Cidade, personagens e ocupações dos espaços | História Oral  | 2019

O tema Cidade, personagens e ocupações dos espaços – dossiê proposto para este número – estimula nossa imaginação e, ao mesmo tempo, provoca inquietude por querermos lembrar experiências e personagens na luta contra o esquecimento. Sejam de tempos mais afastados de nosso presente cotidiano, sejam de momentos mais próximos de nossas vivências atuais. A temática é complexa, multifacetada e sempre atual.

As autoras e os autores em seus textos escritos assinalam os traços do passado que ainda estão a significar os espaços das cidades no presente: “… reminiscências que não descansam antes que a pena ou a língua as publique” (Dom Casmurro, Machado de Assis). Acontecimentos traumáticos também marcam e constroem outras memórias superpostas a uma imensa variedade de histórias em tempos diferentes. Certamente, a matéria das lembranças multiplica o campo de imagens e transforma-se em narrativas tecidas com as experiências individuais e coletivas.

O artigo de Maria Izilda Santos de Matos e Eder Aparecido Ferreira Sedano, Experiências urbanas e tensões: trajetória, oralidade e música em Bezerra da Silva, traz uma reflexão importante sobre a trajetória e a obra de Bezerra da Silva associadas às experiências vivenciadas nos morros cariocas; o artista retratava mudanças e se apropriava de símbolos, gírias e práticas através de sua inserção e suas conexões com os moradores dos morros. Bezerra da Silva compõe, assim, uma rica tapeçaria social de história de vida a ser contada e ouvida. Um debate atual que mobiliza temas contemporâneos não apenas no campo da História.

Em História Oral, prática futebolística e cidades no Brasil: conflitos e apropriações nas narrativas de ocupação dos campos de “futebol de várzea” de Belo Horizonte-MG, Bernardo Borges Buarque de Hollanda e Raphael Rajão Ribeiro abordam um tema rico e importante para a História Social, o processo de reivindicação de jogadores e clubes não profissionais por espaços urbanos que viabilize a prática do “futebol de várzea”, modalidade nomeada como amadora, na região metropolitana de Belo Horizonte, Minas Gerais. Esse estudo de caso revela, entre outros aspectos, novas facetas do universo esportivo brasileiro que são narrados por antigos e atuais membros das entidades esportivas, narrativas que se centralizam na trajetória dos clubes, mas, sobretudo, na posse ou perda do campo de jogo pelas entidades. Aspecto esse, organizado pelas memórias dos depoentes, que pode revelar sentidos sobre a ocupação do espaço e a luta pelo direito à cidade através da experiência do futebol de várzea na capital mineira.

No artigo A sirene que não toca: memórias sobre ruínas e desocupação de uma cidade mineradora, Andrea Casa Nova Maia e Regina Helena Alves da Silva relatam aspectos trágicos imbrincados à história da mineração no estado de Minas Gerais. Trata-se de uma reflexão sobre o percurso da memória dos moradores atingidos pela avalanche de lama provocada pelo rompimento de uma barragem de rejeito da mineradora Samarco nas cidades mineiras de Bento Rodrigues e Paracatu de Baixo, em Mariana, em novembro de 2015. Nele, apresentam como os moradores atingidos produziram ações de memória (textos, vídeos, jornais, perfis e sites na internet) como forma de fala, expressão e comunicação. O artigo é tecido através da articulação da memória do trauma com o espaço da cidade perdida e, ainda, de como as lembranças revelam as experiências de um grupo que se desterritorializa em sua própria cidade. Além disso, a catástrofe afetou não apenas as populações atingidas, mas também impactou politicamente a sociedade brasileira.

Já o artigo “Menino do Beco”: memórias de uma infância vivida numa zona de meretrício em Diamantina-MG (1950-1968), de Débora Antonieta Silva Barcellos Teodoro e Keila Auxiliadora Carvalho, analisa o relato do filho de uma ex-prostituta que viveu parte da infância morando em uma zona de meretrício, no centro histórico da cidade de Diamantina. As memórias centralizam alguns aspectos da infância com a experiência da exclusão, o estigma decorrente da filiação e do local onde morava, além de apresentar estratégias de resistência em um espaço urbano considerado estigmatizado e proibido.

No artigo intitulado Memória individual como expressão de uma memória social: reminiscências reveladoras das múltiplas facetas de Fortaleza, Gisafran Nazareno Mota Jucá apresenta seu narrador e como esse transita pelas edificações urbanas de Fortaleza, capital do Ceará, remetendo à experiência da cidade configurada enquanto espaço social que revela variados aspectos do passado, mas também do presente, com todas as suas contradições sociais.

