina da covid-19 que assola os continentes e, principalmente, os homens, mulheres e crianças em países e situações de vulnerabilidades. Segundo a diretora regional para África da Organização Mundial da Saúde (OMS), em 29 de julho de 2021 haviam sido entregues no continente 82 milhões de doses das 700 milhões de doses da vacina contra a covid-19 para atingir a meta de 30% de cobertura até ao final do ano1. Precisamos resistir, resilienciar e ser sensíveis com todos aqueles infligidos pela doença. Africanizar como pensamento-ação é um exercício de alteridades sensíveis e comprometidas em lutar e (re)inventar-se nos quadros de opressão e violências.

O dossiê Africanizar: resistências, resiliências e sensibilidades apresenta diferentes textos entre os dois lados do Atlântico. Há uma transversalidade de temáticas sobre as Áfricas que compõem essa edição. Reúnem-se nesses olhares transversais abordagens históricas, sociológicas, antropológicas, econômicas, internacionalistas, cinematográficas e religiosas.

Abrimos com o artigo A troca de embaixadas entre os chefes mbundu e os portugueses: negociando a presença portuguesa em Angola no século XV de autoria de Luciana Lucia da Silva. Em seu texto, Silva discute a relação instituída entre os representantes portugueses e as lideranças do Ngondo, território que, posteriormente, passaria a ser reputado como Angola. A autora investiga de que maneira se dava o estabelecimento dessas negociações, verificando as intenções e premissas dos envolvidos. A pesquisadora apura a dinâmica dessa aproximação, a qual encerrava interesses comerciais, diplomáticos e religiosos, perpetrando disputas por poder e domínio dos recursos daquela região.

África ocidental em manuscritos brasílicos do século XVIII, de Raphael dos Santos, analisa os impressos de brasílicos e lusitanos sobre a África ocidental. Seu artigo tem como eixo discutir, a partir das correspondências entre os agentes políticos da costa africana ocidental, os brasílicos e os lusitanos, as dinâmicas políticas de uma História Atlântica, na qual os manuscritos iluminam as perspectivas dos africanos e de uma África ocidental. Com uma documentação do Arquivo Ultramarino, Santos preocupa-se em mostrar que a Coroa Portuguesa e seus agentes políticos tinham o interesse em compreender o funcionamento dos aparatos econômicos da costa africana ocidental para implantar uma política mercantilista no continente.

Religião como espaço de resistência: Dona Beatriz Ñsîmba Vita da autoria de Patrício Batsîkama, construído em torno da figura de Beatriz Nsimba Vita, uma mulher africana que, entre os finais do século XVII e o início do século XVIII, desempenhou um papel político, míticoreligioso e profético visando reunificar o Reino do Kongo, a partir do movimento sincréticocristão constituído por elementos do cristianismo e práticas religiosas locais, africanas, que ficou para a História como “Antonionismo”. Esse visto como um enraizamento peculiar do cristianismo em terras africanas. A narrativa desse trabalho propõe uma reflexão sobre o papel da Religião enquanto espaço de mobilização, de “negociação” de consensos, e de gênese2 de processos messiânicos libertadores, precursores e inspiradores dos movimentos nacionalistas que conduziram as lutas anticolonialistas. Estabelece uma relação muito interessante – incluindo geográfica – entre a gênese do “antonionismo” e o surgimento de movimentos messiânicos mais recentes, o Kimbanguismo e o Tocoísmo, enquanto espaços de resistência e de luta “em busca de paz na base de saberes locais”. Ademais, identifica continuidades entre o “antonionismo” e os sincretismos religiosos brasileiros – Candomblé e Umbanda – como espaços de visibilidade de resistências e de lutas, atribuídos aos africanos escravizados provenientes do Reino do Kongo. Para além de mobilizar uma ampla gama de referências bibliográficas, o texto sugere linhas de pesquisa as quais, certamente, inspirarão outros pesquisadores, apontando para a necessidade de abordagens interdisciplinares e multiculturais.

