Arendt: entre o amor e o mal: uma biografia | Ann Heberlein

Em 2021, a editora Companhia das Letras traduziu o livro [Arendt: Om kärlek och ondska] publicado em 2020 de autoria da sueca Dra. Ann Helen Heberlein, que, pouco conhecida no campo da História brasileira, produziu uma biografia sobre Hannah Arendt. Ainda que não dotada de singularidades abruptas, a biografia expõe duas categorias como chave de leitura para a narrativa de vida de Arendt: contexto e situação-limite. Nesta resenha, portanto, o caro leitor encontrará três setores de informações: a) uma leitura comparativa entre a biografia escrita por Heberlein e outras já consagradas; b) uma síntese geral da narrativa, focando em alguns capítulos-chave; e c) reflexão e apreciação das duas categorias mencionadas.

Heberlein nasceu em 22 de junho de 1970 na Suécia. Estudou Teologia na Lund University, para onde voltou a fim de ser professora-pesquisadora a partir de 2007. Sua dissertação, defendida em 2005 e intitulada Kränkningar och förlatelse (Abusos e perdão), ganhou destaque nacional. A partir de então, começou a discutir sobre culpa, vergonha, responsabilidade, moral, abusos e perdão. Passou a integrar o corpo docente da Universidade de Estocolmo a partir de 2009, além de ter trabalhado como colunista nos jornais Sydsvenskan e Dagens Nyheter. O destaque internacional veio após a publicação, em 2008, de seu relato autobiográfico sobre como é a vida com transtorno bipolar, intitulado Jag vill inte dö, jag vill bara inte leva. Contudo, o primeiro livro traduzido para o português ocorreu em 2012 com Det var inte mitt fel! Om konsten att ta ansvar – traduzido para Não foi culpa minha. A arte de assumir a responsabilidade.

A biografia escrita pela autora sueca conta com 26 capítulos, além do prefácio, introdução e de um posfácio [o qual foi] escrito pela historiadora Heloisa Murgel Starling. Os capítulos variam entre quatro e treze páginas. A sua estrutura é pautada em assuntos temáticos circunscritos a uma determinada faixa de tempo e acontecimentos da vida de Hannah Arendt. No decorrer da narrativa, não há menção a referências ou notas

de rodapé. Com raras exceções, alguns livros são mencionados por inteiro. O quadro de fontes analisado por Heberlein deixa a desejar no número de artigos analisados, sendo somente cinco. Assim como o número de biografias revisadas, apenas três. Porém, tais posições se justificam em seus objetivos.

Certamente, a biografia realizada por Young- -Bruehl (1997) é o retrato de maior profundidade analítica da vida e obra de Hannah Arendt. Com um índice gigantesco, Bruehl (1997) analisou a fundo a obra de Arendt em um momento em que seus textos não estavam digitalizados, muitos permaneciam inéditos, outros estavam espalhados em revistas científicas na Alemanha, França e Estados Unidos. Mesmo com tais dificuldades, Bruehl utilizou conversas com sua ex-orientadora para desenvolver linhas investigativas e contextuais empregadas até hoje por comentadores arendtianos. Conforme afirma May Derwent (1988, p. 9) no início da sua biografia sobre Hannah Arendt, “nenhum autor que hoje escreva sobre Hannah Arendt pode deixar eximir-se de uma grande dívida para com Elisabeth Young-Bruehl pela sua alentada e pioneira biografia”. Esse caráter pioneiro e aprofundado de Bruehl foi reconhecido por Heberlein (2021, p. 215), tecendo agradecimentos no corpo da biografia pelas extensas descrições sobre o Vélodrome d’Hiver e o Camp Gurs.