Daniel Evangelho Gonçalves, em Os Açorianos no Rio de Janeiro – inserção social e estabelecimento, debate a inserção social dos açorianos na cidade do Rio de Janeiro por meio das atividades laborais, revelando entre outros aspectos como essa inserção foi marcada pela transição das atividades rurais para as comerciais.

Por sua vez, o artigo Memórias e práticas culturais: a modernização do comércio de alimentos de uma cidade do Sertão de Pernambuco na década de 1970, de Helder Remigio de Amorim, relaciona cidade, memória e práticas culturais a partir do comércio de alimentos, na década de 1970, em Arcoverde, cidade Pernambucana, tentando compreender, por meio das narrativas produzidas pelos moradores da cidade, como o advento de equipamentos urbanos, como o supermercado, produziram novas práticas transformadoras do cotidiano e a normatização dos espaços, modificando hábitos e costumes.

Teresina, capital do Piauí, é cenário das narrativas produzidas em dois artigos, o primeiro Espaços culturais de Teresina-PI: cotidiano, memórias e sociabilidades (Décadas de 1980 e 1990), de Raimundo Nonato Lima dos Santos, analisa as práticas cotidianas construídas em espaços culturais da cidade por artistas locais e avalia os significados desses espaços culturais para esses artistas; o segundo artigo, Para além das margens: o Conjunto Habitacional Itararé e as remodelações dos espaços urbanos em Teresina (década de 1970), de Claudia Cristina da Silva Fontineles e Marcelo de Sousa Neto, procura debater, a partir do uso de entrevistas orais entrecruzadas com outras fontes, como foi planejada e implantada a construção do Conjunto Habitacional Itararé – atualmente denominado de Dirceu Arcoverde – construído além do perímetro urbano da capital do Piauí e voltado para moradias populares, durante a década de 1970.

Encerrando a sessão do dossiê do presente número, Paulo Henrique Tôrres Valgas em Urban Sketchers e a cidade: sociabilidades, materialidades e sensibilidades, analisa uma comunidade de desenhistas que pratica o desenho no local para capturas das cidades onde vivem e para onde viajam. O autor afirma que esse movimento pode ser entendido como uma possibilidade de elo entre seus moradores, como também de troca de experiências sobre o olhar e o sentir a vida na urbe, demonstrando assim sua relação com os ambientes urbanos e respondendo às demandas das cidades na contemporaneidade.

Esta edição conta também com dois artigos, aprovados em fluxo contínuo, que ampliam o escopo da proposta da revista. Assim, na seção de artigos variados, Ananda Machado, em O uso da História Oral na construção de Museus Indígenas: experiências em Roraima, reflete sobre a construção de exposições/museus de modo coletivo, físico e/ou digital com povos indígenas a partir de experiências com História Oral, entrevistas realizadas na língua Wapichana, principalmente na região Serra da Lua, em Roraima. A autora reflete sobre quais objetos expor, em quais espaços e como trabalhar a educação patrimonial entre culturas. No artigo As trajetórias das professoras do Jalapão e seus percursos formativos, Odaléa Barbosa de Sousa Sarmento, Jocyléia Santana dos Santos, Daniela Patrícia Ado Maldonado utilizam a metodologia da História Oral para analisar as narrativas de professoras da educação infantil do Jalapão, área localizada a leste do estado do Tocantins. As entrevistas revelaram múltiplos aspectos das trajetórias de vida das professoras através da memória, como o processo de escolarização, a escolha profissional, o percurso histórico de saberes cotidianos e a dificuldade da formação continuada.

Por fim, neste número constam ainda duas resenhas. A primeira escrita por Carlos Eduardo Pereira de Oliveira sobre o livro do historiador Daniel Lopes Saraiva, Nara Leão: trajetória, engajamento e movimentos musicais (2018) e a segunda de Samuel Silva Rodrigues de Oliveira sobre A ditadura aconteceu aqui – a História Oral e as memórias do regime militar brasileiro (2017), coletânea organizada por Carolina Dellamore, Gabriel Amato e Natália Batista, ambas contribuições significativas para a historiografia brasileira.

Nossos agradecimentos especiais aos colaboradores e colaboradoras que contribuem com este número e muito enriquecem a Revista História Oral. Do mesmo modo, nosso muito obrigado aos pareceristas e à equipe de revisão e editoração que se dedicam para manter a qualidade do periódico.

O tema do dossiê, demais artigos e resenhas são um convite à reflexão política e social da nossa contemporaneidade.


Organizadores

Regina Beatriz Guimarães Neto – Editora de História Oral.

Sara Oliveira Farias – Editora de História Oral.


Referências desta apresentação

GUIMARÃES NETO, Regina Beatriz; FARIAS, Sara Oliveira. Apresentação. História Oral, v. 22, n. 2, p. 5-8, jul./dez. 2019. Acessar publicação original [DR]

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