Contra o vento: Portugal, o Império e a Maré Anticolonial (1945-1960)

Investigador jubilado do Instituto de Ciências Sociais (ICS) da Universidade de Lisboa (Portugal), Valentim Alexandre é autor de um conjunto de livros e artigos fundamentais sobre o fim do Império luso-brasileiro, a viagem de Portugal para África ao longo de oitocentos e o colonialismo português nos séculos XIX e XX nas suas vertentes política, ideológica e econômica. Depois de se aposentar, dedicou vários anos à pesquisa e elaboração deste livro sobre a evolução do sistema colonial português entre o fim da Segunda Guerra Mundial e 1960 (e de outro, em preparação, centrado no período da Guerra Colonial). A obra é monumental a vários títulos. Não me refiro à dimensão que se traduz em número de páginas, mas à investigação histórica que lhe subjaz e ao contributo decisivo que traz à compreensão da durabilidade do Império, fenômeno que andou a par da durabilidade do Estado Novo português (1933-1974).

É sabido que a escrita da história requer a consulta, mais exaustiva e sistemática possível, de fontes primárias e secundárias. Ciente da quantidade e diversidade de fontes disponíveis para o estudo da questão colonial no pós-Guerra, Alexandre escolheu privilegiar o arquivo Oliveira Salazar, “que reúne uma amplíssima documentação com interesse” para o tema e serve de “filtro, concentrando os materiais que subiam à Presidência do Conselho pela especial relevância que […] lhes era reconhecida” (ALEXANDRE, 2017, p.24). Tendo como principal ponto de observação esse fundo documental, não deixou de recorrer a outras fontes primárias (documentos oficiais impressos, periódicos e publicações da época) e de confrontar a bibliografia que vem sendo publicada em Portugal e noutros países. Cumpre assim enfatizar que um dos grandes méritos deste livro reside precisamente no trabalho com as fontes, um trabalho minucioso, exigente, rigoroso e necessariamente demorado, resultado de uma postura livre e ética, na contramão da exigência académica de pesquisa e publicação rápidas sob o jugo dos fatores de impacto. Leia Mais

As dimensões da resistência em Angoche: da expansão política do sultanato à política colonialista portuguesa no norte de Moçambique (1842- -1910) – MATTOS (AN)

MATTOS, Regiane Augusto de. As dimensões da resistência em Angoche: da expansão política do sultanato à política colonialista portuguesa no norte de Moçambique (1842- -1910). São Paulo: Alameda, 2015. p. 308. Resenha de: PEREIRA, Matheus Serva. Entre experiências, agências e resistências: complexos de interconexões e a coligação contra o colonialismo no norte de Moçambique (1842-1910). Anos 90, Porto Alegre, v. 26 – e2019503 – 2019.

Entre experiencias, agencias y resistencias: complejos de interconexiones y la coalición contra el colonialismo en el norte de Mozambique (1842-1910)  Among experiences, agencies, and resistances: the interconnection complex and the coalition against colonialism in northern Mozambique (1842-1910)

O florescimento e a consolidação de uma dinâmica historiografia africanista produzida no Brasil, nos últimos quinze anos, permitiu a ampliação das temáticas, objetos e espaços pesquisados. Uma das nações africanas que mais viu crescer o interesse de estudantes e investigadores brasilei­ros foi justamente a de Moçambique. Sinais dessa vitalidade podem ser encontrados na recente premiação da tese de Gabriela Aparecida dos Santos, vencedora do Prêmio Capes de Teses 2018, que versa sobre a construção e as redes de poder do Reino de Gaza, existente no século XIX entre as atuais fronteiras da África do Sul, Suazilândia, Zimbabwe e Moçambique. Outros exemplos são os dos sucessivos eventos sobre a África Austral, como o Seminário Internacional Cultura, Política e Trabalho na África Meridional, realizado na Unicamp em 2015, ou a II Semana da África: Encontros com Moçambique, ocorrido em 2016, na PUC-Rio, dedicado inteiramente aos estudos sobre Moçambique e sua História. Nessa ocasião, em específico, pude participar da organização  Entre experiências, agências e resistências: complexos de interconexões e a col igação. . .  2 de 9  do evento ao lado das pesquisadoras Carolina Maíra Moraes e Regiane Augusto de Mattos, esta última autora do livro As dimensões da resistência em Angoche: da expansão política do sultanato à política colonialista portuguesa no norte de Moçambique (1842-1910), publicado pela editora Alameda.

Resultado de sua tese de doutorado, defendida em 2012, na Universidade de São Paulo, sob orientação da professora Leila M. G. Leite Hernandez, o livro é um importante contributo para a História da África. Na obra, as relações políticas africanas no norte de Moçambique, dos diferentes agentes sociais e políticos envolvidos nessas relações e do esforço colonial português no seu desmantelamento, são investigadas a partir da complexidade do conceito de resistência. Nesse sentido, a investigação histórica produzida por Regiane de Mattos emprega esse conceito para refletir sobre as experiências e agências africanas no contexto colonial de promoção e implementação das suas ferramentas de dominação.

