Da senzala ao palco: canção escrava e racismo nas Américas/1870-1930 | Martha Abreu

APRESENTAÇÃO: DIÁLOGOS EM DELAY

Tomo emprestada a expressão “diálogos em delay” das reflexões de Julio Groppa Aquino, que nos fala de diálogos que entrecruzam temporalidades e nos deslocam do tempo linear da cronologia:

arranjos insuspeitos de atos e palavras orquestram um tipo de interlocução que reclama um regime de tempo diverso, cuja efetuação pressupõe uma superfície temporal amarrotada, em que múltiplos estratos atravessam-se mutuamente e sem cessar. É por meneios e circunvoluções que o infinito palmilha o instante do instante. (Aquino, 2017)

A leitura desse livro de Martha Abreu provocou em mim deslocamentos no tempo tais, que me vejo escrevendo sobre eles nessa apresentação, em sucessivos encontros em delay.

Existe uma tradição popular, viva há pelo menos trezentos anos nas vilas paulistas e da divisa com Minas, que encena, dançando, as lutas indígenas. Seu nome é Caiapós. Encena a morte ou o sequestro de suas crianças, o enfrentamento das violências e a afirmação da vida e da luta pela vida. Em Poços de Caldas (MG), o Terno de Congos sempre acompanha os Caiapós em suas encenações, narrando o encontro e irmandade, na luta, entre indígenas e negros escravizados, de cujas lutas nos contam as Congadas (Memória viva, 1979). Quando, bem no início da década de 1980, fiz graduação em história, na Unicamp, eram os antropólogos que se aproximavam dessas memórias vivas, e de tantas outras que são narradas, há séculos, pelas tradições populares. Foi com eles que conheci, ainda muito nova, caiapós, congadeiros e jongueiros. A compreensão das narrativas indígenas como registros históricos, que está ainda timidamente sendo reconhecida pelos historiadores, foi-me apresentada também em um curso de antropologia, pela professora Manuela Carneiro da Cunha.

Naquele momento começavam a ser publicadas pesquisas históricas relativas às lutas populares no campo da cultura, em uma muito bem-vinda ampliação dos estudos culturais na historiografia, tanto pelo viés da Escola dos Annales, como pela historiografia inglesa ligada à New Left Review. Essa tendência afirmou-se nas pesquisas universitárias no mesmo diapasão em que, nas dinâmicas plurais da redemocratização, outros sonhos de futuro se teciam socialmente, em espaços públicos reconquistados. Tal imbricação de sonhos e desejos vividos coletivamente, que traz passado e futuro engendrados no presente, em luta por outro futuro e, simultaneamente, por outra compreensão do passado, pode nos dar pistas sobre as origens remotas desse livro, cuja resenha apresento, e de suas possibilidades para a produção de conhecimentos históricos educacionais, em algumas de suas relações com a arte e com os arquivos.

Foi em diálogo com a autora, que ao registrar suas memórias sobre a elaboração desse livro no tempo, lembrou-me dessas experiências que estou narrando, que o fio desse pequeno texto foi sendo construído. Há ainda outro movimento que se entretece nessas dinâmicas engendradas nos anos 1980, que é a reivindicação, por professores e pesquisadores de ensino de história, de que se renovasse o seu currículo, afastando de vez a história memorizada que glorifica como heróis personagens e eventos que deveriam ser objeto de reflexão crítica, e que trouxesse, simultaneamente, a possibilidade de estudantes e professores criarem seus próprios percursos de pesquisa e produção de conhecimento histórico, a partir de suas questões e experiências singulares.

Tais propostas de renovação do ensino de história na educação básica, depois diluídas nas propostas curriculares das décadas seguintes, progressivamente mais neoliberais (Galzerani, 2013), afirmavam o diálogo entre história e memória na produção de conhecimentos históricos educacionais. Afirmavam, ainda, a centralidade dos sujeitos de experiência na produção desses conhecimentos: professores e estudantes, refletindo sobre seus tempos, espaços e relações sociais, é que deveriam ser os construtores de seus objetos de pesquisa histórica.

Naquele momento, como mais recentemente nos embates sobre a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) do ensino de história, levantaram-se vozes indignadas contra essa possibilidade (Cabral, 2018; Caimi, 2016; Miranda, 2015). Mídia, editores de materiais didáticos, cursinhos pré-vestibulares e “especialistas” se agruparam para defender a estrutura tradicional, eurocêntrica, historicista do currículo da história escolar, que ainda hoje se mantém, atualizado com novas roupagens, mas sustentado pelas mesmas concepções.

