Degrees of Freedom: Lousiana and Cuba after Slavery | Rebecca J. Scott

Rebecca Scott, mesmo para os leitores brasileiros, dispensa apresentação. Autora de diversos trabalhos sobre a abolição da escravidão em Cuba, entre eles Emancipação Escrava em Cuba – a transição para o trabalho livre (1860-1899), Scott publicou em 2005 Degrees of Freedom: Lousiana and Cuba after Slavery, em que desenvolve argumentos inicialmente apresentados no artigo “Raça, trabalho e ação coletiva em Lousiana e Cuba, 1862-1912” no livro Além da Escravidão: investigações sobre raça, trabalho e cidadania em sociedades pós-emancipação, já publicado no Brasil.

O título do livro, Degrees of Freedom, é um conceito tomado de empréstimo dos físicos e químicos, que enfatiza a necessidade da análise em várias dimensões para se chegar ao estudo de um sistema num dado momento, e é usado como metáfora pela autora que estuda o período pós-emancipação a partir de duas dimensões – a organização do trabalho e a participação política – e discute a inserção do negro na sociedade e as relações raciais em Cuba e na Lousiana após o fim da escravidão.

Na primeira parte do livro, como a autora adverte na introdução, faz-se uma justaposição da história da escravidão e pós-emancipação na Lousiana (a luta dos negros por direitos iguais, contra a segregação racial, pelo pleno exercício da voz política e o direito ao voto garantido inicialmente pelo sufrágio universal, além da busca por melhores salários, as greves e a repressão) com a história do processo de emancipação em Cuba (as lutas anticoloniais, a ocupação dos Estados Unidos, a conquista do sufrágio universal e o massacre de 1912), recorrendo-se a um modo de história comparativa tradicional. Assim, faz-se a opção metodológica pela “comparação próxima”, feita em relação a estruturas mais ou menos semelhantes, próximas no tempo e no espaço, e “diacrônica”, com o objetivo de perceber as mudanças e transformações ao longo do tempo.

O estudo comparativo permite afirmar que, para Cuba e Lousiana, é possível estabelecer paralelos em relação às estratégias mobilizadas pelos ex-escravos no período pós-emancipação: muitos deles combinaram o trabalho por salário com o cultivo para subsistência; lutaram por melhorias salariais; buscaram educação para os filhos e viram no serviço militar um meio de conquistarem direitos e cidadania. Mas, nas duas sociedades, houve diferentes caminhos e graus de liberdade e estes ainda variaram em cada sociedade ao longo do tempo.

Scott trabalhou com uma extensa e variada documentação, que envolveu jornais, documentos dos engenhos, jurídicos e cartoriais, censos populacionais, listas eleitorais e correspondências trocadas entre autoridades estatais. Longe de serem percebidas como janelas abertas para o passado, as fontes são tratadas como indícios fragmentados, incompletos e parciais e examinadas com suspeição, inquiridas sobre o que dizem e sobre o que silenciam também, estando a autora sempre em busca dos múltiplos significados que podem conter.

Num exercício extraordinário de pesquisa empírica em história comparada, a autora cruza e confronta fontes de mesma natureza produzidas nos espaços estudados. Assim, a pesquisa nos censos populacionais ajudou a autora a concluir que enquanto em Cuba há uma diversificação da força de trabalho que envolve brancos, negros, mulatos e asiáticos, na Lousiana, esta é composta, em sua maioria, por negros. Uma questão que não foi posta pela autora é o conteúdo e os vários significados da palavra negro para cada um dos espaços estudados.

O ponto alto do trabalho talvez esteja no abandono, em um dado momento do texto, de uma história comparada “tradicional”, justaposta, para uma história cruzada que identifica idéias, pessoas e projetos de sociedade pós-emancipação circulando no Atlântico e sendo ressignificados. Esse processo de circulação não é só provocado pela intervenção norte-americana em Cuba, mas pelas travessias de Antonio Maceo, herói cubano da Guerra de Independência, que viveu um período em Nova Orleans e esteve presente nos discursos dos ativistas pelos direitos iguais como herói negro. No mesmo sentido é interpretada a presença destes ativistas negros em Cuba como voluntários do Exército dos Estados Unidos na Guerra de Independência; também eles em luta por direitos iguais e cidadania em seu próprio país.

