…como se fosse um deles: almirante Aragão – Memórias, silêncios e ressentimentos em tempos de ditadura e democracia

Obra de cunho histórico-biográfico, publicada no ano de 2017, foi finalista do Prêmio Jabuti, da Câmara Brasileira do Livro, na categoria biografia, em 2018. Seu autor, Anderson da Silva Almeida, sergipano, marinheiro entre os anos de 1996 e 1999, e sargento fuzileiro naval de 1999 a 2010, quando deixou as fileiras da Marinha do Brasil, é hoje professor na Universidade Federal de Alagoas.

Resultado de sua pesquisa de doutorado, cuja Tese foi defendida em 2014, junto ao Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense (UFF), o livro é uma contribuição no sentido de, em um quadro atual de franca disputa de memórias em torno de fatos e contextos históricos que tocam o passado ditatorial recente do Brasil, reconstruir a trajetória do vice-almirante fuzileiro naval Cândido da Costa Aragão, sobretudo a partir de seu ingresso como soldado nas fileiras da Marinha do Brasil, com ênfase nos contextos em que esteve inserido desde os anos iniciais da década de 1960, passando pela associação de marinheiros e fuzileiros navais e o golpe civil-militar em 1964, até seu regresso do exílio, no ano de 1979.

No quadro dos acontecimentos que desdobraram no golpe civil-militar de 1964 e que, consequentemente, conduziram o Brasil a uma “tormenta” que duraria mais de vinte anos, cujas memórias ainda se encontram em franca disputa, a mobilização de militares das graduações1 iniciais2 da carreira naval brasileira, em torno da Associação de Marinheiros e Fuzileiros Navais do Brasil (AMFNB – 1962/64), se reveste de fundamental importância para quaisquer análises acerca do referido golpe de Estado. Especialmente em função do processo de radicalização do movimento “fuzinauta” 3 que, na esteira da crise entre a alta administração naval e sua associação, foi interpretado como instrumento político de desestabilização por meio da subversão da hierarquia e da disciplina das Forças Armadas. Foi nesse cenário que alguns personagens históricos e a própria AMFNB adquiriram notoriedade na cena pública. Entre eles, aquele sobre o qual se debruça a obra ora resenhada, o vice-almirante Cândido da Costa Aragão.

A relação entre o autor e o biografado, para além das origens nordestinas e da formação militar comum a ambos, se ancora, principalmente, nas contradições imanentes ao próprio “objeto” e em sua trajetória enquanto militar e sujeito político. Aspectos que levaram o autor, ainda durante seus estudos de mestrado na UFF, quando analisou os rumos seguidos por membros da AMFNB durante a ditadura, a questionar alguns silêncios sobre Aragão.

Figura de proa não apenas durante a crise entre a associação “fuzinauta” e a alta administração naval no ano de 1964, mas também personagem de significativa importância no quadro dos acontecimentos que desdobraram no referido golpe de Estado e, ainda, no contexto das mobilizações em oposição à ditadura, inclusive na luta armada, o paraibano Cândido da Costa Aragão ingressou como soldado no Corpo de Fuzileiros Navais (CFN)4 no ano de 1927, e alcançou o posto de vice-almirante, penúltimo posto no generalato naval brasileiro, sendo promovido pelo Presidente João Goulart em outubro de 1963. À época do golpe, ocupava o cargo de Comandante Geral do Corpo de Fuzileiros Navais e era elemento fundamental no chamado “dispositivo militar” do governo Goulart.

Não obstante seu posicionamento político em favor da legalidade e, portanto, da manutenção do mandato constitucional de João Goulart na Presidência da República. Aragão adquiriu ainda mais evidência na cena política por ocasião da assembleia realizada no dia 25 de março de 1964, em celebração ao segundo aniversário de fundação da instituição, na sede do Sindicato dos Metalúrgicos, no Rio de Janeiro quando, no contexto da crise que se instaurara na Marinha, em um quadro político e social significativamente tensionado em que se encontrava a sociedade brasileira, foram expedidas ordens de prisão contra lideranças da associação “fuzinauta” e ocorreram episódios de violência contra marujos e fuzileiros. A referida assembleia se converteu em ato permanente de protesto e Aragão se recusou a cumprir a ordem do então Ministro da Marinha, almirante Silvio Borges de Sousa Mota, para dissolver a reunião no “Palácio de Aço”.