A argumentação central presente em As dimensões da resistência em Angoche está no exercício de análise de diferentes grupos sociais africanos como agentes históricos, com objetivos diver­sos, trazendo uma série de questões teóricas e desafios metodológicos que vão sendo encarados na medida em que a autora investiga a existência de universos culturais distintos existentes no norte de Moçambique. Para isso, Regiane Mattos lança mão de uma ampla variedade de fontes, localizadas em coleções documentais no Brasil, em Portugal e em Moçambique. O cruzamento das fontes impressas, como os relatos dos militares e governadores gerais, com àquelas localiza­das, especialmente, no Arquivo Histórico Ultramarino, em Lisboa, e no Arquivo Histórico de Moçambique, em Maputo, demonstram a preocupação da autora em conectar seus alinhamentos teóricos e metodológicos com uma História empiricamente embasada. Existe um trabalho empírico primoroso de recolhimento e de cruzamento de fontes não necessariamente inéditas, mas que são colocadas sob novos caminhos interpretativos. O desafio em trabalhar com uma base documen­tal proveniente de diferentes formatos e objetivos é encarado pela autora com o seu desbravar de textos em variadas línguas, como o português e o árabe-suaíli, salientando, sempre que possível, as múltiplas possibilidades de traduções que os portugueses produziram para os escritos existentes na língua local. Com isso, as vozes africanas que emergem dos papeis do passado são investigadas como contínuos sistemas de conversões de significados, elaborados de próprio punho, traduzidos para o vernáculo português ou existentes nas entrelinhas das palavras escritas pelos portugueses.

A ideia de rede de relações sociais, culturais, econômicas e políticas construída a partir das experiências específicas dos grupos africanos analisados no livro é traduzida pela autora a partir do uso da expressão “complexo de interconexões”. É exatamente a partir dessas interações existentes entre os sultanatos do litoral norte moçambicano, sobretudo o de Angoche, o intenso diálogo desses com sultanatos do Índico, especialmente o de Zanzibar, as chefaturas macua-imbamelas do interior e a presença crescente das forças colonizadoras portuguesas na região, que a autora utiliza para explicar a formação de uma coligação de resistência. Constituída no final do século XIX por um aglomerado plural de chefaturas africanas, que possuíam uma vasta gama de imbricadas relações, organizaram-se com o objetivo concreto de oporem-se à presença colonizadora portuguesa na região.

Ao elencar variados grupos sociais africanos para o centro da interpretação, a autora iden­tifica uma necessária análise das conjunturas sociais, culturais, políticas e econômicas específicas pelas quais foram construídas as alianças entre distintos atores políticos e militares no norte de Moçambique. Essa guinada analítica denota, por um lado, uma constante, por vezes cansativa, mas importante contextualização das formações sócio-políticas africanas. Por outro lado, demonstra   uma capacidade refinada de leitura crítica das entrelinhas de suas variadas fontes, apresentando uma não linearidade da expansão colonial de Portugal sobre o território. O que quero dizer com isso é que Regiane de Mattos consegue, ao longo de sua obra, apresentar a ação colonial como um processo histórico composto por agentes sociais que tiveram que lidar com as debilidades de seus poderes e as rápidas mudanças promovidas pelos conflitos perpetrados pelos portugueses na sua busca por uma efetivação de sua dominação.

Ao promover uma análise das ações desses sujeitos sociais a partir de suas próprias confi­gurações e contextos sociais, culturais e políticos, a noção de resistência que emerge em sua obra se desvincula do exercício de buscar uma linearidade explicativa entre as ações contrárias ao colonialismo. Nesse sentido, o diálogo estabelecido ao longo do livro com a historiografia que se debruçou sobre o sultanato de Angoche está centrada na maneira pela qual essa empregou o conceito de resistência. Chamando a atenção para o pequeno número de pesquisas existentes sobre o norte de Moçambique para o período estudado, Regiane de Mattos apresenta ao leitor um panorama sobre a bibliografia produzida a partir da década de 1970 sobre as respostas africanas nessa região à expansão colonial portuguesa. Diferentemente do posicionamento de Malyn Newit, Nacy Hafkin, René Pélissier, Aurélio Rocha e Liazzat Bonate, autores elencados por Mattos como aqueles que dedicaram especial atenção à temática de sua pesquisa, As dimensões da resistência em Angoche pretende contrapor-se à noção de que a resistência à dominação colonial perpetrada pelas chefaturas islamizadas do norte de Moçambique tiveram como principal e, por vezes, exclusivo objetivo a manutenção de privilégios obtidos com o comércio de escravizados.

Segundo Mattos, essa bibliografia trouxe importantes contributos. Porém, ao problematizar a coligação estabelecida pelos agentes africanos contra os intuitos externos europeus de controle a partir da primazia econômica do desejo de continuidade da produção baseada na escravatura, teriam estabelecido análises anacrônicas ou moralizantes. Pélissier, por exemplo, os interesses econômicos da continuação do comércio de escravos foram o principal fator unificador na região, pois seria inexistente qualquer “consciência étnica”, sobretudo entre os macuas. Numa linha semelhante, Aurélio Rocha diminui a importância da presença do Islã como forma de estabelecimento de laços que fossem para além das elites e, consequentemente, capazes de produzir redes amplas de interesses. Ao mesmo tempo, pressupõe uma correlação causal de efeito entre as razões das revol­tas do sultanato de Angoche contra os portugueses e as ações europeias contrárias ao tráfico de escravos e, com isso, a impossibilidade do uso do termo resistência. Afinal, no sentido empregado por Rocha e Nacy Hafkin, como o mesmo conceito usado para explicar as lutas nacionalistas de oposição ao sistema colonial e que denotava um sentido de libertação poderia ser empregado para compreender ações africanas “até mesmo no sentido contrário ao do nacionalismo”1?