O artigo Dominação e Denominação: o Etnônimo Pejorativo “Mawia” e os Macondes de Moçambique no Tanganyika Colonial, de Felipe Barradas Correia Castro Bastos, possui um conteúdo no interstício da história e da antropologia que convida à constituição da biografia de um conceito. O artigo examina, deste modo, o nascimento, e o percurso de termo pejorativo (mawia) construído (no período pré-colonial), reapropriado, na segunda metade do século XX, pelo poder colonial britânico e alemão até se tornar num etnônimo. O império empregava esse termo para se referir às populações diaspóricas do norte de Moçambique e do grupo étnico dos Makondes que se instalaram no Tanganyika (actual Tanzania). Há uma discussão interessante neste escrito sobre as dinâmicas coloniais da construção da alteridade colonial a partir de uma palavra, sobre as lutas e resistências “dos debaixo” a sua própria autodefinição/autodeterminação, e sobre a redução ontológica de identidades étnicas e sociais.

No artigo Um conceito a construir: As Forças Produtivas no pensamento de Amílcar, de Gustavo Koszeniewski Rolim e Vanito Ianium Vieira Cá, reflete sobre a importância e o alcance do conceito de “forças produtivas” no pensamento de Amílcar Cabral, como categoria de análise para compreender a realidade social Bissau-guineense a partir de uma visão revolucionária. São considerados alguns conceitos desenvolvidos por Amílcar Cabral na sua análise sociológica, nomeadamente “nação-classe”, bem como as diferentes interpretações de autores que, ao longo das décadas, produziram estudos sobre as bases do pensamento teórico de Cabral. O texto procura aprofundar um dos aspetos desenvolvidos nas reflexões teóricas de Amílcar Cabral, o conceito de “forças produtivas”, explorando as formas como ele tem sido utilizado e aplicado, bem como apropriado, para compreender a realidade social, as relações coloniais e a proposta revolucionária/de luta anticolonial.

A Cidade do Lobito na memória de migrantes da descolonização de Angola residentes no Rio de Janeiro, de Isabel de Souza Lima Junqueira Barreto, oferece um diálogo entre testemunhos orais de ‘cinco luso-angolanos jovens’ (à época da independência de Angola, 1975, quando migraram) sobre as suas vivências na Cidade do Lobito, com depoimentos, em livro, de um nacionalista angolano (Adolfo Maria), alguns trabalhos académicos sobre a cidade e sobre o processo de construção multidimensional da Angola pós-colonial, permeadas por matérias jornalísticas de A Província de Angola, jornal diário que passaria a designar-se Jornal de Angola em junho de 1975. Vencendo uma distância temporal de quase quatro décadas, essas memórias traduzem as formas pelas quais os “jovens de então” recordam a sua vida na Cidade, expressando os seus entendimentos sobre relações sociais e de poder em ambiente de dominação colonial, os quais são confrontadas com os depoimentos de Adolfo Maria, e contextualizados pelo enquadramento político, económico e social da época. Enquanto contribuição para a construção da ‘estória’ da cidade a partir das memórias dos seus residentes, mescladas e, quiçá, distorcidas pelo saudosismo, o texto chama a atenção para alguns mitos prevalecentes (nomeadamente em Portugal) relativamente à ‘distinção do colonialismo português’, ainda hoje associado à ideia de um lusotropicalismo cordial, ou soft, como alguns preferem designar, quando na verdade mais próximo estava de um apartheid não nomeado nem institucionalizado; e, também, o de uma convivência social despida de preconceitos e de sentimentos (e actos) de animosidade e de oposição entre as diversas categorias enumeradas: “colonos”, “indígenas”, “mestiços” e “luso-angolanos”, quando todos, à excepção dos primeiros, foram vítimas de diversas formas de discriminação, marginalização e exclusão sociais.

Alexandre Reis em “Danças frenéticas e diabólicas de que o Brasil é rei e senhor”: notas sobre a presença musical brasileira em angola no período colonial e seus significados políticos (1950-1974), a partir da análise de periódicos e depoimentos, apresenta-nos as maneiras que a musicalidade brasileira, mais notadamente o samba e a bossa nova, foram recepcionadas e compreendidas por diversos segmentos sociais de Angola. Tendo o contexto de lutas anticoloniais, o autor infere como essa prática cultural poderia servir de paradigma entre aqueles que reivindicavam a independência e os ciosos da manutenção do status quo colonial. Além disso, examina o afluxo de artistas brasileiros no horizonte musical urbano angolano no período referenciado.