Somente no dia 27 a assembleia seria encerrada, após o demissionário ministro Silvio Mota ser substituído pelo almirante Paulo Mário da Cunha Rodrigues, que determinou a prisão dos marujos e fuzileiros presentes no sindicato e, logo em seguida, anistiou a todos, além de reconduzir Cândido Aragão ao cargo de Comandante Geral do Corpo de Fuzileiros Navais. Após libertados, os marinheiros saíram em caminhada pela região central do Rio de Janeiro e, ao encontrarem o almirante Aragão, o carregaram nos ombros em celebração, episódio que foi amplamente noticiado pelos jornais da época e cujas imagens daquele que ficaria conhecido como o “Almirante Vermelho” e o “Almirante do Povo” nos braços de marujos e fuzileiros se tornariam emblemáticas daquele momento vivido pelo país, contrastando com o silêncio histórico ao qual foram submetidos tanto a mobilização de praças da AMFNB, quanto o próprio almirante Cândido Aragão. Foi a partir desse paradoxo que Anderson da Silva Almeida desenvolveu sua pesquisa e procurou reconstruir a trajetória do biografado.

Com base em ampla análise de um relevante conjunto de fontes, entre as quais destaco: documentos produzidos por órgãos de informações e segurança do regime militar, periódicos e fontes de memória, Anderson Almeida apresenta uma obra que, em virtude de seu caráter pioneiro enquanto biografia histórica 5 (SCHMIDT, 2000, p.66- 67) desse outro Cândido – que, a exemplo de João Cândido6, também marcou profundamente a instituição naval brasileira – não encontra paralelo na historiografia, especialmente no que concerne à abrangência e ao alcance desse trabalho que, longe de se limitar a narrar a trajetória de vida desse importante personagem histórico, busca contextualizar o “objeto” e os muitos cenários em que esteve inserido, considerando sempre o caráter dialético entre eles, colaborando para trazer à tona não apenas a memória do almirante Cândido da Costa Aragão, mas a própria memória da AMFNB, de seus membros e apoiadores e de muitos outros que sofreram com a repressão durante a ditadura civil-militar. Nesse sentido, entendo que o conceito histórico de Memória se apresenta como o principal arcabouço da obra ora resenhada, não apenas por seu caráter histórico-biográfico, como já mencionado, mas, sobretudo, pelo modo como se coloca em uma arena de disputas ainda significativamente abertas em torno das memórias desse período tão tensionado da história recente do Brasil, ao buscar (re)construir a trajetória de um de seus mais destacados personagens históricos. É nessa perspectiva de embates de memórias que o autor trabalha o conceito em sua obra.

Compreendendo que “as disputas e batalhas memoriais sobre o investigado não dizem respeito apenas ao passado, mas, acima de tudo, sobre o presente” (ALMEIDA, 2017, p. 19), o autor aponta ao leitor, logo na primeira página da introdução e em todo o primeiro capítulo, a maneira como se apropriou do conceito de memória e sua relevância fundamental no contexto da pesquisa. Na medida em que destaca o caráter de permanente (re)construção, ao afirmar que as “lembranças e os silêncios sobre Aragão mostram como as memórias são construídas e reconstruídas sempre a partir do presente” (ALMEIDA, 2017, p. 51).

Desse modo, entendo que cabe ressaltar ao leitor que o conceito de memória, sobre o qual o autor fundamenta sua análise, para além do ato de rememorar, ou seja, ademais de se constituir enquanto essa importante faculdade da mente humana, é um construto social fundamental para a construção ou (re)afirmação de identidades e o estabelecimento de suas fronteiras (CASTRO, 2016 p. 31). Haja vista que, não obstante ser um fenômeno fundamentalmente individual, edificado a partir das relações sociais entre os indivíduos integrantes de um determinado grupo (PORTELLI, 1997, p.16), é também resultante da interação social dentro de grupo ou segmento sociais e, desse modo, está sujeita à constante (re)construção.

E é nesse quadro que o esquecer ou o silenciar se apresentam como opções de memória, assim como o recordar, que é “uma re-presentificação (sic.) doadora de futuros a um passado” (CATROGA, 2001, p. 25) em constante reconstrução de acordo com demandas do presente e perspectivas de futuro, ou, nas palavras de Fernando Catroga (2001, p. 20), a memória “é a retenção afectiva (sic.) e “quente” dos “traços” inscritos na tensão tridimensional do tempo que permanentemente a tece”.