Questionando a existência de conexões lineares entre as ações africanas, de meados do século XIX e início do século XX, contrárias ao colonialismo e as lutas nacionalistas dos anos 1960, consequentemente posicionando-se nos debates sobre o emprego da noção de resistências na histo­riografia africanista, a autora lança novas luzes aos estudos sobre o norte de Moçambique durante o contexto de rápido desmantelamento das sociedades existentes naquela região. A multiplicidade de fontes empregadas, não necessariamente inéditas, é encarada de maneira singular a partir de procedimentos teóricos e metodológicos que lançam novas luzes sobre a formação da coligação de resistência como resultado da própria constituição e fortalecimento do sultanato de Angoche ao longo do século XIX. Regiane de Mattos presenteia-nos com uma consistente defesa da vitalidade 4 de 9  do conceito de resistência para interpretar as ações africanas, sem reduzi-las às dicotomias entre aqueles que colaboraram ou combateram a presença colonial.

Mattos estabelece um diálogo privilegiado com obras clássicas da historiografia africanista especializadas na temática da resistência, como as de Terence Ranger, Allen Isaacman e Barbara Isaacman, e com outras mais recentes que a problematizam, como os questionamentos de Frederick Cooper sobre a vitalidade do conceito ou o repensar da noção de insurgência apresentado na cole­tânea organizada por Jon Abbink, Mirjam Bruijn e Klass van Walraven. Seu intuito, com isso, é o de lançar seu olhar sobre as fontes e a bibliografia especializada para realizar “uma abordagem mais matizada da resistência” (MATTOS, 2015, p. 26). Aproximando-se de uma perspectiva recorrente do uso do conceito pela historiografia brasileira que dedicou especial atenção à história da escravi­dão, do negro e do pós-abolição nas Américas e no Atlântico, resistência é compreendida no livro como “o conjunto de ações, sem elas individuais ou organizadas em nome de diferentes grupos, elitistas ou não, não necessariamente incluindo violência física, como respostas às interferências políticas, econômicas e/ou culturais impostas por agentes externos e consideradas, de alguma maneira, ilegítimas pelos indivíduos que a elas foram submetidos” (MATTOS, 2015, p. 26).

Infelizmente, a autora não aponta para a íntima vinculação existente entre a historiografia sobre o passado africano produzida no Brasil e a noção que emprega ao longo do seu livro sobre a resistência, relação vital para a sua capacidade analítica singular das dinâmicas redes entre os grupos sociais africanos do norte de Moçambique. Dada a centralidade do conceito para a obra e a trajetória da autora, teria sido importante que a Regiane de Mattos indicasse como o crescimento significativo da historiografia africanista produzida no Brasil no século XXI e o seu uso relativa­mente distinto do conceito de resistência em comparação às perspectivas africanistas desenvolvidas em cenários acadêmicos africanos ou europeus deve-se, dentre muitos fatores externos ao meio acadêmico, à proliferação das investigações de trabalhos pioneiros sobre essas temáticas no meio historiográfico brasileiro dos anos 1980 e 1990. As transformações pelas quais os trabalhos de historiadoras e historiadores passaram nesse contexto promoveram uma interpretação de classes, grupos ou indivíduos a partir de perspectivas da História Social que privilegiavam suas perspec­tivas, experiências e ações, em detrimento de análises estruturantes.  Muitos desses trabalhos foram inspirados pelas variadas perspectivas da micro-história ita­liana,2 pelas obras de E. P. Thompson,3 e por uma bibliografia norte-americana sobre as experiên­cias afro-americanas.4 O balanço historiográfico lançado em 1977 por Allen Isaacman e Barbara Isaacman, Resistance and collaboration in southern and central Africa, c. 1850-1920, citado por Mattos como crítico ao emprego do termo resistência, estabelece paralelos que poderiam ser interessantes de serem explorados entre a virada historiográfica brasileira citada anteriormente. Ao analisar as complexas abordagens existentes no campo da História da África a respeito do tema da resistência africana ao colonialismo europeu, Allen e Barbara Issacman apontam para uma percepção sobre o conceito de resistência para analisar as ações diárias de insatisfação dos africanos durante a vigência da dominação colonial europeia, como cabível de ser influenciada justamente por pesquisas reali­zadas nos anos 1970 sobre as ações escravas nos EUA. Citando Eugene Genovese e o livro A terra prometida: o mundo que os escravos criaram, livro lançado em 1974 e de grande alcance no Brasil, comparam as ações dos africanos colonizados com as dos escravizados na América:

Like the slaves in the American South, many oppressed workers covertly retaliated against the colonial economic system. Because both groups lacked any significant power, direct 5 de 9  confrontation was not often a viable strategy. Instead, the African peasants and workers expressed their hostility through tax evasion, work slowdowns, and destruction of European property. The dominant European population, as in the United States, perceived these forms of day-to-day resistance as prima facie evidence of the docility and ignorance of their subor­dinates rather than as expressions of discontent.5

No entanto, o que parece ser relevante para a crítica bibliográfica do conceito de resistência para a análise das ações africanas no passado colonial está relacionado aos processos de construção dos Estados independentes no período pós-colonial. As fundamentais críticas ao eurocentrismo elaborada nos contextos das descolonizações verteram para análises que reduziam as possibilida­des dos africanos de participarem ativamente da confecção de suas histórias a partir de zonas de identificações contextuais que fossem variantes ao longo do tempo e do espaço. Ao mesmo tempo, muitos dos grupos que assumiram para si os desafios de promoção dos Estados africanos após suas independências justificaram posturas autoritárias a partir de narrativas que usavam um suposto passado de resistência ao colonialismo como forma de corroboração das privações de liberdade contemporâneas e formas de repressões a grupos sociais questionadores dos rumos que estavam sendo tomados no período pós-colonial.6

Nesse sentido, diferentemente da historiografia brasileira, a historiografia africanista, sobre­tudo anglófona, dos anos 1990, foi marcada por uma crítica à validade do termo resistência como conceito e como categoria empírica de análise. Seu emprego em interpretações que reduziam o colonialismo a um sistema de dominação promovedor de uma sociedade binária dividida exclu­sivamente entre colonizados e colonizadores ou como limitador das motivações e possibilidades das ações africanas para com as relações de poder instituídas, renegaram-no a uma visão de sua suposta incapacidade explicativa.