Heberlein, ao se propor a escrever a biografia de Hannah Arendt, assume a tese de Arendt explicitada em Homens em tempos sombrios. Nesse livro, a pensadora afirmou que certas histórias de vida são capazes de espalhar esperança e luz mesmo em tempos sombrios. Em outras palavras, as experiências vivenciadas, quando transformadas em histórias, podem auxiliar o outro na condução de sua própria vida. Destarte, Heberlein (2021, p. 10) afirma que “sem dúvida, a própria Hannah Arendt está entre as pessoas dotadas da rara habilidade de brilhar nos tempos mais sombrios com uma luz tão forte que seu efeito se faz sentir mesmo muito depois de elas terem deixado a existência terrestre”. Essa tese é compartilhada por Celso Lafer (2018), ex-aluno de Arendt, o qual indica que a rara habilidade de brilhar em tempos sombrios só pode ser indicada ex post facto, em retrospectiva, e não como um destino.

Lafer, no posfácio do livro Homens em tempos sombrios, afirma que os relatos arendtianos

falam das pessoas no mundo, e não […] dos mundos nas pessoas, buscando, por meio dessa fórmula, realçar a distinção entre público e privada, e sobretudo o predomínio e a importância do público, que é uma das notas importantes da reflexão política de Hannah (LAFER, 2018, p. 98).

Em outras palavras, a ideia de biografia contida em Arendt, de acordo com Lafer, é buscar o agir das pessoas no mundo, observando a relação entre público e privado na vida delas. Dessa forma, Heberlein compartilha a concepção de biografia de Arendt. Ao passo, utiliza-se de descrições privadas e públicas no decorrer da narrativa, indicando como Arendt elaborou conceito, constituiu relacionamentos e agiu num período turbulento da história mundial que se mostra como luz para outras pessoas.

Além da concepção de biografia, seus objetivos na escrita da história de vida de Hannah Arendt são afirmados no prefácio. Ann Haberlein (2021, p. 11) afirma que não tem “a pretensão de fornecer um retrato completo de Hannah Arendt, nem de sua história de vida e pensamento”, mas que objetivou se “concentrar nos acontecimentos da vida de Hannah que mais me interessam, levantar as ideias que considero mais fecundas, tentando inseri-la, bem como sua história e suas reflexões num contexto mais amplo” (HEBERLEIN, 2021, p. 11). Tais objetivos justificam seu recorte de acontecimentos e sua seleção de pensamentos.

Esses objetivos vão ao encontro da biografia escrita por Adler (2007, p. 11), que afirma a “intenção de dar a conhecer melhor Hannah Arendt, de tentar restituir sua força e coragem nos combates que conduziu durante toda a sua existência, assim como de propiciar a vontade de ler, reler e meditar”. Ao passo, reforça que objetivou “apenas desenhar uma trajetória”. Nesse caso, Adler focalizou sua biografia como uma trajetória, ou seja, uma faixa de tempo/acontecimentos distinta do todo. Destacou os combates que Arendt viveu, observando o público e suas amizades em face aos assuntos públicos. Dessa forma, podemos aproximar Heberlein de Adler, uma vez que a biografa realiza um recorte de uma trajetória e almeja ligar contexto e acontecimentos privados. Contudo, a biografia escrita por Adler é mais aprofundada, pois, além de revisar a obra publicada e os escritos inéditos de Arendt, recorreu a metodologia da história oral para agrupar uma série de memórias sobre Hannah Arendt, de modo que realizou entrevistas e visitas a lugares pelos quais Arendt passou.

Em contraponto, a biografia de Heberlein se diferencia das biografias escritas por Watson e Courtine-Dénamy. Ao rejeitar, em seus objetivos, escrever a história do pensamento de Arendt, acaba por se afastar de Watson (2001), que procura justamente escrever uma biografia sintética do pensamento de Hannah Arendt. Ao passo, se distancia da proposta de Courtine-Dénamy (1994, p. 11), que busca “delimitar uma identidade de múltiplas facetas”, ou seja, relatar as múltiplas identidades de Arendt: judia, americana, alemã, política, casada, professora, amiga etc.

Passemos, então, da leitura comparativa para a descrição sintética da biografia escrita por Heberlein. No capítulo um, a biógrafa descreve a infância de Arendt de modo sucinto, passando rapidamente por acontecimentos como a doença e morte de seu pai. Contudo, destaca personagens como o avô Max Arendt, a mãe Martha Arendt e escritores como Kierkegaard. Entre os capítulos dois ao quatro, descreve o início da vida acadêmica até a fuga da Alemanha, em 1933. Ao passo, destaca a relação entre Arendt com o Martin Heidegger.