Assim, o autor estruturou toda sua obra, especialmente o primeiro capítulo, trazendo ao leitor a contradição entre a importância de Aragão enquanto sujeito histórico e os silêncios e esquecimentos que permeiam sua trajetória, não apenas como personagem político e militar no contexto do golpe e da ditadura civil-militar, mas como o único soldado que se tornou almirante e Comandante Geral do Corpo de Fuzileiros Navais, aspectos que deveriam, por si só, concorrer para que a memória desse militar fosse preservada. São fatores que contribuem para que haja um esforço da instituição naval em esquecê-lo, além de um incômodo silêncio por parte da historiografia.

Em seu primeiro capítulo, Anderson traz ao leitor um debate muito bem estruturado acerca das disputas de memória em torno de Cândido Aragão e, especialmente, sobre seu papel no quadro dos acontecimentos que desdobraram no golpe civil-militar de 1964. O autor evidencia o esquecimento histórico a que a Marinha brasileira submeteu Aragão ao ponto de, como bem ilustrado na obra, sua foto não constar na galeria daqueles que foram Comandantes Gerais do CFN e seu nome, assim como o do outro Cândido, ser “impronunciável” internamente à Força, gerando um desconhecimento, entre marinheiros e fuzileiros que não viveram aquele período, sobre quem foi Cândido Aragão, conforme breve levantamento trazido pelo próprio autor (ALMEIDA, 2017, p. 53).

Tendo em conta que a mobilização de cabos, soldados e marinheiros por questões relacionadas às suas carreiras, condições de trabalho e garantias sociais, bem como suas manifestações públicas em apoio ao Presidente da República, comandante-em-chefe das Forças Armadas, eram interpretadas por seus superiores hierárquicos – e por grande parte da sociedade – como atos “potencialmente corrosivos para a organização e para a sociedade” (CARVALHO. 2006, p.70), para os “vencedores” de 64, Aragão era um exemplo “negativo”, pois, de soldado a almirante legalista tornou-se líder e aproximou-se daqueles com os quais tinha maior identificação, marinheiros e soldados cujas origens sociais ele bem conhecia e compreendia. Para estes, era um exemplo, para a instituição, era um perigoso “Almirante Vermelho” cuja memória poderia ser ainda mais temerária que a própria pessoa devendo, assim, ser esquecida e silenciada. Reforçando a ideia de que os silêncios e os esquecimentos são opções no campo das “batalhas de memória”, esta, “imersa no presente, preocupada com o futuro, quando suscitada, é sempre seletiva. Provocada, revela, mas também silencia” (REIS, 2004, p. 29).

Nesse ponto, considero importante destacar um aspecto que não foi abordado pelo autor: as contradições na apropriação dos conceitos de hierarquia e disciplina – preceitos fundamentais da estrutura de quaisquer instituições militares, alicerces da própria atividade – tanto por parte dos sujeitos históricos, no quadro dos acontecimentos, quanto por aqueles que, há anos, vêm travando a intensa batalha no campo das memórias. Tendo em conta as origens sociais e a ascensão hierárquica de Aragão, desde soldado, a análise dessas contradições se mostra relevante no sentido de suscitar reflexões acerca da percepção distinta que se nota em relação ao aspecto hierárquico-disciplinar, quando o que se tem em vista são mobilizações de praças. Especialmente pelo fato da “virtual” ameaça a esses dois preceitos, ou seja, de subversão da hierarquia e da disciplina nas instituições militares, figurar como uma justificativa maior ou a “gota d’água” para o golpe, princípios que figuram como inegociáveis quando se trata das mobilizações de praças, mas que aparecem significativamente flexibilizados quando oficiais se articulavam, mesmo que em movimentos de cunho conspiratório. Tal paradoxo aponta para o entendimento de que a disciplina (social) que garantia a manutenção da hierarquia (social) não se limitava aos muros dos quartéis ou às bordas dos navios (CASTRO, 2020, p.33), indicando que, nas palavras do próprio Anderson Almeida (2010, p.79), “a origem social determina quem ou não pode destruir ou fazer tremer os alicerces da hierarquia”.