Não cabe aqui produzir uma interpretação sobre o itinerário ou a genealogia do emprego do conceito de resistência. Quero apenas destacar que as leituras distintas e, porém, tangenciais, sobre o uso e a validade do conceito são, em determinados círculos acadêmicos, entendidas como um impeditivo de sua aplicabilidade. O consenso atual parece estar na necessidade de evitar análises que retratem de forma monolítica aqueles que dominaram e, principalmente, aqueles que foram dominados. Isso não quer dizer que inexiste um valor da resistência como conceito ou como fenô­meno histórico. Como conceito e como prática, analisar a ação dos “de baixo” a partir da ideia de resistência continua sendo fundamental para promover interessantes e inovadoras análises das experiências de sujeitos, aos quais lhes eram negados terem vozes durante suas vidas, ao mesmo tempo em que movimenta pautas contemporâneas de movimentos em prol de igualdades e da dignidade humana. Seguindo essa perspectiva, Regiane de Mattos privilegia a ação africana a partir de suas interfaces relacionais baseadas em laços de lealdade, parentesco, doações de terras, pelo comércio e pela religião islâmica como pontos focais de sua análise. É na totalidade dessas teias de relações que a autora constitui sua noção de complexo de interconexões. Consequentemente, aproxima-se de uma perspectiva de uma história total sobre as interações entre sociedades africanas e produções de regimes coloniais que orientam sua visão na leitura das fontes selecionadas. Como a autora recorrentemente chama atenção na sua obra, a procura por

[…] elementos de caráter nacionalista na coligação de resistência no norte de Moçambique pode ter provocado uma simplificação da análise dos fatores desencadeadores da resistência 6 de 9  e das formas de mobilização das diferentes sociedades envolvidas, ressaltando-se apenas o caráter econômico dos objetivos dessa coligação. Também pode ter influenciado um tipo de análise mais restrita, que não considera a dinâmica da resistência em seus diversos aspectos e dimensões (MATTOS, 2015, p. 30).

Ao reorientar o olhar analítico sobre a coligação da resistência, Regiane de Mattos distancia- -se das interpretações historiográficas predominantes que a compreendem por meio da primazia econômica como justificativa da configuração dessa associação para promover a oposição política e militar ao colonialismo português. A autora não deixa de lado a importância, ao longo do século XIX, do comércio de escravos para a formação e expansão do poder de Angoche. Porém, graças a sua abordagem teórico-metodológica, identifica nesse aspecto mercantil uma das muitas justifi­cativas para a união das elites locais contra o avançar colonial português e não àquela primordial. Sua leitura detalhada dos documentos, combinada com os campos bibliográficos que cita, também faz com que não seja promovida uma interpretação que entenda a resistência constituída no norte de Moçambique a presença colonial como cabível de uma avaliação moralizante que precisa ser feita sobre uma possível natureza menos nobre existente na coligação. Evitando embaraços con­temporâneos de um passado indigno de ser definido como resistente ao colonialismo, a escravidão e o comércio de escravos são entendidos como elementos constitutivos daquela sociedade que se encontravam em rápida transformação.  Como resposta à prerrogativa econômica de manutenção da escravidão e do comércio de escravos que direcionou as interpretações existentes, o que temos em As dimensões da resistência em Angoche é o estudo primoroso da complexidade das relações sociais e políticas que vão para além do desejo de manutenção, pelos membros das elites africanas, dessa forma de exploração humana. Regiane de Mattos consegue, sobretudo nos três primeiros capítulos de sua obra, quando mergulha sua análise nas relações familiares, de poder e religiosas, apontar para a diversidade de fatores que sustentaram o apoio entre as sociedades macuas do interior e suaílis do litoral.

A necessidade de compreender as dinâmicas específicas dos contextos históricos advogada por Regiane de Mattos pode ser percebida, por exemplo, no seu exame do papel da etnia e de sua incapacidade explicativa das experiências e ações dos africanos do norte de Moçambique. A cate­gorização dessas populações em grupos étnicos estanques, promovida pelo colonialismo, é pouco eficaz para compreendermos as dinâmicas interconexões que terminaram por promover respostas individuais ao colonialismo ou à organização supra étnica da coligação de resistência. A autora identifica os etnômios descritos nas fontes portuguesas como produtos da modernidade. Ou seja, como fenômenos constitutivos e constituintes do final do século XIX e início do XX precisam ser analisados a partir de uma perspectiva histórica não essencializada. Nesse sentido, a construção das características dos macuas e das sociedades suaílis tem sido percebida como a construção de realidades móveis contextuais. Por um lado, o exercício interpretativo existente em As dimensões da resistência em Angoche desconstrói historicamente o objeto étnico promovido pelo poder colonial que, desconhecendo e negando a história, apressado em classificar, nomear e hierarquizar para estabelecer a distinção e a justificativa da dominação, construiu, promoveu e engessou etiquetas étnicas. Por outro lado, de maneira semelhante ao esforço em afastar-se das noções de resistência existentes no período das independências nacionais, a obra de Mattos termina por contrapor-se à apropriação dos clichês da etnologia colonial que foram acomodados pelos Estados independentes africanos, muitas vezes como forma de justificar novas práticas de dominação. Ao historicizar as 7 de 9  etnias do norte de Moçambique, especialmente a macua, Mattos não nega a validade da categoria etnia ou dos etnômios para analisar a maneira pela qual os sujeitos sociais africanos organizavam suas vidas antes e durante a colonização. O que a autora faz é uma abordagem que privilegia uma interpretação das etnias como capaz de auxiliarmos na reflexão sobre as sociedades africanas como inter-relacionais, compostas por sobreposições e entrecruzamentos.

