Amazônia global: espaços de circulação e representação da fronteira | Revista de História | 2019

Os textos que compõem esse dossiê foram gerados em grupos de pesquisa e programas de pós-graduação que têm, sistematicamente, se dedicado à historiografia da Amazônia. Esse exercício implica em alguns desafios intelectuais. Em primeiro lugar, compreender processos e transformações sociais ocorridos até o século XIX fora da chave interpretativa fornecida pela associação entre plantation, mineração e escravidão africana, que domina a historiografia brasileira e que já vem sendo questionada há algum tempo como inadequada para a região. Em seguida, dar visibilidade e protagonismo a sujeitos de máxima importância para a história da Amazônia, como os povos indígenas e os ribeirinhos, de diferentes culturas, línguas e estratégias de aproximação e negociação com a sociedade nacional; os numerosos e diversificados agentes coloniais e servidores do Estado, em geral de baixo escalão; os pequenos proprietários e os comerciantes que dominavam a economia regional, centrada no extrativismo e na agricultura e que se organizou a partir do controle de acesso às zonas de exploração e cultivo, localizadas nas várzeas dos grandes rios; os missionários e demais membros do clero, peças ativas na expansão europeia e no processo de urbanização da região; e mesmo os afro-brasileiros ali residentes, com suas culturas e identidades, não redutíveis a ‘escravos’. Vemos, nas fontes, todos eles circulando pelo território amazônico e colocando em movimento a fronteira que se estabelece desde o início do período colonial e que se amplia à medida que novos espaços e povos são incorporados no sistema global de intercâmbios políticos, econômicos e culturais.

Pensar a Amazônia como ‘fronteira’ é interessante pelo fato de esse conceito permitir uma análise topográfica das relações sociais, seja ele entendido como a borda dos Estados nacionais, como territórios em processo de incorporação pela sociedade mais ampla ou como espaço simbólico onde se manifestam as assimetrias de poder, os conflitos e os intercâmbios. Investigar a maneira como a fronteira é interpretada e representada, compreender sua construção e transformação no tempo histórico, identificar os múltiplos atores que agem nesse processo contínuo e irrefreável, incluindo os não- -humanos, também são desafios que se impõem aos que estudam a região amazônica. Nessa abordagem emergem as crônicas, as memórias, as cartas, os relatos de viagem, a cartografia, os desenhos, a fotografia, o audiovisual, as coleções museológicas, enfim, todo um conjunto de imagens e objetos impregnados de significados e que sempre fazem referência a outras imagens e outros objetos. Emergem, ainda, sujeitos e práticas culturais que dão origem a essas imagens e a esses objetos e – o mais importante – que os colocam em circulação, sob permanente escrutínio.

Enquanto fronteira, convém estudar as conexões geográficas e culturais da Amazônia, sincrônicas ou diacrônicas, pois essa região, desde o século XVII, foi identificada como um cadinho de povos e línguas, como fundo territorial para expansão imperial/nacional, como manancial de recursos para o mundo, ainda que imaginários ou potenciais – chaves interpretativas que deram (e continuam dando) sentido e motivos à conquista e ao processo de ocupação humana na longa duração da história regional. A Amazônia pode ser pensada como fronteira, mas não à margem ou periférica, e sim a partir de conexões que projetaram e projetam, sobre o território e sua população, expectativas e ambições gestadas na interseção entre o global e o local.

Essa fronteira foi estudada pelos autores que participam desse dossiê. Os cinco artigos formam dois conjuntos bastante homogêneos na temática e temporalidade. Do primeiro deles participam Pablo Ibañez-Bonillo, Karl Arenz e Gabriel Prudente, todos vinculados ao Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Pará. Eles se dedicam a um momento preciso da história da Amazônia, o final da década de 1750 e início da década seguinte, anos imediatamente posteriores à promulgação das primeiras leis reformadoras de Sebastião José de Carvalho e Melo, ministro de D. José I, as quais, formuladas no além-mar, teriam um profundo impacto na região. Os dois textos descem às minúcias desse processo, ao cotidiano dos missionários franciscanos e jesuítas que atuavam na região, todos estrangeiros, e dos povos indígenas com os quais se relacionavam em Chaves e Rebordelo, no arquipélago do Marajó, e em Piraguiri, missão de médio porte no baixo Xingu que, assim como no Marajó, reunia indígenas de diversas etnias. A instabilidade política e social da fronteira é evidenciada, assim como as estratégias de negociação que os indígenas desenvolveram com os agentes estatais, e entre si também, para viver em um território em rápida e traumática transformação.

O segundo conjunto é composto por três artigos, de autoria de Dominichi Miranda de Sá, André Felipe Cândido da Silva, Marcos Chor Maio e Rômulo de Paula Andrade, todos do Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde da Fundação Oswaldo Cruz. Assim como ocorre no primeiro conjunto, nesse segundo a temática e a temporalidade também são integradas. A palavra-chave para contextualizar os três textos é ‘desenvolvimento’, tal como entendido no final dos anos 1930 e início dos 1940, já no Estado Novo de Getúlio Vargas. Nesse momento, diversas políticas públicas são articuladas para viabilizar a intervenção do governo federal na Amazônia de maneira planejada e coordenada. Os artigos tocam em diferentes aspectos dessas políticas, que tinham, como fios condutores, o conhecimento científico e a inserção de cientistas nas ações governamentais. Data dessa época a fundação do Instituto Agronômico do Norte, em Belém, a primeira de uma série de instituições congêneres criadas por Vargas, com uma forte agenda desenvolvimentista centrada na agricultura e na pecuária, dando início à cooperação científica internacional nesse campo e incentivando a substituição da floresta pelo pasto e por cultivares alimentícios. Simultaneamente, Charles Wagley (1913-1991) aportava na região – a serviço dos governos norte-americano e brasileiro, e depois da Unesco – para aplicar (e defender) sua ‘antropologia do desenvolvimento’, que alinhava os cientistas sociais às intervenções estatais na sociedade e no ambiente amazônico. Outro estrangeiro que aportou na região foi o fotógrafo Alan Fisher (1913-1988), contratado para registrar, com finalidades promocionais, as atividades do Serviço Especial de Saúde Pública (SESP), criado durante a Segunda Guerra Mundial e financiado, em um primeiro momento, pela Fundação Rockefeller, dos Estados Unidos. Em todos esses casos, cientistas, médicos e seus colaboradores – articulados em redes internacionais – poliram as lentes para a interpretação e representação da fronteira, justificando mais um período de intensas transformações na região.

Esperamos que o dossiê incentive novos estudos sobre a Amazônia, sobre os períodos aqui analisados e também sobre outros, como o século XIX. São promissores os caminhos historiográficos que têm sido abertos e pavimentados por pesquisadores interessados em alargar o horizonte, em pensar o país não a partir da capital política e do centro financeiro, mas da fronteira, a qual tem sua própria dinâmica e nos demanda maior atenção. Os Organizadores.


Organizadores

Nelson Sanjad – Museu Paraense Emílio Goeldi/MCTIC Belém – Pará. E-mail: [email protected]

Érico Silva Muniz – Universidade Federal do Pará Bragança – Pará. E-mail: [email protected]

Júlio Schweickardt – Instituto Leônidas e Maria Deane/Fiocruz Manaus – Amazonas. E-mail: [email protected]


Referências desta apresentação

SANJAD, Nelson; MUNIZ, Érico Silva; SCHWEICKARDT, Júlio. Apresentação. Revista de História. São Paulo, n. 178, 2019. Acessar publicação original [DR]

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