Já nos capítulos cinco e seis, a autora abre um parêntese para debater o pensamento de Arendt sobre a ascensão do nazismo. Para tanto, vale-se das ideias apresentadas nos clássicos Origens do totalitarismo e Eichmann em Jerusalém. Após, entre os capítulos 7 e 12, Ann Heberlein narra o período de apátrida na França até sua chegada aos Estados Unidos. Menciona brevemente o primeiro casamento de Arendt e a finalização da biografia Rahel Varnhagen. Em contraposição, destaca narrativamente o encontro e o casamento com Heinrich. Também dá ênfase à experiência no campo de internação de Gurs, a jornada de Montauban a Marselha e a amizade com Walter Benjamin.

Entre os capítulos 13 e 16, a biógrafa narra a vida nos Estados Unidos até o final da Segunda Guerra Mundial. São capítulos curtos que visam descrever experiências significativas, como a busca por aprender um novo idioma, a falta de amigos e a tomada de conhecimento do Holocausto. A reflexão de maior ênfase é sobre o sentimento de deslocamento, de “perda de contexto” que Arendt sentiu ao chegar aos Estados Unidos. Após, entre os capítulos 17 e 20, Heberlein descreve o julgamento de Adolf Eichmann, a produção e repercussão do livro Eichmann em Jerusalém e o sentido de responsabilidade frente ao Holocausto. São capítulos mais reflexivos, havendo digressões e julgamentos com maior ênfase por parte da autora.

O último conjunto de capítulos, do 21 ao 26, é referente às relações de Hannah Arendt. Primeiro sobre a relação com Heinrich, no qual a biógrafa destaca as tensões entre fidelidade e infidelidade. A segunda relação é com Martin Heidegger, com descrição dos sentimentos de Arendt pelo filósofo após a Segunda Guerra. Destaca o período de reconciliação e perdão. Por último, trata a relação entre Arendt e o mundo, focando no conceito de amor mundi.

Tais capítulos obedecem a uma lógica interna de estruturação calcada em quatro pontos: a) contexto sociopolítico econômico; b) acontecimentos específicos da vida de Arendt; c) pensamento arendtiano; e d) temática basilar. Mesclando esses quatro pontos, Ann Heberlein aborda a trajetória de vida, o contexto e uma temática específica em cada capítulo. A fim de exemplificar, resumiremos quatro capítulos enfatizando a estrutura.’

Começamos pelo capítulo dois, intitulado “A paixão”, deixando clara a temática em questão. O acontecimento abordado é a primeira fase do relacionamento entre Hannah Arendt e Martin Heidegger. O contexto em voga é o deslocamento estudantil alemão, no início da década de 1920, para a universidade de Marburgo, devido aos boatos e histórias sobre o charmoso e revolucionário professor Heidegger. Nessa relação, ao abordar a paixão no relacionamento, Ann Heberlein prioriza a descrição da visão que Heidegger tinha sobre Arendt e do romance, uma vez que indica que as cartas preservadas foram somente aquelas que Hannah Arendt guardou. Contudo, prioriza o pensamento arendtiano, afirmando que na “preocupação da paixão com o outro há uma preocupação igualmente grande com o próprio eu. Os apaixonados se espelham um no outro, procuram semelhanças e diferenças, desejam e esperam ser compreendidos num nível fundamental” (HEBERLEIN, 2021, p. 36). Essa compreensão existia entre ambos, eram dois apaixonados que possuíam motivos diferentes, estavam em fases da vida diferentes, mas que pela conversa, a paixão era mantida. Porém, a biógrafa afirma que foi o medo de Heidegger de perder seu status social/acadêmico que levou Arendt a buscar outra universidade para poder se afastar dele e completar sua tese.