Para as duas sociedades, o significado e os graus de liberdade variaram segundo as estruturas econômicas, políticas, legais e a agência dos próprios ex-escravos e de seus descendentes para transformar essas estruturas em seu benefício. Assim, explicações sobre as limitações de acesso à terra e ao voto em relação aos períodos de crise, expansão econômica e resultantes alterações na organização do trabalho são pontuados por biografias e trajetórias de vida que desafiam as estruturas vigentes. Emergem, desse modo, personagens como Rodolphe Desdunes, Pierre Carmouche, Ciriaco Quesada, Andrea Quesada e Rita (conhecida como Rita Lucumí), que, de alguma forma, em Cuba ou na Lousiana, atuaram no sentido de modificar as estruturas existentes.

O texto move-se em diferentes escalas de observação (macro e micro), em que são apresentadas as escolhas e as ações dos indivíduos dentro de condicionamentos estruturais, que ao mesmo tempo são estreitados ou alargados como resultado de suas ações. Nomes e faces emergem, mas os seus caminhos são interpretados dentro de contextos específicos de produção econômica e organização política.

Dialogando com o debate sobre gênero presente na historiografia, a autora ressalta que as escolhas e ações variaram para homens e mulheres nas sociedades pós-emancipação. Em Cuba, algumas mulheres pegaram em armas, enquanto outras optaram por passar informações e suprimentos para o exército rebelde durante as lutas anticoloniais; mulheres foram também responsáveis pela luta por anistia após o massacre de 1912. Na Lousiana, as mulheres na época da Reconstrução, apesar de estarem excluídas do sufrágio, atuaram na vida política defendendo os Republicanos e tentaram convencer os homens de que se os democratas vencessem, seus filhos não teriam escola; para elas, o voto foi percebido como um recurso coletivo no sentido de defesa dos interesses da comunidade, não como um direito individual.

Uma das conclusões mais importantes da autora é que os dois espaços vivenciaram o preconceito racial como prática cotidiana, mas apenas a Lousiana adotou-o como princípio, inclusive da organização política – os negros, no período pós-Reconstrução, foram alijados da cena pública a partir das restrições (econômicas e educacionais) impostas ao voto. Em Cuba, em razão do discurso de nação projetado pelas guerras de independência e do papel dos negros nestas lutas, houve a inclusão dos negros na cena pública a partir do voto universal, e o racismo privado, cotidiano, conviveu com declarações públicas de igualdade racial. Para os negros cubanos, as garantias formais conquistadas na esteira da guerra pós-independência permitiram um caminho mais largo para a negociação, o direito ao voto, o serviço militar e maior acesso à educação. A diferença seria, para Cuba, segundo a autora, um racismo mais no espaço privado, enquanto na Lousiana o racismo seria formalizado pelo Estado. As diferentes resoluções constitucionais, para a Lousiana, com a restrição do voto no final do século XIX, e para Cuba, com o sufrágio universal, moldaram diferentemente a presença dos negros na vida pública nas sociedades pós-escravidão.

A categoria “raça”, central para a análise da autora, é tomada com o mesmo sentido para a Lousiana e para Cuba no período pós-emancipação. Uma ausência no livro é a discussão sobre as diferentes classificações raciais nessas duas sociedades e como essas concepções raciais podem ter informado os projetos de supremacia branca e contribuído para os desfechos que se colocaram às lutas nas sociedades pós-emancipação. É preciso pensar, em que medida, noções de “raça” que enfatizam a cor da pele ou a presença de sangue ampliam ou limitam o estabelecimento de alianças inter-raciais e permitem a mobilização de diferentes estratégias para os projetos de supremacia branca nas Américas.

Assim, seria interessante investigar como o uso dos múltiplos termos de cor empregados na vida social cubana (branco, trigueño, mestiço, mulato, moreno, negro), em contraste com a idéia de separação de escolas e igrejas, com o fim de preservar a integridade racial (como defendido pelo Governador da Lousiana), foi também parte de estruturas, assim como a economia e a política, sob e sobre as quais os ex-escravos e os últimos senhores atuaram na reorganização das sociedades pós-escravidão.

Excelente livro, ainda a ser publicado no Brasil, Degrees of Freedom alimenta o interesse pelos estudos comparativos e sugere perguntas e caminhos de pesquisa que podem contribuir muito para o estudo da reorganização da sociedade brasileira no período pósemancipação.


Resenhista

Iacy Maia Mata – Professora Assistente do Departamento de Educação, Campus II, da Universidade do Estado da Bahia e doutoranda do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Estadual de Campinas.


Referências desta Resenha

SCOTT, Rebecca J. Degrees of Freedom: Lousiana and Cuba after Slavery. Cambridge, Mass: Harvard University Press, 2005. Resenha de: MATA, Iacy Maia. Revista Eletrônica da ANPHLAC, n. 7, p. 133-136, 2008. Acessar publicação original [DR]

Deixe um Comentário

Você precisa fazer login para publicar um comentário.