Ao destrinchar a impossibilidade de compreensão plena da resistência em Angoche e no norte de Moçambique como parte de planos para a perpetuação do comércio de escravos e de solidariedades étnicas, outros aspectos tornam-se relevantes para constituírem o que Regiane de Mattos chama de “dimensões da resistência”. A ideia de dimensões presente no livro aparece no sentido de variados fatores que convergiam para uma posição contrária à presença portuguesa, como as relações familiares, sobretudo as baseadas na matrilinearidade, as doações de terras que consolidavam alianças estratégicas e o Islã como aglutinador de práticas e perspectivas. A ação de resistir, portanto, deve ser entendida como uma defesa de uma autonomia política, principalmente no que tange às linhas sucessórias de poder, e, comercial, por meio do controle das trocas econô­micas contra a crescente interferência colonial portuguesa.

Unir-se contra a ameaça da perda de autonomia política e econômica estaria baseado numa leitura africana das conjunturas futuras que se desenhavam naquele presente conflituoso. Ou seja, as ações dos sujeitos e grupos sociais são compreendidas em As dimensões da resistência em Angoche dentro da complexidade do jogo de forças quando da construção do colonialismo português na região. É exatamente ao explorar o processo de edificação das relações de parentesco, da expansão do Islã na região pelas elites e pelas bases daquelas sociedades, das trocas comerciais, ou seja, de toda uma vasta gama de fios que se entrecruzavam para compor uma dinâmica social, operacionalizadas de acordo com as demandas das circunstâncias, que Regiane de Mattos consegue caminhar na contramão da historiografia sobre o norte de Moçambique para esse período histórico. O que a autora consegue evidenciar em sua obra é que a coligação de resistência foi feita com base em um passado de trocas que solidificaram relações que foram acionadas na medida em que o colonia­lismo se projetou como um sistema de dominação. Sua análise da coligação da resistência como uma luta pela preservação daquilo que se encontrava ameaçado pelos “mecanismos de exploração impostos pelo governo português, como o controle do comércio e da produção de gêneros agrícolas e de exportação, a cobrança de impostos e o trabalho compulsório” (MATTOS, 2015, p. 269), características primordiais da dominação colonial portuguesa, é solidamente percebida como base para as redes de lealdade construídas ao longo do século XIX, que culminaram na possibilidade de uma mobilização e formação coletiva contra os avanços dominadores portugueses.  No entanto, uma característica escorregadia existente no conceito de resistência, em deter­minados momentos, escapa da análise existente em As dimensões da resistência em Angoche. As imbricadas relações políticas que ocasionavam conflitos entre as chefaturas africanas, nesse caso, em específico contra a expansão do poderio do sultanato de Angoche, apontam para as diversas direções que o conceito pode trazer consigo. Como a própria autora assinala, a contenda entre a pia-mwene Mazia e o xeque da Quitangonha é emblemática dos conflitos na região. A primeira foi acusada de mandar matar o segundo, em 1875, pois este estaria lhe devendo o pagamento da venda de escravos e impedindo a realização desse comércio. Para a autora, a atitude da pia-mwene deve ser lida pelo prisma da resistência à interferência portuguesa sobre os processos sucessórios de poder e como símbolo da luta pela manutenção da autonomia política. Essa é uma interpretação 8 de 9  sustentada com maestria ao longo do livro, já que o mando do assassinato também teria ocorrido, como é argumentado de maneira sólida, porque o xeque estava buscando ampliar seu poder por meio do apoio dos portugueses. Esse apoio não é compreendido como uma força totalizante capaz de controlar na sua plenitude todas as possibilidades de ações africanas existentes naquele cenário político ou como um plano predeterminado pelo poder metropolitano português que foi sendo implementado, na medida em que a dominação europeia na região superou as resistências locais. Como é apresentado ao longo do livro, os portugueses no norte de Moçambique, pelo menos até a última quinzena do século XIX, possuíam diminuta capacidade de implantar qualquer projeto efetivo de dominação, recorrendo a arriscadas parcerias que desestabilizavam as linhas sucessórias predominantes. Isso não quer dizer que os portugueses atuassem apenas como mais uma força dentro daquele contexto político. A ação portuguesa, em prol do que veio a se constituir numa dominação colonial a partir do século XX, é compreendida e explicitada como um processo que, como tal, precisou lidar com encontros e desencontros decorrentes de uma aplicabilidade prática. No entanto, o que cabe questionar é o porquê de o conceito de resistência ser apenas empregado na relação ou entre as chefias ou populações africanas e o poder colonial português. Afinal, se a agência africana é elevada para o centro da análise, não poderíamos supor que o xeque, que viria a ser assassinado, estava usando o apoio português para resistir ao poder reinante materializado na figura da pia-mwene, que havia sido consolidado pelas relações matrilineares de parentesco entre macuas do interior e suaílis do litoral?

As dimensões da resistência em Angoche é uma obra que solidifica o trabalho de uma pes­quisadora rigorosa, com hipóteses inovadoras e que acrescenta importantes contributos para o debate sobre o conceito de resistência no contexto de dominação colonial europeia na África. Uma característica importante que deve ser salientada e que demonstra a vitalidade da obra de Regiane de Mattos se encontra nas portas que a mesma abre para pesquisas futuras. Ao criticar a bibliografia que entende a resistência do sultanato ao colonialismo como uma “resistência opres­sora” que deve ser renegada por não visar uma ideia específica de liberdade, como a existente na resistência nacionalista da segunda metade do século XX, a autora permite extrapolarmos suas interpretações para buscarmos a compreensão de como outros grupos sociais daquelas sociedades africanas, especialmente grupos excluídos ou marginalizados que não chegaram a ser analisados, como, por exemplo, os escravizados, interpretaram, experimentaram, agiram e engajaram-se no contexto de transformação das estruturas sociais do mundo que viviam, levadas a cabo pelas (in)gerências promovidas pela implementação do colonialismo português na região.