Já no capítulo 15, intitulado “A forasteira”, Heberlein se vale de um apelido carinhoso dado por Heinrich para indicar o modo de pensar de Arendt, como alguém que via de fora, que observava os fatos/acontecimentos por meio de óticas diferentes. Contudo, a biógrafa aprofunda essa alcunha resgatando acontecimentos que compuseram a vida de Arendt e a fizeram mudar de lugar. Dentre os argumentos elencados, pontuamos a fase da vida de Arendt como apátrida, suas mudanças de universidades como professora convidada, sua fase quando criança que precisou se deslocar para outras cidades e a história dos antepassados de Hannah Arendt que migraram da Rússia. Para reforçar tais argumentos, Heberlein (2021, p. 126) pergunta “o que é uma terra natal, uma pátria? Um lugar que você reconhece, um lugar onde se sente em casa, um lugar onde está entre amigos, um lugar onde se sente seguro”. Destarte, reforça a alcunha de forasteira, alguém que não tem local fixo, mas móvel; no caso, onde Arendt constituía laços afetivos.

No capítulo 17, intitulado “O direito a direitos”, Haberlein se vale de uma tese arendtiana. A tese de maior significância para o âmbito dos Direitos Humanos, pois, como bem explica Heberlein (2021, p. 133): “Isso significa que os direitos humanos não são garantidos nem pela história […], nem pela natureza, como alegaram os filósofos do Iluminismo. Hannah acredita que apenas as próprias pessoas podem garantir os direitos humanos a outras pessoas”. Em outras palavras, foi o colapso dos direitos dos judeus nas décadas de 1930 e 1940, na Alemanha, que levou Arendt a refletir sobre os mecanismos necessários para garantir tais direitos humanos. A resposta foi que os sujeitos não podem preservar os direitos humanos sem a ajuda de outros, ou seja, da política. ‘

No capítulo 21, intitulado “Sobre o amor e fidelidade”, aborda a fase de casamento aberto de Arendt com Heinrich. Interessante que a biógrafa busca uma relação de influências entre essa decisão privada com o contexto geral da época. Indica o contexto anarquista do período de apátrida, os salões berlinenses, as ideias do surrealismo e a vida noturna parisiense. Busca comparações com outros casais que tiveram seus relacionamentos extraconjugais de forma aberta, dando destaque para o famoso caso de Sartre e Simone de Beauvoir. Contudo, a dinâmica do relacionamento de Arendt levou Heberlein a se voltar para a descrição privada.

Dessa forma, Heberlein relata que, quando Arendt descobriu o caso entre Heinrich e uma jovem judia americana, se sentiu desconfortável e traída. O pior momento foi quando o caso extraconjugal mantido pro Heinrich chegou ao conhecimento de seu círculo de amigos. Ao analisar o diário pessoal de Arendt, afirma que ela buscou intelectualizar as circunstâncias pessoais que estava vivendo. Ressalta a compreensão de Arendt de que Heinrich “não havia prometido nada além de ser ‘fiel à sua maneira’, o que significava uma fidelidade emocional e intelectual, mas não necessariamente sexual” (HEBERLEIN, 2021, p. 165). Chegando assim às considerações de que Arendt passou a considerar a infidelidade sexual algo inocente, sem a intenção de magoar. Todavia, considerava infidelidade verdadeira “o esquecimento, o que, em última análise, é o único pecado real, porque extingue a verdade, a verdade do que foi” (HEBERLEIN, 2021, p. 169). Com isso, a antítese de infidelidade é definida como “algo distinto da fidelidade sexual e tem a ver com continuidade, lealdade e confiabilidade, com se dedicar um ao outro, com ser fiel ao que é verdadeiro, genuíno e importante” (HEBERLEIN, 2021, p. 169). A biógrafa conclui que tais concepções tiveram maior efeito prático na vida de Arendt após a retomada de relacionamento com Heidegger, havendo uma reconciliação.