Na sequência, o autor traz um breve, mas bem fundamentado, histórico das origens e da trajetória do Corpo de Fuzileiros Navais, antes de trazer ao leitor a trajetória do próprio Cândido da Costa Aragão desde suas origens no estado da Paraíba, marcado por todas as dificuldades características das populações pobres do Nordeste ainda no início do século XX, com destaque para as secas históricas, passando pelo início de sua formação militar no Exército Brasileiro, ainda em seu estado natal, e seu ingresso no Regimento Naval, já no Rio de Janeiro, em outubro de 1927. A partir desse momento do livro, o autor passa a detalhar a carreira militar de Aragão na Marinha do Brasil, em um contexto de transformação e reformulação por que passava a tropa de fuzileiros à época quando, na graduação de primeiro-sargento, Aragão foi designado para compor as primeiras turmas de oficiais comissionados que integrariam os quadros de oficiais do CFN, situação que contrastava com a carreira dos oficiais do Corpo da Armada – mais tradicional e prestigiado dos segmentos que compõem a estrutura organizacional de pessoal da Marinha do Brasil – oriundos de segmentos mais favorecidos da sociedade, realizavam seus cursos de formação na Escola Naval. No entendimento de José Murilo de Carvalho (2006, p.19), ao referir-se ao perfil da oficialidade da Armada, o reduzido número de oficiais da Marinha – em comparação ao Exército – e as recorrentes viagens ao exterior reforçavam o padrão elitista de recrutamento e o perfil aristocrático da oficialidade naval brasileira. Anderson deixa evidente esse contraste e as dificuldades enfrentadas por Aragão ao ascender ao oficialato a partir da condição de praça.

Ao buscar reconstruir o caminho de Aragão em sua carreira no CFN, Anderson Almeida destaca que foi durante essa formação militar que o futuro almirante construiu as bases de sua orientação política e ideológica. Uma vez que foi nas fileiras da Marinha que Aragão experienciou o período entre os anos 1930-1960, quando as Forças Armadas, enquanto instituição, exerceram de modo mais agudo o papel de ator político, de modo que, ao alcançar o generalato naval, Aragão já era conhecido como um militar nacionalista, defensor da legalidade constitucional e simpático a alguns posicionamentos à esquerda do espectro político.

Apesar de não ter como foco principal a mobilização de marinheiros e fuzileiros navais, cujas demandas estavam relacionadas, basicamente, a questões afeitas às condições de trabalho a bordo, carreira e a avanços em direitos e garantias sociais, não há como trabalhar a trajetória do almirante Cândido Aragão sem tocar na associação “fuzinauta”, organização que se constituiu a partir de um processo de identificação que se deu no transcurso das relações sociais estabelecidas entre oficiais e marinheiros/soldados, em um contexto relacional fundamentado em uma rotina de dominação e resistência, culminando em uma entidade que se constituiu como “ato de resistência” (CHAUI, 1986, p.63) daqueles militares enquanto grupo ou segmento social específico na Marinha. Entretanto, sem mergulhar em seu processo de mobilização e suas demandas históricas, no terceiro capítulo, o autor desenvolve o que seria o “ponto alto” de Aragão em sua trajetória militar e política: o ano de 1964 e o golpe civil-militar efetivado no primeiro dia de do mês de abril.

Por meio da análise de documentos de órgãos de informações, depoimentos à justiça, memórias e matérias de imprensa, Anderson Almeida conseguiu deixar patente a posição de significativa relevância ocupada pelo então Comandante Geral do Corpo de Fuzileiros Navais, vice-almirante Cândido Aragão, em apoio ao Presidente João Goulart e seu projeto reformista. E ainda, o seu envolvimento com o movimento dos marinheiros, mais especificamente o impacto político de sua atuação no episódio da assembleia do dia 25 de março. Em um quadro de acentuada polarização política e mobilização social que o levou à prisão logo no dia 4 de abril de 1964, quando, imediatamente após o golpe, teve início uma intensa perseguição àqueles militares que participaram e/ou, de alguma maneira, apoiaram o movimento “fuzinauta”. Segundo aponta o autor, Cândido Aragão teria sido preso sem um mandado de prisão, que somente seria expedido nos últimos dias do mês de maio, tendo então permanecido preso na Fortaleza de Lages, navio Princesa Leopoldina e, por fim, no Centro de Armamento da Marinha, até o início de agosto desse mesmo ano.

Cabe destacar que o navio Princesa Leopoldina também foi cárcere de outro oficial da Marinha durante esse período: o capitão-tenente Aldo Lapolli (CASTRO, 2016, p. 128-136), oficial também oriundo dos quadros de praças da Marinha, integrante do Corpo Auxiliar da Armada – subdivisão da estrutura organizacional da força naval destinada aos praças da Armada que ascendem ao oficialato – que foi preso no dia 3 de abril, na cidade gaúcha de Rio Grande, e conduzido para bordo do navio hidrográfico Canopus. Lapolli foi o primeiro dos vinte e dois presos a bordo do Canopus durante o mês de abril de 1964, desembarcando no dia 17 daquele mês a fim de ser transferido para bordo do Princesa Leopoldina.