O livro é também o pontapé dado por Regiane de Mattos para o enfrentamento de hipóte­ses históricas que poderão ser estudadas em um futuro que espero não esteja muito distante. A própria autora possui um papel pioneiro e central para que esse desejo se concretize o mais rápido possível, já que, conjuntamente com o seu livro, fomos premiados com a disponibilização online do fantástico Acervo Digital Suaíli,7 um trabalho coletivo de parceria entre Brasil e Moçambique que disponibiliza fontes e bibliografias sobre a costa oriental africana. Projetos como esse tornam possível a continuidade de uma rica produção historiográfica brasileira sobre o passado africano que tomou forma nos últimos quinze anos.9 de 9

Notas  

1 ROCHA, Aurélio. O caso dos suaílis, 1850-1913. In: REUNIÃO INTERNACIONAL DE HISTÓRIA DE ÁFRICA: RELAÇÃO EUROPA-ÁFRICA NO 3º QUARTEL DO SÉCULO XIX, 1., 1989, Lisboa. Anais… Lisboa: Centro de Estudos de História e Cartografia Antiga, Instituto de Investigação Científica e Tropical, 1989. p. 606 apud MATTOS, Regiane Augusto de. As dimensões da resistência em Angoche: da expansão política do sultanato à política colonialista portuguesa no norte de Moçambique (1842-1910). São Paulo: Alameda, 2015. p. 23.

2 Um balanço sobre a micro-história italiana pode ser encontrado em LIMA, Henrique Espada. A micro-história italiana: escalas, indícios e singularidades. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006.

3 É fundamental perceber a influência que E. P. Thompson promoveu em variados campos historiográficos ao criticar as interpretações das sociedades em categorias derivadas de modelos estanques que não levavam em consideração contextos específicos a partir das maneiras pelas quais os próprios sujeitos históricos interpretaram e agiram de acordo com suas experiências. Ver: THOMPSON, E. P. Folclore, antropologia e história social. In: THOMPSON, E. P. A peculiaridade dos ingleses e outros artigos. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2001. Ou, THOMPSON, E. P. A miséria da teoria ou um planetário de erros: uma crítica ao pensamento de Althusser. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1981. p. 17.

4 Dentre muitas obras influenciadoras dessas perspectivas para o meio historiográfico brasileiro, ver: GENOVESE, Eugene. A terra prometida: o mundo que os escravos criaram. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988; FONER, Eric. O significado da liverdade. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 8, n. 16, p. 9-36, 1988; LINEBAUGH, Peter. Todas as montanhas Atlânticas estremeceram. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 3, n. 6, p. 7-46, 1983; LINEBAUGH, Peter; REDIKER, Marcus. A hidra de muitas cabeças: marinheiros, escravos, plebeus e a história oculta do Atlântico Revolucionário. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

5 ISAACMAN, Allen; ISAACMAN, Barbara. Resistance and collaboration in southern and central Africa, c. 1850-1920. The International Journal of African Studies, v. 10, n. 1, p. 48, 1977.

6 Para uma reflexão sistemática sobre a história da produção historiográfica sobre a África e uma análise crítica da relação entre os movimentos nacionalistas, a construção dos Estados independentes e a produção do passado africano, ver: MILLER, Joseph C. History and Africa/Africa and History. The American Historical Review, v. 104, n. 1, p. 1-32, fev. 1999; RANGER, Terence. Nationalist Historiography, Patriotic History and the History of the Nation: the struggle over the past in Zimbabwe. Journal of Southern African Studies, v. 30, n. 2, p. 215-234, jun. 2004.

7 O projeto pode ser acessado pelo seguinte link: http://acervodigitalsuaili.com.br.

Matheus Serva Pereira – Doutor em História e Pós-Doutorando na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). E-mail: [email protected].

Uma feminista na contramão do colonialismo – GOMES (RH-USP)

GOMES, Raquel. Uma feminista na contramão do colonialismo: Olive Shreiner, literatura e a construção da nação sul-africana, 1880-1902. São Paulo: Annablume, 2013. Resenha de: DULLEY, Iracema. Imbricações entre o ordinário e o excêntrico: literatura, feminismo e política na África do Sul nascente. Revista de História (São Paulo) n.172 São Paulo Jan./June 2015.

Como destaca Robert Slenes em sua apresentação, o trabalho de Raquel Gomes, Uma feminista na contramão do colonialismo: Olive Schreiner, literatura e a construção da nação sul-africana, 1880-1902, insere-se no “novo surto brasileiro de monografias” voltadas para contextos africanos. O livro deriva da dissertação de mestrado da autora, realizada na área de História Social na Unicamp. A obra dialoga com a tradição de estudos desse departamento ao articular a trajetória e os escritos políticos e literários de um sujeito específico, Olive Schreiner, ao contexto histórico e social mais amplo em que estavam inseridos: a formação da nação sul-africana. A autora anuncia a intenção de dar conta de questões como as seguintes: “Nesta nação em formação, quais papéis seriam desempenhados por britânicos, bôeres e nativos? Como o discurso [de Schreiner] refletia e dialogava com o avanço da legislação segregacionista?” (p. 15). Estas são, sem dúvida, questões que apontam, como nota Omar Ribeiro Thomaz na orelha do livro, não só para a gênese da nação sul-africana, como para problemas contemporâneos candentes neste país.