No seio dessa estrutura, Heberlein emprega duas categorias que consideramos valiosos ganhos para a compreensão de histórias de vidas, em especial de Hannah Arendt. A primeira categoria que destacamos é o contexto. No capítulo 14, “Sem um lugar para chamar de meu”, ao descrever os sentimentos de Heinrich no período inicial dos Estados Unidos, afirma que “perder o emprego e ficar sem contexto é uma experiência profundamente deprimente. Quando uma pessoa perde seu contexto, as bases de sua existência são abaladas” (HEBERLEIN, 2021, p. 122). Reforçando essa afirmação, no capítulo 16, “O fim da guerra”, Heberlein (2021, p. 129) evidencia que Arendt e Heinrich “lutaram para encontrar emprego, sustento e contexto” durante o período como apátridas. Já no capítulo 26, “Reconciliação”, ao descrever o falecimento de Heinrich, afirma que “com Heinrich morreu também o mundo que era deles, o mundo de Hannah e Heinrich, o contexto que fora a segurança e o lar de Hannah desde que conhecera o marido no final da década de 1930” (HEBERLEIN, 2021, p. 207). E no capítulo 11, “O significado da esperança”, ao refletir sobre os pensamentos de Arendt sobre o suicídio de Walter Benjamin, pontua que “qualquer pessoa pensante e de letras pode entender seu desespero. Uma biblioteca é mais do que uma coleção de livros: é um mundo inteiro” (HEBERLEIN, 2021, p. 98).

Destarte, “ficar sem contexto”, “as bases de sua existência”, “lutaram para encontrar […] contexto”, “um mundo inteiro” e o sentimento de Hannah Arendt de perda de contexto, de mundo quando Heinrich morreu, evidenciam o emprego de uma concepção de contexto singular. Nessa ótica, o contexto compreende os elementos primordiais para a vida de uma pessoa, os elementos fundamentais que podem ser influenciados, mas que originalmente influenciam o sujeito. Ao passo, como mostrou a passagem sobre Benjamin, não necessita serem elementos encontrados no presente, mas podem ser heranças/livros.

Essa visão se diferencia da concepção empregada no campo da História. Segundo Barros (2013, p. 137), contexto “corresponde à relação do texto [fonte] com a realidade que o produziu e que o envolve”. Ao passo, a aplicação que resulta na chamada contextualização, “significa que você examina um problema relacionando-o com uma realidade mais ampla que o envolve” (BARROS, 2013, p. 137). Seriam, então, os fatores que circunscrevem o sujeito, tanto em um nível macro quanto micro. Destarte, Heberlein se diferencia com sua concepção de contexto que prioriza os elementos fundamentais considerados pela própria fonte.

A segunda categoria, situação-limite, podemos chamar de chave de leitura para a história de vida de Hannah Arendt. A compreensão dessa categoria está descrita no capítulo três, “Situações-limite”, no qual a biógrafa dá prosseguimento ao caso amoroso entre Arendt e Heidegger, saindo da paixão arrebatadora para a decepção amorosa de viver um relacionamento em segredo. Ao mesmo tempo, saindo de uma ascensão acadêmica para a fuga do país em 1933. Diante desses contrastes, Heberlein (2021, p. 42) afirma:

A observação de Hannah sobre a dor como parte da vida, até mesmo como uma maneira de se sentir viva, faz lembrar o termo Grenzsituation, de Karl Jaspers, um conceito que ele define como “situação existencial decisiva”. Tratase de situações que apresentam um desafio existencial, ou seja, os grandes e decisivos acontecimentos que não podem ser evitados. As situações-limite são paradoxais, pois nos levam a perceber as limitações da vida e mesmo assim a nos sentir intensamente vivos.

Noutras palavras, Ann Heberlein reconfigura o conceito Grenzsituation de Jaspers em “situação-limite”, abrangendo as experiências contrastantes na vida de um sujeito, que são conflituosas e que fazem viver de forma intensa.

Essa chave de leitura é desenvolvida em toda obra, configurando-se como pedra conceitual basilar. Desde o subtítulo “entre o amor e o mal”, aos capítulos denominados “O significado da esperança: sobre o suicídio” e “O bem e o mal” explicitam a interpretação da vida de Arendt como vivida no limite de polos. Heberlein evidencia o caso do totalitarismo como grande virada reflexiva juntamente com o caso Eichmann. A prisão de Arendt, em 1933, foi considerada “o estopim que a leva a agir”. Contudo, é no último capítulo que se dá o arremate para essa compreensão.