Duplas linguagens angolanas: resiliência e resistência de um preso político na narrativa a vida verdadeira de Domingos Xavier (1961), de Luandino Vieira, e no filme Sambizanga (1973), de Sarah Maldoror, Denise Rocha examina, dentro de um esquema teórico de Hutcheon, a adaptação fílmica da obra literária, A vida verdadeira de Domingos Xavier, do escritor e antigo militante do MPLA, Luandino Vieira. Partindo do pressuposto teórico de que as adaptações são reconfigurações ou traduções intersemióticas, a autora argumenta que o filme Sambizanga pode ser caracterizado como um caleidoscópio de (inter)signos: transmutação da palavra em imagens, intensificação da vida numa simbiose do contar (literário) e do mostrar (fílmico), colocação da temática do engajamento político (à la Sartre) e história pessoal , e da apresentação de um tempo teleológico, estruturado e amarrado ao script oficial da história de Angola.

O artigo, Ruy Duarte de Carvalho: o dizer poético de Angola, apresentado por Julia Goulart Silva analisa a obra literária desse escritor angolano a partir de três ensaios: Vou lá visitar pastores, Actas da Maianga, o dizer das guerras, em Angola…e A câmara, a escrita e a coisa dita…e um dos poemas da obra Hábito da terra. A autora procura, neste texto, demonstrar em que medida a construção textual pode reconstruir as relações humanas e como a literatura pode contribuir para desfazer “imaginários fabulosos” dos países africanos, no caso específico, de Angola. Paralelamente, Julia Goulart Silva discute o autor estudado a partir dos argumentos que ele utiliza para explicar a imagem internacional construída sobre Angola, bem como os desdobramentos que a interpretação de uma poesia proporciona em termos das múltiplas cosmovisões e saberes. Através do texto é possível perceber como a linguagem, por meio da fusão entre antropologia e mitopoesia, contribui para uma representação e recriação de Angola em sintonia com as realidades internas do país.

Em Corpo e Ancestralidade: notas sobre a resistência filosófica e política africana, José Diêgo Leite Santana e Allene Carvalho Lage, em um diálogo com os saberes pós-coloniais e decoloniais, apresentam a noção de corpo sob a ótica da filosofia africana. O artigo é resultado de uma dissertação de mestrado, no qual os autores discutem a noção de corpo como resistência em relação ao enfrentamento ao poder disciplinar europeu, que subalternizava as identidades africanas. Santana e Lage, portanto, abordam como o papel das ancestralidades tiveram importância na (re)invenção das identidades africanas não pautadas em essências, mas sensíveis às diferenças.

O artigo de Sílvio Marcus de Souza Corrêa, Resistências, resiliências e afetos: Diálogos entre História e Literatura Africanas, chama atenção para as articulações entre nativismo e nacionalismo nas teorias explicativas das independências africanas. Tece os percalços que podem existir no uso do conceito “resistência” para análise do colonial e do pós-independência africanos, revelando como ele pode ser redutor da compreensão das lutas nesse período. Afinal, o termo “resistência”, muitas vezes, representou não apenas lutas ou posturas libertadoras, mas a manutenção de privilégios de determinados grupos internos. A partir daí, passa a olhar os posicionamentos políticos frente às realidades levando em conta as emoções, os afetos e desafetos, as afinidades e os ódios, consciente e inconsciente, onde uma economia libidinal prevalece. Sílvio, percebendo que a historiografia nacionalista africana não se coadunava com os relatos da literatura do pós-independência, resolve seguir o modus operandi de Edward Said, escolhe exemplificar as variedades do que se chamou de resistências, afetos e resiliências por meios de exemplos de personagens literários.

Em Diamantes de sangue e excrementos do diabo: análise dos efeitos do discurso da maldição de recursos naturais na África, Tomás Heródoto Fuel investiga as relações de poder enunciadas nos discursos, de origem eurocêntrica, que evocam a maldição dos recursos naturais e a maneira como os países africanos enfrentam às consequências da sua reprodução. Os discursos formulados a partir da discrepante relação entre um conjunto favorável de recursos naturais e a ausência de um crescimento econômico proporcional, pavimentaram literaturas do resource curse e do presource curse, as quais visavam atender às políticas neoliberais de controle desses recursos. O artigo também apresenta as estratégias africanas para a manutenção de sua soberania sobre essas riquezas.

O artigo de Dayane Augusta Santos da Silva, Gênero e feminismo(s) africano(s), traça um panorama sobre a atividade intelectual e acadêmica, a respeito do feminismo, produzido por pensadoras negras africanas. Nele, a autora opera uma discussão, emergida no contexto das africanidades, acerca das categorias “mulher-gênero-feminismos”. Dessa maneira, seus esforços concentram-se na apreciação de como o feminismo é pensado, refletido e dado a entender por essas mulheres, bem como suas implicações.