Como no estudo de Ginzburg sobre Menocchio em O queijo e os vermes(2006), trata-se de atentar para a biografia e os escritos de um sujeito que não é exatamente ordinário, mas que, em virtude de sua excentricidade, revela não só o que seria comum em seu contexto como um possível caminho de diálogo e disputa com ele. Olive Schreiner certamente não seria considerada uma mulher sul-africana exemplar em sua época. No entanto, sua distância em relação ao que seria ordinário ajuda a iluminá-lo. A partir da circulação de Schreiner pela Inglaterra e África do Sul, é possível vislumbrar não só questões sociais e políticas mais amplas – como a criação da União Sul-Africana, o lugar da mulher na sociedade e a questão do nativo, contexto muito bem reconstruído por Gomes –, como acompanhar a minúcia das relações cotidianas com base em suas obras e cartas.

Anglófona no contexto de formação da nação sul-africana, Schreiner opõe-se à política imperialista britânica para fazer uma defesa do modo de vida bôer e da integração anglo-bôer. Feminista em um ambiente bastante conservador quanto aos costumes, chocou inclusive a sociedade inglesa com sua denúncia da condição “parasitária” da mulher no casamento. Para Schreiner, homens e mulheres deveriam ser parceiros no casamento, em igualdade de condições e com divisão do trabalho; ademais, a mulher não deveria depender financeiramente do homem, mas casar por amor. Pertencente a uma camada privilegiada da sociedade sul-africana por ser branca e anglófona – a despeito das dificuldades financeiras que a teriam levado a trabalhar como governanta para famílias bôeres na juventude –, acabará por questionar as políticas adotadas em relação à “questão do nativo” após sua desilusão com a política de Cecil Rhodes: cerceamento do acesso das populações africanas a terra, restrição de seu já pouco expressivo direito ao voto, educação racialmente segregada com destino das melhores escolas aos brancos. Schreiner, simultaneamente colonizadora e colonizada, aparece na narrativa de Gomes como o lugar da disjunção possível. Seu viés particular coloca a possibilidade do deslocamento. A caracterização de seu lugar social por Gomes mostra como, se o centro do império é o lugar a partir do qual se pode olhar para todas as suas bordas, as discordâncias introduzidas a partir das margens podem ser tão revolucionárias quanto passíveis de receber o rótulo de selvagens.

É principalmente por meio de sua produção literária que Schreiner se posiciona em relação ao cenário político e social da África do Sul de seu tempo. The story of an African farm, de 1883, retrata a vida em uma fazenda bôer e teve grande repercussão quando de sua publicação, acabando por tornar-se parte do cânone da literatura vitoriana de língua inglesa. Segundo Gomes, Schreiner deu a um lugar que fazia parte do imaginário britânico as cores necessárias para que pessoas que o viam como distante imaginassem seu cotidiano. Em meio às paisagens sul-africanas, a oposição entre as aspirações de vida dos personagens delineia a crítica social de Schreiner, direcionada principalmente às relações de gênero: Lyndall, anglófona, morre tragicamente após dar à luz o filho do amante com o qual se recusa a casar-se; por outro lado, Tant’Sannie, fazendeira bôer retratada como religiosa, conservadora e ignorante, casa-se com sucessivos maridos por interesse financeiro. A atitude predatória inglesa na África do Sul é também evocada por meio da figura de Bonaparte Blenkins. Com sua publicação, a autora foi recebida nos círculos intelectuais da Inglaterra, embora não sem atritos. Conforme se depreende da narrativa de Gomes, as resistências se deveram a suas ideias feministas e à origem africana.

Gomes é especialmente bem-sucedida ao mostrar como os personagens de African farm remetem aos estereótipos que se projetavam sobre as diversas posições sociais nos contextos em que Schreiner se inseriu. Tant’Sannie aponta para a visão dos bôeres como ignorantes, arcaicos e ociosos por parte dos ingleses; a isso se soma a figura do inglês ganancioso, visto pelos bôeres como não comprometido com o território que pretendia unicamente explorar. Se no romance os kaffirs bantos são retratados como ladrões preguiçosos, seriam em obras posteriores caracterizados como “conscientes de si e reflexivos”, capazes de organização política e reflexão intelectual – Schreiner chega a comparar sua capacidade de expressão àquela permitida pelo Taal, língua vista como indissociável do ser bôer –, os hotentotes seriam “versáteis, vivos e emotivos”, além de dóceis. A discussão de Gomes sobre os personagens e seus nomes reflete tanto sobre seu papel na narrativa quanto sobre o que ela revela a respeito da estrutura social em questão e do posicionamento político de Schreiner. No que diz respeito aos estereótipos, tampouco escapa a sua percepção a forma como as mulheres da elite intelectual inglesa viam Schreiner: uma sul-africana boêmia que falava com as mãos.

Em um momento em que se coloca o “debate acerca de quem é – e quem tem o direito de ser – sul-africano” (p. 51), as apreciações dos vários lugares sociais acerca de si e dos outros exercem papel fundamental. A relação entre as diversas categorias de designação, relacionadas por sua vez de forma complexa às posições sociais passíveis de serem ocupadas pelos sujeitos assim nomeados, determinará o que significa ser sul-africano. E o posicionamento político de Schreiner a esse respeito – que vai da ênfase na união entre ingleses e sul-africanos com o silenciamento sobre a questão nativa a uma mudança de atitude conforme o final do século XIX assiste à articulação da legislação segregacionista – traz para o leitor os debates políticos da época a partir de sua inserção neles. O trabalho de Gomes extrapola, portanto, uma perspectiva estritamente biográfica ou de análise literária para compreender a obra de Schreiner em relação ao contexto de formação da nação sul-africana.