Nesse capítulo, a biógrafa inicia descrevendo o acidente de táxi sofrido por Arendt em 1962, afirmando que ela passou a observar a vida como bela, havendo uma “reconciliação com o mundo”. Segundo Heberlein (2021, p. 205):

Hannah havia se reconciliado com o mundo. Dez anos antes, em 1952, ela escreveu numa carta a Kurt Blumenfeld: “Se a história do mundo não fosse tão perversa, seria maravilhoso viver’. Em 1962, chegou à conclusão de que ‘gostaria muito de permanecer neste mundo’ e que ‘a vida é mesmo bela”.

Essa reconciliação pressupõe a premissa de que Arendt, após o Holocausto e o Nazismo, havia rompido com o mundo devido aos atos monstruosos sem precedentes. É uma tese interessante e problemática que merece uma revisão. Porém, nesse momento, continuemos com o raciocínio. Após o acidente, ocorre a reconciliação, despertando novamente a vontade de viver e a visão do mundo como belo. Desta forma, a autora encerra o capítulo descrevendo o falecimento de Heinrich. Destarte, Heberlein passa por três situações-limites, do Holocausto à reconciliação e da reconciliação à morte de Heinrich.

Desse modo, consideramos a biografia de Hannah Arendt, escrita por Ann Heberlein, uma aquisição para a compreensão da vida e obra de Arendt. Os objetivos propostos foram contemplados na íntegra e a tese (compartilhada não só por Heberlein) da vida de Arendt com o poder de iluminar tempos sombrios, se mostrou na narrativa como verdade. Destacando a trajetória em tempos turbulentos, em situações-limites, a biógrafa conseguiu abordar essa luminosidade e apresentar duas categorias valiosas para o campo da historiografia.

Referências

ADLER, Laure. Nos passos de Hannah Arendt. Tradução de Tatiana Salem Levy e Marcelo Jacques. Rio de Janeiro: Record, 2007.

BARROS, José D’Assunção. O campo da história: especialidades e abordagens. 9. ed. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 2013.

COURTINE-DÉMANY, Sylvie. Hannah Arendt. Tradução de Ludovina Figueiredo. Lisboa: Instituto Piaget, 1994.

HEBERLEIN, Ann. Arendt: entre o amor e o mal: uma biografia. Tradução de Kristin Lie Garrubo. São Paulo: Companhia das Letras, 2021. 242 p.

LAFER, Celso. Hannah Arendt: vida e obra. In: LAFER, Celso. Hannah Arendt: pensamento, persuasão e poder. São Paulo: Paz e Terra, 2018. p. 97-120.

MAY, Derwent. Hannah Arendt: a notável pensadora que lançou uma nova luz sobre as crises do século XX. Tradução de Ruy Jungmann. Rio de Janeiro: Casa-Maria Editorial, 1988.

WATSON, David. Hannah Arendt. Tradução de Luiz Antônio Aguiar e Marisa Sobral. Rio de Janeiro: DIFEL, 2001.

YOUNG-BRUEHL, Elisabeth. Por amor ao mundo: a vida e a obra de Hannah Arendt. Tradução de Antônio Trânsito. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1997.

Resenhista

Jaciel Rossa Valente – Mestrando em História pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), em Curitiba, PR, Brasil; licenciado em História pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR), em Curitiba, PR, Brasil. Bolsista pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), Brasil.

orcid.org/0000-0003-0578-3051 E-mail: [email protected]

Referências desta Resenha

HEBERLEIN, Ann. Arendt: entre o amor e o mal: uma biografia. Trad. Kristin Lie Garrubo. São Paulo: Companhia das Letras, 2021. Resenha de: VALENTE, Jaciel Rossa. Contexto e situação-limite em Hannah Arendt. Oficina do historiador. Porto Alegre, v. 15, n. 1, e-41454, jan./dez. 2022. Acessar publicação original [DR]

 

Deixe um Comentário

Você precisa fazer login para publicar um comentário.