Dias após libertado, sabendo que logo seria colocado novamente na condição de procurado da “justiça”, Aragão tomou o mesmo rumo de muitos outros homens e mulheres perseguidos pelo novo regime: se abrigou em uma das muitas embaixadas que recebiam levas de brasileiros em busca de proteção e asilo. Aragão se refugiou na embaixada do Uruguai. A partir desse ponto, ainda no terceiro capítulo, o autor passa a “acompanhar” o biografado em uma nova fase de sua vida, quando deixou de ser o “Almirante do Povo” e passou a ser um homem perseguido e torturado por seus próprios “irmãos de farda”, violado e cerceado em alguns de seus direitos fundamentais. Um fugitivo em seu próprio país.

No capítulo seguinte, fundamentalmente elaborado a partir da análise de documentos de órgãos de informações, o autor consegue reconstruir a trajetória de Cândido Aragão em um dos momentos mais complexos de sua vida naquele período: o tempo em que esteve no exílio e as conexões que buscou estabelecer, tanto com outros brasileiros exilados, no sentido de procurar maneiras de lutar contra a ditadura no Brasil, quanto com atores políticos importantes dos países por onde passou. Anderson Almeida traz ao leitor muitas das experiências vivenciadas por seu biografado durante o período no exílio, desde o desejo intenso em reagir quando, recém-saído do Brasil, foi acolhido no Uruguai; suas experiências na Cuba de Fidel Castro e na China de Mao Tsé-Tung, quando visitou o front da Guerra do Vietnã; sua vivência na breve experiência socialista democrática do Chile de Salvador Allende ou ainda na Argentina peronista, durante alguns meses dos anos de 1973 e 1974, de onde seguiu para viver a experiência revolucionária dos cravos portugueses. Todos esses “portos” onde Aragão “atracou” durante seu exílio são explorados pelo autor de modo a evidenciar a relação de troca que o biografado manteve com cada um desses lugares e seus atores históricos, nas diferentes experiências revolucionárias e políticas com as quais teve contato.

No penúltimo capítulo o autor trabalha os últimos anos de Aragão no exílio, período em que esteve em Portugal e na Venezuela, entre os anos de 1974 e 1979. São linhas em que é possível perceber o amadurecimento político do biografado e, sobretudo, seu desejo de descansar em seu país frente ao implacável escorrer das areias do tempo. O último capítulo marca o desfecho que o autor faz da trajetória de Cândido Aragão, quando, por ocasião de seu regresso ao Brasil, encontrou um país muito diferente daquele que deixara em 1964. Um Brasil que agora estava em processo de reabertura democrática, onde as palavras tomavam o lugar das armas e a luta a ser travada seria, efetivamente, no campo político. A Revolução não estava mais na agenda, tampouco o direito à verdade, à memória e à justiça para as vítimas da ditadura. Nesse sexto capítulo, Anderson Almeida evidencia como, em um último ato de uma peça de teatro, o ocaso de Aragão ao se retirar lentamente da cena política o mergulharia em um silêncio pessoal que, após a sua morte, em novembro de 1998, se somaria ao esquecimento ao qual seu personagem histórico foi submetido.

Uma obra que apresenta significativa relevância historiográfica, tanto pelos resultados alcançados com a pesquisa, quanto pelas possibilidades e fontes que aponta, aliando um notável capricho literário ao rigor teórico metodológico característico da ciência histórica. No que importa à memória, não apenas do biografado, mas da própria instituição naval brasileira, o livro se constitui como contribuição ímpar, na medida em que reconstrói a trajetória de um ícone da história militar-naval do país. Lançando luzes sobre esse importante personagem, o trabalho concorre para estimular novos estudos que se debrucem sobre tantos outros silenciados e esquecidos, exilados das páginas da História que navegam em águas passadas que, de tempos em tempos, insistem em retornar às praias onde se travam as lutas de memórias.

Em …como se fosse um deles, o marinheiro / fuzileiro / historiador Anderson da Silva Almeida conseguiu, enfim, trazer de volta ao álbum a foto que faltava, a do vice-almirante fuzileiro naval Cândido da Costa Aragão.