É em torno da resiliência das populações luandenses, em um período do após a guerra civil (1975-2002), e tendo como fontes os dois filmes que estão no título do artigo que Paula Faccini de Bastos Cruz em Um Estudo da Capacidade de Resiliência da População de Luanda no pós-guerras – A Construção Narrativa em Oxalá cresçam pitangas! e É dreda ser angolano (2006/2008) analisa as táticas desses citadinos para manter a sobrevivência e a alegria de viver, ante tantas adversidades. Paula Cruz aplica no exame dos filmes o método comparativo de Detienne e encontra cinco temas, por meio dos quais vai demonstrar a criatividade na resiliência: o esporte, as rádios e a pirataria, as artes, a informalidade econômica e as vinculações afetivas. As narrativas cinematográficas escolhidas descrevem a população mais pobre dessa cidade que, por vários anos, sofre alto grau de vulnerabilidade ante a constante crise socioeconômica derivada da guerra, mas resiste tentando psicoafetiva ou socioculturalmente superar os traumas, mesmo que se tenha que usar da ironia para ver positivamente os percalços.

Estética animista: memória e (re)existência na narrativa de Ungulani Ba Ka Khosa, de Salomão António Massingue e José Fornos, é uma escrita que reflecte sobre os usos as possibilidades e limites analíticos do conceito de “estética animista” não somente como a inscrição de um discurso pós-colonial no recente corpus historiográfico e literário africano, mas também como um instrumento epistêmico que permite desnudar as diversas realidade culturais, religiosas e estéticas no modo africano de ser. A partir de uma leitura contra-hegemônica, das narrativas do escritor moçambicano Ungulani Ba Ka Khossa, os autores argumentam que contrariamente à visão dominante (eurocêntrica), que conceptualiza o animismo presente na literatura africana (e neste caso particular na obra de Ba Ka Kossa), como algo estritamente do campo do sagrado, do oráculo e do insólito, o/a autor inscreve a estética animista de Ba Ka Kossa, como intrínseca à uma dialética dualista mas interpenetrada e permeável ao mundo do sagrado e do profano, como depositários de eventos reais, inteligíveis e vivenciados pelas populações locais.

O artigo A Fé que move destroços numa África insubmissa: Religião e Resistência na Literatura Nigeriana, da autoria de Robert Daibert Jr. e Bárbara Inês Simões Daibert, procura discutir sobre o processo de resistência anticolonial no continente africano a partir de uma visão libertária, tendo como pano de fundo os romances Things fall apart de Chinua Achebe e Purple Hibiscus de Chimamanda Ngozi Adichie. Os autores propõem uma reflexão abordando o tema da raça e seu impacto nas sociedades africanas do período pós-colonial; o texto analisa, por meio da literatura, as resistências, resiliências, reconstituições e reafirmações contemporâneas de experiências religiosas locais, com centralidade nas complexas experiências dos países africanos pós-independentes, buscando ao mesmo tempo, possibilidades dialógicas entre religião, resistência e ficção.

Sustentabilidade para quem? um olhar da crítica pós-colonial para impressões ambientais e telúricas em Angola, de Flora Pereira da Silva e Selma Pantoja, convoca o leitor a uma reflexão sobre as desigualdades prevalecentes entre o Norte e o Sul de uma globalização capitalista e neoliberal em termos de poder económico e financeiro mundial, sustentada e reproduzida por um léxico desenvolvimentista intraduzível para os termos dos entendimentos de si e dos outros das sociedades pastoris do Sul de Angola. Sendo parte de um lugar marginal nas dinâmicas econômicas (e financeiras) mundiais, e com uma fraca integração no sistema capitalista internacional, a região sul de Angola tem sido, desde a dominação colonial, a “terra de ninguém”, com uma baixa densidade populacional numa vasta área predominantemente árida e desértica. Essencialmente pastoris, estas sociedades estabelecem relações com o espaço de vida orientadas pela ideia de interpenetração e complementaridade entre o divino e os humanos, o território, a fauna, a flora e o ambiente, descritas pelos entrevistados como mais equilibradas em termos dos efeitos da acção humana no ambiente e dos impactos sociais da transformação ecológica. A autora mobiliza a crítica pós-colonial, nomeadamente o pensamento abissal em contraponto a três narrativas generalizantes e estereotipadas sobre os países africanos, também observadas no sul de Angola. A globalização e os desafios sociais contemporâneos, incluindo a ‘África no mundo’, exigem uma epistemologia e uma construção do conhecimento que, a partir da crítica a cânones e ortodoxias naturalizadas, produza uma consciência na pluralidade, na experimentação e na criatividade, valorizando a diversidade e a produção do conhecimento em co-autoria. Não seria só o ‘eu penso’ (embora fundamental), mas também o ‘pensemos juntos’.

