Arte e beleza na estética medieval | Umberto Eco

A Idade Média foi um momento de constante tensão entre opostos, de contradições entre as escrituras sagradas e suas interpretações, entre a teoria e a prática da instituição e dos fiéis. Por certo, o ordenamento do mundo levava a certo controle das contradições. A escolástica chegou a propor um método para o entendimento do mundo, ocultando suas contradições. Mas, as contradições não eram totalmente ocultadas, nem tão pouco controladas; porque ao pensar o tudo e o nada, o belo e o feio, o céu e o inferno, o homem e a mulher, a estética medieval, em especial, a exposta nas Catedrais não deixava de indicar as contradições, visto que o belo além de ser compreendido como algo dinâmico, também não deixava de ser múltiplo, diverso, fugaz, assim como suas formas de representação já o eram. Assim sendo, como devemos entender a arte medieval? De que maneira a beleza foi representada? Qual sua função na sociedade? Esses foram alguns dos questionamentos que Umberto Eco2 se propôs, ao pensar a arte e a beleza na estética medieval.

Publicado nos anos de 1960, e revisto na década de 1980, o livro só recentemente traduzido para o português (por Mario Sabino3 e publicado pela Editora Record em 2010), pretendia fornecer um painel do período, na forma de um manual acadêmico, detalhando a sensibilidade na estética medieval, como foi pensada a proporção, a luz, o símbolo e a alegoria, a forma e a substância, as teorias da arte, o lugar do artista na sociedade, e as relações, aproximações e distanciamentos entre a Escolástica e o Renascimento dos séculos XV e XVI. Para isso, toma como base a “história das teorias estéticas, elaboradas pela cultura da Idade Média latina” (2010, p. 9), e de que maneira foram sistematizadas por autores como Tomás de Aquino.

Para ele, a concepção medieval da arte era expressa essencialmente pela sua função para a sociedade, que tinha além de um teor visivelmente pedagógico, um alicerce nas imagens figurativas (humanas e divinas), que também eram fundamentais para a compreensão de suas estruturas mentais e a maneira pela qual as ideias eram representadas por meio de imagens. Tais imagens eram articuladas por um projeto de cunho universalizador, porque centralizado pela instituição religiosa, embora sua apresentação pelos diferentes grupos pudesse ser peculiar, e, em certas ocasiões, entrassem em contradição, crítica e divergência um em relação ao(s) outro(s) no espaço e/ou no tempo. Justamente por essa razão, ao compendiar as ideias e as teorias estéticas do período, o autor nos forneça aproximações e distanciamentos entre eles, indo de Guilherme de Alverne a Roberto Grosseteste, do Pseudo Dionísio a São Boaventura, da escola de Chartres as visões da escolástica, da visão estética de São Tomás de Aquino as de Nicolau de Cusa, dos místicos alemães as artes liberais e servis, num movimento tenso, dinâmico e dialógico, no qual fornece exemplos, compara obras, identifica contradições e vislumbra os nexos de um projeto para o outro. Não por acaso, o autor entende:

[…] como teoria estética todo discurso que, com qualquer propósito sistemático e pondo em jogo conceitos filosóficos, ocupe-se de alguns fenômenos referentes à beleza, à arte e às condições de produção e apreciação das obras de arte, às relações entre arte e outras atividades e entre arte e moral, à função do artista, às noções de agradável, de ornamental, de estilo, aos juízos de gosto e também à crítica desses juízos, e às teorias e às práticas de interpretação dos textos, verbais ou não, isto é, à questão hermenêutica – pois ela cruza os problemas precedentes, mesmo que, como acontecia particularmente na Idade Média, não interesse apenas aos fenômenos ditos estéticos (2010, p. 11).

Foi tendo em vista esses problemas, que o autor teve o cuidado de vislumbrar que a “cultura medieval tem o sentido da inovação, mas procura entende-la sob as vestes da repetição (ao contrário da cultura moderna que finge inovar mesmo quando repete)” (p. 14). Por essa razão, o período é complexo, feito de permanências e rupturas, ainda que estas fossem menos evidentes, pois, a Idade Média foi mais uma história de permanências, “uma época de autores que se copiavam em cadeia sem citar-se – mesmo porque em uma época de cultura manuscrita, com os manuscritos dificilmente acessíveis, copiar era o único meio de fazer circular as ideias” (p. 16). É com base nessas premissas que devemos entender como a Idade Média tirou da antiguidade clássica “grande parte de seus problemas estéticos, mas conferiu a tais temas novo significado, inserindo-os no sentimento do homem, do mundo e da divindade típicos da visão cristã” (p. 17).

Além do mais, é justamente por essa via que se deve compreender qual o tipo de sensibilidade estética que se produziu no período medieval, tendo em vista a maneira como se via o corpo masculino e feminino, os fluídos corporais, os gestos, os signos e os símbolos. Para se compreender de que modo cada um desses temas eram tratados era fundamental, antes disso, entender como foi construído os alicerces da Igreja, de que maneira formou uma interpretação ‘adequada’ das sagradas escrituras, como as divulgou e as fez representar por meio dos que ‘oravam’, além de serem vistas nas paredes internas e externas de suas Igrejas (e demais construções no período da arte românica) e, depois, nas Catedrais (góticas), na forma de imagens figurativas humanas e divinas – que apresentavam tanto um ordenamento e uma serenidade para os que eram escolhidos para ingressarem ao paraíso, quanto uma desordem permeada pela dor e pelo caos, aos que não cumpriam tais preceitos e eram enviados ao inferno, após a morte. De igual maneira, deve-se verificar como os símbolos eram identificados aos representantes de Deus, como no caso dos evangelistas, e quais os signos que se utilizavam para enfatizar o grau de autoridade divina, então simbolizada na figura do filho de Deus. Por esse motivo, uma das vias de acesso ao divino, que era representado pelas escrituras, era por meio da compreensão da beleza, que não se limitava ao belo sensível, mas se projetava tanto na beleza das coisas da natureza, quanto naquela produzida pela arte. E é articulando esse amplo conceito de beleza, que o autor procurou sintetizar e analisar as teorias estéticas produzidas no período, e quais os debates que foram efetuados pelos seus produtores.