Assim como hoje, na defesa de outras possibilidades para o ensino de história se colocaram professoras e professores de história que reconhecem, no presente, nas salas de aula, as potencialidades dos diálogos entre história e memória, nas leituras plurais do passado e na construção de outros futuros. Em 2019, quando a Mangueira foi campeã entre as escolas de samba do Rio com um enredo que tematiza essas disputas sobre a compreensão do passado, sua música espalhou-se pelas escolas, na voz de estudantes e professores que celebraram o acontecimento e capturaram sua enorme potência para a criação de conhecimentos históricos educacionais. Com muita alegria, com muita fé, com muita esperança de outras possibilidades de futuro, na compreensão plural do passado, liberta das tagarelices do “ponto” na história ensinada. Na voz do professor Fernando Lopes,

Aproximar a turma dos seus antepassados, mostrar que mulheres, negras, negros, pobres etc. fazem história me emocionou muito. Ainda mais percebendo que boa parte da turma se viu com potencial de fazer e atuar na vida, fazendo também sua história e a do mundo que os cerca. E que ela pode mudar, na luta. A emoção da atividade, para mim, foi potencializada por recordar o dia da morte de Marielle e relembrar a reação dos alunos à época e sentir que a turma – a desse ano – começava a compreender uma disciplina que por vezes tem um verniz tão estático se tornando viva, pulsante, próxima, como a bateria a marcar esse samba-enredo tão fundamental para os dias de hoje. (Tesi, 2019)

A Mangueira, como os Caiapós e os Congadeiros, nos fala de um tempo que recusa a linearidade homogênea e vazia do positivismo e do historicismo, e nos convida a contemplar uma temporalidade que “não é linha nem sucessão, nem evolução, nem progresso, nem períodos ou etapas. É coexistência entre passado, presente e futuro” (Pereira, 2019). Como compreende Walter Benjamin, as vozes dessas criações coletivas percebem a história não como um tempo homogêneo e vazio, mas como um tempo saturado de “agoras”, em que somos inspirados a dar “saltos do tigre” para colocar em correspondência o nosso presente e outros presentes, dos quais nos olham os mortos (Benjamin, 1985, p. 229-230). Pois tais experiências estéticas culturais populares são modos de luta espiritual, e se manifestam “sob a forma da confiança, da coragem, da astúcia, da firmeza, e agem de longe, do fundo dos tempos” (ibid., p. 224).

O livro objeto desta resenha nos convida a ouvir as vozes dos sujeitos de outros presentes, registradas em suas criações musicais, e ao fazê-lo, além de enfrentar essa temporalidade esvaziada de sentido que vivemos cotidianamente, cria mais um atravessamento importante: põe em relação experiências de produção e circulação de vivências históricas em um recorte transnacional, que confronta configurações nacionalistas ainda hegemônicas na história ensinada. E mais, ousa tecer essas relações em registros midiáticos da indústria cultural nascente, em seus tensionamentos e contradições.

Se consideramos a pesquisa como diálogo entre sujeitos, e entre sujeito e objeto, a experiência educativa de criação de conhecimentos sobre o passado precisa considerar as práticas e memórias dos sujeitos produtores de conhecimento (Galzerani, 2016, 2008a, 2008b; Thompson, 1981). Quanto ao patrimônio documental, esse diálogo emerge ao nos deslocarmos em relação às expectativas e práticas hegemônicas, instrumentais, que propõem leituras como experiências cognitivas esvaziadas de sentido político e social, bem como dos movimentos que querem levar os estudantes à aprendizagem de uma dada distância racional do seu objeto.