Na seção “Artigos Livres”, Luciana Falcão Lessa em O movimento negro caminha, o feminismo negro caminho e o movimento de mulheres negras caminha discute a importância do Movimento de Mulheres Negras em Salvador no combate as opressões de gênero, raça e classe em comparação a ideia de homogeneidade do Movimento Negro. Lessa pondera que a construção de uma rede de mulheres negras na Bahia tem possibilitado o empoderamento da mulher negra nesse Estado. Portanto, o artigo busca mostrar como as mulheres negras contribuíram para uma renovação teórica e empírica do feminismo negro como uma forma de enfretamento do preconceito racial na sociedade.

Em Vida de Maria em terras de Mariano: Maria, a primeira mulher negra a concluir o Proeja no Colégio Técnico Industrial de Santa Maria (CTISM), Nara Zari Lemos Budiño e Roselene Gomes Pommer analisam a trajetória de Maria uma mulher negra, pobre e periférica egressa da CTISM e graduada em Serviço Social pela UFSM. A trajetória de Maria formada pela Educação de Jovens e Adultos (EJA) ilumina os problemas sociais que muitas vezes são impostos na trajetória educacional de mulheres e homens pretos do nosso país. As autoras, portanto, destacam a importância da Educação na vida de Maria [ou Marias] para resistir e enfrentar os problemas do machismo e do racismo na sociedade brasileira.

Foi o investigar das vozes dos personagens frequentemente desautorizados e, por tal, às vezes, livres, tais como os mais velhos, as crianças e os loucos, na sociedade angolana, que permitiu Diana Gonzaga Pereira utilizar três romances do escritor angolano Ondjaki para por meio dos personagens vascular as injustiças, as discriminações na sociedade angolano pós-independência. Na experimentação Vozes sem fronteiras: manifestações (des)autorizadas de liberdade, a literatura aparece como uma reflexão que se confronta com os discursos estatais sobre a realidade. É esse mundo em pedaços proporcionado pela guerra civil angolana que aparece nas vozes antes reverenciadas, agora desqualificadas, dos mais velhos, nas observações das crianças, nas falas e atos tomados como sempre desconexos dos loucos. São esses velhos resilientes às mudanças dos tempos, muitas vezes cassandras contra as modernidades aparentemente benéficas. A inocência das crianças lhes permite muitas vezes dizer que o “rei está nu” e a denunciar os não-ditos do mundo dos adultos. Ah! os loucos com seus discursos desacreditados e suas ações transgressoras, por serem tresvariados podem dizer os que os normais não têm coragem de proferir ou fazer.

Ao apresentar uma experimentação sobre Paulina Chiziane e a obra Niketche: uma história de poligamia (2001) para uma crítica de gênero a respeito da poligamia em Moçambique no Pós-Colonial, Aline da Silva Campos explicita como essa escritora moçambicana analisa as diferenças nas relações de gênero entre o lado islâmico (norte) e o sul do país. Nesse livro, Chiziane faz objeção à poligamia no país, assim como à estrutura androcêntrica predominante nas relações de gênero. A personagem Rami questiona as oposições criadas entre as funções masculinas e femininas, entre a esposa e a amante, entre a monogamia e a poligamia, assim como entre a tradição e o moderno. Há um constante denunciar de como as mulheres esquecem de si mesmas em função de uma estrutura patriarcal, dentro da qual a mulher adquire respeito na medida em que possui um marido, namorado ou companheiro. O texto mostra como o combate ao machismo passa primordialmente pela recuperação da autoestima das mulheres.