Notas

1 Conforme previsto no Parágrafo Único do artigo 15 do Decreto-Lei nº 9.698, de 2 de setembro de 1946 – Estatuto dos Militares, posto é o grau hierárquico dos oficiais e graduação é o grau hierárquico dos praças. A carreira dos oficiais na Marinha do Brasil abrange os postos de segundo-tenente até almirante-de-esquadra; enquanto os praças são aqueles que ocupam as graduações de marinheiro/soldado até suboficial.

2 Consideradas aqui como as graduações anteriores à de terceiro-sargento – cujo ascenso se dava somente mediante o cumprimento de alguns requisitos e da aprovação em exame de habilitação à promoção – a saber: grumetes, taifeiros, marinheiros, soldados (fuzileiros navais) e cabos. Conforme previsto nos artigos 7º e 8º do Decreto do Conselho de Ministros nº 205, de 23 de novembro de 1961 – Regulamento do Corpo do Pessoal Subalterno da Armada e no artigo 1º do Decreto nº 28.880 de 20 de novembro de 1950 – Regulamento do Corpo do Pessoal Subalterno do Corpo de Fuzileiros Navais.

3 Termo empregado na Marinha para fazer referência a algo comum a marinheiros e fuzileiros navais.

4 Uma das principais frações que compõem a estrutura organizacional do contingente e da própria atividade militar da Marinha brasileira, o Corpo de Fuzileiros Navais, estruturado à semelhança das grandes unidades de Exército, adaptada às particularidades das ações de caráter naval, tem a finalidade de participar de operações anfíbias e assegurar a defesa imediata e a guarda de bases e estabelecimentos navais e, ainda, prover destacamentos de guarda para navios e estabelecimentos navais. Conforme previsto nas finalidades primárias e secundárias do CFN, atribuídas por força do Decreto nº 27.956, de 4 de abril de 1950, que aprovou e mandou executar o Regulamento para o Corpo de Fuzileiros Navais.

5 O próprio autor evidencia que a utilização desse termo se dá no sentido de diferir seu trabalho biográfico enquanto historiador, de outros tipos de biografias construídas em outros campos do conhecimento.

6 Uma das principais lideranças da Revolta dos Marinheiros de 1910, popularmente conhecida como “Revolta da Chibata”.

Referências

ALMEIDA, Anderson da Silva. Todo leme a bombordomarinheiros e ditadura civil-militar no Brasil: da Rebelião de 1964 à Anistia. Dissertação – Mestrado em História Social, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2010.

________________________. …como se fosse um deles: almirante Aragão – Memórias, silêncios e ressentimentos em tempos de ditadura e democracia. Rio de Janeiro: Eduff, 2017.

CARVALHO, José Murilo de. Forças Armadas e política no Brasil. Rio de Janeiro: Zahar, 2006.

CASTRO, Robert Wagner Porto da Silva. Na esteira da memória: a questão social e a mobilização dos marinheiros, atuação e repressão na cidade de Rio Grande- RS (1962- 1964). Dissertação – Mestrado em História, Universidade Federal de Pelotas, Pelotas, 2016.

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CATROGA, Fernando. Memória, História e Historiografia. Coimbra: Quarteto, 2001.

CHAUÍ, Marilena. Conformismo e resistência: aspectos da cultura popular no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1986.

______________. Convite a Filosofia. São Paulo: Ática, 1995.

PORTELLI, Alessandro. Tentando aprender um pouquinho. Algumas reflexões sobre a ética na história oral. Projeto História, São Paulo: PUC-SP, n.15, abril de 1997, p.13-49.

REIS, Daniel Aarão. Ditadura e sociedade: as reconstruções da memória. In: REIS, Daniel Aarão; RIDENTI, Marcelo e MOTTA, Rodrigo Patto Sá (Org.). O golpe e a ditadura militar 40 anos depois (1964 – 2004). Bauru: EDUSC, 2004.

SCHMIDT, Benito Bisso (Org.). O biográfico: perspectivas interdisciplinares. Santa Cruz do Sul: EdUNISC, 2000.


Resenhista

Robert Porto Castro Pontifícia – Doutorando em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS); pesquisador da Diretoria de Patrimônio Histórico e Documentação da Marinha (DPHDM). E-mail: [email protected]


Referências desta Resenha

ALMEIDA, Anderson da Silva. …como se fosse um deles: almirante Aragão – Memórias, silêncios e ressentimentos em tempos de ditadura e democracia. Rio de Janeiro: Eduff, 2017. Resenha de: CASTRO, Robert Porto. Revista de História da UEG. Morrinhos, v.10, n.2, jul./dez. 2021. Acessar publicação original [DR]

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