Os registros documentais custodiados pelos arquivos podem convidar a outras experiências com o tempo, em que questões significativas do presente, trazidas pelos sujeitos singulares, emerjam no diálogo com os conjuntos documentais. Quando percebidos fora das chaves de leitura historicistas, os documentos de arquivo possibilitam encontros surpreendentes entre passado e presente, capazes de criar deslocamentos de percepção e entendimento de si e do social, do tempo e de sua experiência (Koyama, 2015; 2016; 2017). Nesse sentido, Da senzala ao palco, de Martha Abreu, é um livro pleno de possibilidades de leitura e significação de registros documentais sobre o passado, em suas relações com o presente, que fazem jus ao apelo de Walter Benjamin:

O dom de despertar no passado as centelhas da esperança é privilégio exclusivo do historiador convencido de que também os mortos não estarão em segurança se o inimigo vencer. E esse inimigo não tem cessado de vencer. (Benjamin, 1985, p. 224-225)

Ainda com Benjamin, penso que o assombro perante os acontecimentos recentes, que atualizam práticas fascistas com técnicas de comunicação digital, exige que reconheçamos que a concepção de história que o fundamenta é insustentável, que o tempo homogêneo e vazio da modernidade tardia, radicalizado, e suas fantasmagorias de progresso técnico e de evolução histórica precisam ser enfrentados no ensino de história. Os diálogos com os saberes históricos encarnados nas criações culturais populares, como as que colocamos em diálogo nesta pequena apresentação, podem nos abrir para outras experiências de percepção do tempo histórico. Como nos diz Martha Abreu sobre sua experiência no contato com essas tradições,

os lugares do passado no presente, das memórias do cativeiro nas lutas do pós-abolição, do papel das canções da escravidão e do patrimônio imaterial – como o jongo – na formação contemporânea da identidade negra e quilombola passaram a invadir todas as minhas reflexões, meus projetos, textos, as orientações, os cursos de graduação, de pós e de formação de professores. (Abreu, 2017)

Experiências que, como diz Pereira (2019) sobre a bela criação da Mangueira, têm “uma qualidade intensiva que nos impele a pensar, a escrever e a criar a vida”, experiências criadas a partir de uma racionalidade ampliada, ou seja, em uma racionalidade estética (Matos, 1990), e que nos inspiram a ousar propor outras práticas de produção de conhecimentos históricos educacionais, que colaborem para o fortalecimento dos sujeitos sociais envolvidos, isto é, professores e estudantes, afirmando práticas autorais e mais autônomas em educação.

Convido-os, pois, a conhecer um pouco mais sobre essa obra, agora em diálogo com a leitura que dela fez o músico e pesquisador em história Lurian José Reis da Silva Lima.

Adriana Carvalho Koyama

UM LIVRO SOBRE AS CANÇÕES ESCRAVAS

Um dos grandes desafios de quem lida com a música em perspectiva histórica é o de equilibrar-se sobre três eixos necessários de reflexão: 1) a composição sonora, a que temos acesso por meio da gravação ou da partitura; 2) as formas e ocasiões em que ela é apresentada, isso é, os anúncios, as capas de partitura e disco, concertos, festas, candomblés, a solidão de uma “moça de família” ao piano; 3) o movediço e conflituoso solo sociocultural do qual tudo isso faz parte. É sempre dessa tripla combinação que podemos intuir as intenções simbólicas e políticas dos(as) autores(as) e os critérios com os quais trabalham, as expectativas e respostas de ouvintes, intérpretes e a importância que a música tem na vida de pessoas, grupos e nos acontecimentos de outro tempo. Essa combinação sempre privilegiará um ou outro desses eixos, a depender do objeto e problema de pesquisa, da abordagem metodológica e do recorte temporal escolhido.

Na área da música, existe um risco grande de se privilegiar demais a composição sonora em detrimento dos outros eixos, o que geralmente implica em acionar um vocabulário e técnicas de análise estranhos a quem fala de outros lugares de conhecimento. O maior problema na história e nas humanidades em geral é, inversamente, descuidar do som completamente, ou esquecer por que “as canções têm música”. Nesses dois extremos se compromete consideravelmente a interdisciplinaridade, que é o coração mesmo do campo. Eu acrescentaria ainda que, do ponto de vista da política do conhecimento, o isolamento do músico-pesquisador, no momento em que ele escolhe apagar o mundo para analisar a composição, pode ter consequências mais graves. Pode, por exemplo, dificultar ainda mais o caminho para a superação dos traços de colonialidade que historicamente povoam a área (Queiroz, 2017).

A meu ver, Da senzala ao palco constitui um ótimo exemplo de como se pode alcançar esse equilíbrio. Nesse sentido, discordo da autora quando afirma que este não é “exatamente um livro sobre as canções escravas” porque não pretende estudar delas o “som”, os ritmos ou outros aspectos técnicos e poéticos (Abreu, 2017, p. 106-113). Aproveitarei o espaço desta resenha para fundamentar esse dissenso.