Em “Notas de Pesquisa”, as pesquisadoras Valéria Costa, Iamara Viana e o pesquisador Flávio Gomes nos apresentam Narrativas, escritas e arquivos: rearticulando experiências e fontes sobre mulheres africanas no Brasil oitocentista: notas de pesquisas. O texto principia uma investigação – a partir de fontes de eclesiásticas, processuais, entre outras, recolhidas em acervos de Minas Gerais, Maranhão, Pernambuco, Rio de Janeiro, Bahia e Grão-Pará – que destaca o protagonismo de mulheres negras escravizadas e libertas no século XIX. Analisando as narrativas possíveis e/ou disponíveis e refletindo acerca dos processos de produção destas narrativas, as autoras e o autor perscrutam arranjos familiares, coletividade, perspectivas e sonhos dessas mulheres.

Para findar a 22ª edição da Revista Transversos, Jusciele Conceição Almeida de Oliveira e Mírian Sumica Carneiro Reis, sob o título, “As crianças são seres carregados de esperança”: uma entrevista com o cineasta Flora Gomes, dialogam com um dos mais importantes intelectuais da Guiné-Bissau e um dos maiores expoentes do cinema africano.

Africanize-se!

Notas

1 África precisa de 700 milhões de doses para 30% da vacinação contra a Covid-19 até ao final do ano. CMJornal, 29 de jul. de 2021. Disponível em: https://www.cmjornal.pt/mundo/detalhe/africa-precisa-de-700-milhoes-de-doses-para-30-da-vacinacao-contra-a-covid-19-este-ano .

2 Em respeito ao pluralismo linguístico, adotamos as diversas formas de grafar existentes no universo afro-brasileiro.


Organizadores

Carlos Manuel Dias Fernandes – Possui graduação em Sociologia pela Universidade Eduardo Mondlane (2003), Mestrado e Doutorado em Estudos Etnicos e Africanos, UFBA. E-mail: [email protected]

Cesaltina C. B. de Abreu – Doutorada em Sociologia (2006) e Mestre (2011) pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (IUPERJ), República Federativa do Brasil. É Licenciada em Agronomia (1977) pela Universidade de Luanda (curso superior de Agronomia, Huambo). E-mail: [email protected]

Gustavo Pinto de Sousa – Professor Adjunto no Departamento de Ensino Superior no Instituto Nacional de Educação de Surdos (DESU/INES) para área de História e Educação. Professor do Programa de Pós-graduação em Ensino de História (ProfHistória/UFRJ). Historiador sob registro n.0000065/RJ, em 17/03/2021. Doutor em História pelo PPGHC/UFRJ. Mestre em História História Política pelo PPGH/UERJ. Pesquisador Associado do Laboratório de Estudo das Diferenças e Desigualdades Sociais – LEDDES/UERJ e coordenador da linha de pesquisa “Áfricas e suas diásporas”. E-mail: [email protected]

Patrícia Godinho Gomes – Licenciada em Relações Internacionais Estudou na Universidade Técnica de Lisboa, com especialização em Estudos Africanos (1995), Doutorado em História e Instituições da África e Pós-Doutora em História da África pela Universidade de Cagliari (2003 e 2006 a 2010). Pós-Doutora em Estudos Étnicos e Africanos pela Universidade Federal da Bahia (2014 a 2018). E-mail: [email protected]

Rogério da S. Guimarães – Mestre pelo Programa de Pós-graduação em História Comparada (PPGHC/ UFRJ). Possui graduação em História pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Atualmente, doutorando do Programa de Pós-graduação em História (PPGH/ UERJ), com bolsa Capes. Pesquisador associado do Laboratório das Diferenças e Desigualdades Sociais (LEDDES/ UERJ), atuando como coordenador da linha de pesquisa África e Diásporas Negras. E-mail: [email protected]

Silvio de Almeida Carvalho Filho – Pós-Doutor pelo Centro de Estudos Africanos do ISCTE (Lisboa) em 2010, Doutor em História pela Universidade de São Paulo (1994), Mestrado em História pela Universidade Federal Fluminense (1983) e Graduação em História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1974), Pesquisador Associado do Laboratório de Estudos das Diferenças e Desigualdades Sociais (LEDDES) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). E-mail: [email protected]


Referências desta apresentação

FERNANDES, Carlos Manuel Dias; ABREU, Cesaltina C. B. de; SOUSA, Gustavo Pinto de; GOMES, Patrícia Godinho; GUIMARÃES, Rogério da S.; CARVALHO FILHO, Silvio de Almeida. Apresentação. Revista Transversos. Rio de Janeiro, n. 22, p. 6-16, ago. 2021. Acessar publicação original [DR]

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