Para adentrar nessas questões o autor toma como base a estética da proporção e da luz, e as representações dos símbolos e das alegorias (que se fazia pela visão simbólico-alegórica do universo que a estética medieval construiu), que foram feitas na Idade Média. No caso da proporção, os debates que se proliferaram no período contribuíram para a definição da beleza como uma expressão numérica, onde o princípio da unidade na variedade servia para pensar como devia ser constituída a perfeição formal. Desnecessário acrescentar que cada tema foi tratado numa linha temporal, do início ao final da Idade Média, com vistas a identificar quais as mudanças e as permanências que havia entre autores, debates e obras. No caso da luz, a Idade Média não conhece o cromatismo, mas fazia um uso bastante eficaz da cor, em especial, quando se manifestava “um gosto muito vivaz pelos aspectos sensíveis da realidade” (p. 88). Nesses casos, “a visão da criação resulta em uma visão de beleza, quer pelas proporções que a análise descobre no mundo, quer pelo efeito imediato da luz, agradabilíssima de se ver” (p. 99).

De Santo Agostinho a São Tomás de Aquino, vê-se uma complexa rede de relações se formarem entre as interpretações, que se faziam sobre a estética e a constituição do belo. Como o autor demonstra, apesar das mudanças, o período se fazia mais evidente pelas permanências, que como notará no caso de Aquino ao pensar o belo, o “corpo humano é belo porque está estruturado segundo uma distribuição adequada das partes” (p. 179). Por sua vez, ao analisar alguns dos intérpretes de Tomás de Aquino no período, e as críticas e os complementos que foram feitos a sua obra, bem como a sua leitura de Aristóteles, o autor nos apresenta outra rede de relações, que se articula e se complementa com as anteriores, num constante jogo de permanências e rupturas. Assim também é que devemos visualizar as teorias sobre a arte, que “imita a natureza, mas não porque copie servilmente o que a natureza lhe oferece como modelo: na imitação da arte existe invenção, reelaboração”, pois, a “arte une as coisas desagregadas e separa as unidas, prolonga a obra da natureza, faz como a natureza produz e dá continuidade” (p. 203-4) as suas formas num intenso processo criativo.

Além de destacar os principais teóricos da estética e suas visões do belo, o autor encadeia esta análise ao papel exercido pelo artista no período, ao mesmo tempo sintetizando tais questões, num constante exercício entre o ‘fazer’ e o ‘entender’, que não estava limitado apenas à leitura das interpretações do belo, mas se articulava a própria visão que a instituição religiosa fazia sobre ele. Desse modo, a produção artística era a síntese das visões dos artistas, da instituição religiosa e dos teóricos da arte.

Portanto, além de nos oferecer um rico painel sobre as visões da arte a respeito da beleza na estética produzida pela Idade Média latina, o autor ainda nos informa como se deram os debates, quais as mudanças e as permanências sobre o conceito de belo, como era representado pelos artistas e como essas representações também eram uma síntese entre as teorias artísticas, as visões da Igreja e a criatividade dos artistas. Mesmo que tenha sido produzido nos anos de 1960, e revisto nos anos de 1980, por suas qualidades, o texto ainda permanece atual em vários pontos, tendo se assemelhado aos bons vinhos, que quando bem envelhecidos são os melhores.

Notas

2 Semiólogo e lingüista reconhecido internacionalmente, sua obra agrupa títulos como: Obra aberta (1962); Diário mínimo (1963); Apocalípticos e integrados (1964); A definição da arte (1968); A estrutura ausente (1968); As formas do conteúdo (1971); Viagem na irrealidade cotidiana (1983); O conceito de texto (1984); Semiótica e filosofia da linguagem (1984); Sobre o espelho e outros ensaios (1985); Os limites da interpretação (1990); Segundo diário mínimo (1992); Interpretação e superinterpretação (1992); Seis passeios pelo bosque da ficção (1994); Como se faz uma tese (1995); Kant e o ornitorrinco (1997); Cinco escritos morais (1997); Entre a mentira e a ironia (1998); A busca da língua perfeita (2001); Sobre a literatura (2002); Quase a mesma coisa (2003); História da beleza (2004); História da feiúra (2007); A vertigem das listas (2010). Além de vários outros livros organizados, também publicou os romances: O nome da rosa (1980); O pêndulo de Foucault (1988); A ilha do dia anterior (1994); Baudolino (2000); A misteriosa chama da rainha Loana (2004); O cemitério de Praga (2011).

3 Jornalista e escritor brasileiro, com um número considerável de romances e contos publicados, dos quais O dia em que matei meu pai (de 2004) já foi publicado para vários idiomas.


Resenhista

Diogo da Silva Roiz – Doutorando em História pela UFPR, bolsista do CNPq. E-mail: [email protected]


Referências desta Resenha

ECO, Umberto. Arte e beleza na estética medieval. Tradução de Mario Sabino. Rio de Janeiro: Record, 2010. Resenha de: ROIZ, Diogo da Silva. Signum- Revista da ABREM, v. 12, n. 1, p.185-188, 2011. Acessar publicação original [DR]

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