De fato, Martha Abreu não se pronuncia como musicista, ou melhor, como analista musical. Fala como uma historiadora social da cultura que há décadas se dedica a estudar experiências e memórias do cativeiro e do pós-abolição, como uma mulher que tem pensado e militado constantemente junto a comunidades quilombolas contemporâneas. Ao longo dessa trajetória, sua convivência com a música negra deve ter sido tão intensa quanto grande foi sua surpresa ao perceber que, até o fim do século XX, as leituras históricas da música no Brasil, com raras exceções, não haviam dado visibilidade à agência dos músicos negros.1 Uma passividade tão assustadora quanto o silêncio em torno do racismo no meio musical. Mesmo a discussão sobre temas canônicos como música popular (representante privilegiada da “cultura popular”) e identidade nacional, da qual tomaram parte importantes historiadores e cientistas sociais, concentrava-se sobre o tamanho da responsabilidade de intelectuais modernistas e dos grupos dirigentes pós-1930 no processo de “inclusão” da população negra e de suas formas musicais na simbologia do país.2 E o que fizeram os próprios músicos negros para isso? Com quais violências precisaram lidar? Que importância tem para suas lutas por cidadania o reconhecimento do valor de sua música por um público massivo? Que lugar a criação musical ocupa nessas lutas?

Contribuindo para uma recente guinada historiográfica no sentido de sublinhar o protagonismo negro no traçado de uma nova história da cultura no Brasil, Da senzala ao palco vai em busca de respostas para essas questões. A autora estabelece um amplo diálogo com a literatura que surge nessa curva e lê sob novas perspectivas a contribuição de trabalhos anteriores. A utilização da expressão “canção escrava” para se referir aos gêneros musicais cuja trajetória em direção aos palcos e à indústria cultural ela procura elucidar, sinaliza de saída para uma mudança na maneira como o problema da legitimação da cultura negra foi tradicionalmente colocado. Não se está falando da contribuição de um grupo étnico para a música de um país,3 o que está em jogo nesse processo é a importância da memória do cativeiro e da cultura produzida em meio à escravidão racial para a vida dos africanos escravizados e seus descentes e para a reorganização sociossimbólica do mundo Atlântico no pós-abolição.

O livro constitui também o primeiro grande esforço no sentido de aproximar experiências de artistas negros no eixo, e na direção, Sul-Norte a partir do Brasil, ou, mais precisamente, do Rio de Janeiro. Como lembra a autora, desde a década de 1980 a historiografia da escravidão e da liberdade tem mostrado que não é mais possível pensar a diáspora africana sem transbordar as fronteiras nacionais. Mas é igualmente fundamental a procura de ângulos de observação geograficamente – e portanto cultural, social e politicamente – diversos para flagrar os trânsitos descentralizados que esse conceito prevê, segundo a leitura inovadora de pensadores como Paul Gilroy (2001). É nesse sentido, e em diálogo franco justamente com Gilroy, que a autora procura mostrar que “ao Sul do Equador, o Atlântico também é negro”, explorando, em um recorte temporal que vai de meados do século XIX à década de 1930, paralelos entre as trajetórias das canções escravas no Brasil e nos Estados Unidos. Como acontece com outras obras de fôlego que primeiro exploram um vasto campo de investigação, o livro defende teses de alcance amplo com uma argumentação que evoca problemas mais localizados, que acabam por formar um mapa de pesquisas em potência. Aqui, destacarei algumas coordenadas desse mapa na mesma ordem em que elas se apresentam aos leitores da obra.

Martha Abreu utiliza como fontes sobretudo as capas de partitura das canções escravas, ao que se somam anúncios e comentários sobre elas presentes na imprensa e em outras publicações. Mas o livro, que só está disponível em formato ePub,4 também traz dezenas de fonogramas e alguns vídeos, boa parte deles, registros de época disponibilizados via plataforma digital pelo Instituto Moreira Salles. O recurso audiovisual não é, portanto, meramente ilustrativo. As gravações constituem, somadas às outras fontes, evidências de como cakewalks, ragtimes, maxixes, jongos e outras bossas eram apresentadas, e representadas, por autores, produtores, ouvintes e executantes de outrora. O livro tem, por isso, uma densidade, por assim dizer, “sociomusicológica” na medida em que coloca seus leitores em contato direto com o som e permite que não só os músicos letrados tomem parte nessa discussão. Essa é a primeira razão de meu dissenso inicial.

A partir dessas fontes, e num diálogo de fôlego com a literatura produzida sobre o tema nos Estados Unidos, Martha Abreu mostra, transitando com deliberada liberdade pelo seu recorte temporal,5 que a produção, circulação e crítica das joias musicais trazidas da escravidão constituem um terreno pleno de disputas e negociações sociossimbólicas. Aí, o grande duelo é travado entre a potência de um racismo transnacional grotesco, exposto sobretudo nas capas de partitura e nos anúncios de espetáculos de blackfaces, e os projetos emancipatórios que os músicos negros procuram empreender ao mesmo tempo com e contra essa violência – jogando o jogo dos estereótipos, mas tentando subvertê-los, positivá-los e realizar-se artisticamente. Na primeira parte do livro, a autora sublinha a transnacionalidade dessas disputas, procurando mostrar que desde a virada entre os séculos XIX e XX, as novidades da música escrava dos Estados Unidos já repercutiam com naturalidade no Brasil e vice-versa, como comprovam os exemplos de maxixes e cakewalks. Nas capas de partituras desses gêneros se disseminavam padrões internacionais de animalização dos corpos negros, e seu sucesso provocava discussões semelhantes, no Norte e no Sul, sobre a humanidade de africanos escravizados e seus descendentes e sobre o valor e a nacionalidade de sua cultura.

Mas esse mercado também criava oportunidades de inserção profissional e de pronunciamento político e estético que, como sugere Martha Abreu, têm boa dose de responsabilidade no despontar do movimento new negro não apenas nos Estados Unidos e na Europa, mas em todo o mundo Atlântico. Para reforçar essa tese, que ela compartilha com Kim Butler (2014), a autora comenta exemplos significativos da autoimagem de músicos brasileiros divulgadas na imprensa – entre os quais, os Oito Batutas e Patrício Teixeira –, chama atenção para alguns de seus experimentos sonoros e para experiências de ativismo explícito, como a Companhia Negra de Revista (capítulo 4). No que diz respeito a certos temas canônicos da historiografia da música no Brasil, essa tese pode inaugurar um programa de pesquisa renovador em torno da seguinte questão: como o desenvolvimento do choro, do samba e das escolas de samba se articula com a luta política e estética travada pelos modernismos negros no Atlântico?

A segunda parte do livro se destina a esboçar uma história da canção escrava no Brasil – que, diga-se de passagem, pode servir de ponto de partida para o mencionado programa de pesquisa – sem prejuízo das trocas culturais e experiências paralelas com os Estados Unidos que cortam toda a obra. Sempre sobre o pêndulo da legitimação e do estereótipo racista, a autora descreve o percurso de gêneros ligados à cultura das senzalas na cena musical, teatral, circense do Rio de Janeiro e, a partir da virada para o século XX, na indústria fonográfica. Com surpresa o leitor verá que em meados do século XIX o jongo era a grande atração negra nos palcos da corte, antecedendo os tangos, maxixes, batuques e sambas que viriam na sequência. Martha Abreu também sublinha o protagonismo de artistas negros nesse processo, como Henrique Alves de Mesquita e Eduardo das Neves, sujeitos que foram até aqui sistematicamente invisibilizados, inclusive, e com muita naturalidade, dentro dos cursos de música no Brasil. Os trânsitos atlânticos reaparecem no comentário sobre a presença do músico norte-americano Gottschalk pelo Rio na década de 1860, nos paralelos entre as representações dos negros em histórias de “pai João” e “uncle Tom”, nas trajetórias comparadas de Eduardo das Neves e Bert Williams e, finalmente, nas avaliações dos legados musicais de africanos escravizados por Du Bois e Coelho Neto.

Talvez a tese mais importante defendida nessa segunda parte, que novamente diz respeito a um tópos hiperexplorado pela historiografia da música brasileira, é a de que a legitimação e o desenvolvimento das heranças musicais da escravidão racial devem muito mais à iniciativa de artistas negros e aos fluxos afrodiaspóricos do que se costuma admitir. É, de fato, espantoso que Henrique Alves de Mesquita, Joaquim Antônio da Silva Callado (o “pai do choro”!) e Patápio Silva nunca tenham sido estudados como artistas negros e que, portanto, sua responsabilidade no processo de “construção da música nacional” nessa época nunca tenha originado discussões aprofundadas. Novamente, a tese aponta para vários temas de pesquisa em potencial, como a busca pelos cruzamentos entre as trajetórias e os processos criativos de Gottschalk, Hernrique Alves de Mesquita e Ernesto Nazareth. E, de modo geral, o livro clama para que outros pesquisadores se dediquem a pôr em perspectiva as representações visuais das capas de partitura, as representações sonoras e a autocompreensão dos músicos que integram essa longa história.

Da senzala ao palco faz um duplo chamado, relevante especialmente para o contexto acadêmico brasileiro: que os estudiosos da música pensem nela como um lugar de disputas e de luta contra a violência racial na diáspora africana, e que os estudiosos da diáspora observem com muita atenção a importância da música nas estratégias emancipatórias dos negros no mundo Atlântico.

Concluo retomando minha discordância com Martha Abreu. Faz tempo que os etnomusicólogos afirmam que o som não significa nada fora de um contexto de escuta. Pois bem, muitos ouvintes (inclusive músicos formados, e não poucos!) podem já ter passado indiferentes por composições de Henrique Alves de Mesquita ou Scott Joplin. Duvido que isso aconteça quando essas obras aparecem relacionadas, no texto da autora, às disputas de representação em torno da humanidade, do poder de criação e do protagonismo político de africanos escravizados e seus descendentes, disputas nas quais os dois artistas estavam intimamente envolvidos. Batuques e ragtimes adquirem aí uma profundidade estético-política que não se pode ignorar. Sim, a obra é muito propriamente um livro sobre canções escravas. Ainda que o lugar de fala da autora e seus objetivos de pesquisa a distanciem de análises intensivas da composição sonora, a obra apresenta o som dessas canções e nos fala, direta e reveladoramente, sobre seus significados.

Lurian José Reis da Silva Lima


Notas

1 Nisso, a historiografia da música acompanhava de perto os estudos sobre escravidão no Brasil (Chalhoub, 1990). A primeira exceção é a obra do jornalista e memorialista negro Francisco Guimarães ([Vagalume], 1933), uma narrativa baseada na presença ativa do autor nas primeiras décadas de história do samba. Entre as décadas de 1970 e 1990, devo lembrar também os trabalhos de Mukuna (2000), Nei Lopes (1992) e Sandroni (1997), de caráter mais etnomusicológico (centrados na composição sonora), e Roberto Moura (1983), que trabalha com a memória dos(as) descentes das tias baianas da Saúde. Das ciências sociais se originaram dois trabalhos importantes sobre os músicos negros no meio radiofônico (Pereira, 2001) e no carnaval (Rodrigues, 1984), os quais trabalham contudo com as mesmas premissas da sociologia paulista, como a “anomia social do negro brasileiro”, que Chalhoub critica com tanta veemência em Visões da liberdade.

2 O famoso livro de Hermano Vianna (1995) e sua argumentação em favor de um projeto de conciliação nacional via música que remontaria ao final do século XVIII mostram bem a tônica da discussão até os anos 1990.

3 Essa ainda é a perspectiva, por exemplo, do trabalho clássico de Kazadi Wa Mukuna (2000).

4 Ele é o terceiro volume da Coleção Históri@ Ilustrada da Editora Unicamp.

5 Em alguns momentos a cronologia é seguida mais à risca pela própria natureza do tema abordado, como nos primeiros capítulos da “Parte 2 – Uma história da canção escrava no Brasil”.


Referências

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Resenhistas

Lurian José Reis da Silva Lima – Doutorando em História na Universidade Federal Fluminense (UFF). Mestre em Música, Musicologia/Etnomusicologia, pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). E-mail: [email protected]

Adriana Carvalho Koyama – Historiadora e doutora em Educação pela Unicamp. Professora do Programa de Pós- Graduação em Educação Escolar da Faculdade de Educação da Unicamp. E-mail: [email protected]


Referências desta Resenha

ABREU, Martha. Da senzala ao palco: canção escrava e racismo nas Américas, 1870-1930. Campinas: Editora da Unicamp, 2017. E-Book. Resenha de: LIMA, Lurian José Reis da Silva; KOYAMA, Adriana Carvalho. Um livro sobre canções escravas: diálogos entre arte, memórias, arquivos e educação. Acervo. Rio de Janeiro, v. 32, n. 3, p. 165-175, set./dez. 2019. Acessar publicação original [DR/JF]

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