Nesse sentido, ganha importância o mapeamento de Gomes dos diálogos intelectuais e políticos de Schreiner, que vão do amigo e sexólogo inglês Havelock Ellis ao admirado e depois inimigo Cecil Rhodes e membros da South African Improvement Society, em sua maioria, africanos negros. No que diz respeito a esses diálogos, um olhar etnográfico sente falta de uma discussão sobre a relação de Schreiner com seu marido, Samuel Cronwright-Schreiner, com quem escreveu o panfleto político The political situation. Se a intimidade do casal é provavelmente pouco relevante para a constituição da nação sul-africana, o casal, por meio de sua atuação conjunta, passou a ocupar um lugar na cena política sul-africana no qual os dois indivíduos não estavam completamente dissociados. Talvez levar essa relação em conta permitisse acompanhar os desenvolvimentos da militância feminista de Schreiner em relação a um aspecto cotidiano de sua vida: sua própria relação conjugal.

Outros escritos se seguirão ao romance de estreia de Schreiner, segundo Gomes nem sempre facilmente classificáveis do ponto de vista da forma: se The political situation e Thoughts on South Africa poderiam ser ditos de cunho político, Trooper Peter Halket of Mashonaland é um romance-alegoria que trata da trajetória de um inglês pobre que foi para a África do Sul lutar na guerra de pacificação contra os Mashona. A narrativa mostra como Peter Halket, que chegou ao território africano em busca de ascensão social à custa de pouco trabalho, humaniza-se a ponto de recusar-se a matar um nativo. Embora os escritos de Schreiner difiram em sua forma, Gomes argumenta de forma bastante convincente que não se pode pretender classificá-los segundo uma divisão estanque entre “trabalhos de imaginação” e “textos polêmicos”, pois há algo de político nos textos mais explicitamente literários, como African farm ; ademais, os escritos predominantemente políticos seguem muitas vezes um estilo literário, com grande destaque para a paisagem sul-africana, personagem expressivo de muitas de suas narrativas. Trooper Peter Halket seria por excelência inclassificável nesse sentido.

Na narrativa de Gomes sobre Schreiner, os detalhes do cotidiano se articulam às grandes questões políticas do seu tempo: a Guerra Anglo-Bôer, o papel de Rhodes no Cabo e na Rodésia, as guerras de pacificação contra os nativos, sua exploração como mão de obra barata e seu alijamento da cena política sul-africana. No que diz respeito à questão dos “nativos”, vistos por Schreiner como “um pequeno humano em formação”, penso que parte da riqueza da leitura de Gomes deve-se a sua capacidade de mostrar de forma muito clara qual era o sistema de classificação vigente e as concepções que se atrelavam a cada categoria social. Os africanos eram divididos basicamente em quatro categorias: bosquímanes, hotentotes, kaffirs (bantos) e coloured(termo que pode ser imperfeitamente traduzido como “mestiço”). A cada uma dessas categorias estavam relacionadas características e personalidades distintas, como apontamos acima, e a classificação se baseava principalmente no critério econômico (bosquímanes eram caçadores-coletores; hotentotes eram pastores; kaffirs eram pastores e agricultores dotados de organização centralizada). Contudo, se as três primeiras categorias eram compreendidas como “raças”, e juntamente com a “raça branca” perfaziam as quatro “raças” que compunham a nação sul-africana segundo a classificação de Theal em Compendium of the history and geography of South Africa (1878), não se poderia dizer o mesmo dos coloureds, classe trabalhadora sul-africana compreendida por Schreiner e grande parte dos intelectuais de sua época não como uma “raça” distinta, mas como half-castes (literalmente “meia-castas”). Estes seriam, segundo ela, resultantes da união entre mulheres negras escravizadas e um branco dominante.

A crítica de Schneider incide não só sobre a desigualdade dessa relação de gênero como sobre o caráter indesejável da miscigenação. Para ela, a África do Sul deveria ser construída harmonicamente a partir de todas essas “raças”, uma nação com várias cores que, no entanto, deveriam permanecer separadas, como muito bem explicitado em seu “mandamento” mais importante: “ Keep your breeds pure!” [“Mantenham sua raça pura!”] (p. 113). A miscigenação é silenciada ou vista como problema por Schreiner que, no entanto, defende a assimilação, “obrigação moral de elevar os outros”. A visão de Schreiner em relação à questão do nativo mostra como ela, ao mesmo tempo em que assumia uma atitude progressista em relação ao lugar dessas pessoas na política sul-africana, era também uma mulher de seu tempo, pertença esta derivada em grande medida da linguagem de que dispunha para pensá-lo: para ela, os nativos sul-africanos eram distintos dos brancos e assim deveriam permanecer. Não há espaço, em seu discurso, para o questionamento da ideia de raça e das hierarquias dela resultantes. Imersa nas ideias eugenistas de sua época, Schreiner via a miscigenação com preocupação e considerava ser papel da raça branca, especialmente dos ingleses, que ocupavam seu mais alto nível, contribuir para a melhoria das outras raças por meio da assimilação. Para ela, cada raça tinha suas qualidades e defeitos e poderia, a partir deles, desenvolver-se; a miscigenação traria o problema da degenerescência, pois faria uma junção das piores características de cada raça1. A riqueza da narrativa de Gomes aponta, contanto, para as vozes dissonantes de três clérigos anglicanos e Abdol Burns. Estes se opuseram à segregação racial nas escolas com base no seguinte argumento: como identificar brancos e negros em uma sociedade miscigenada e com “notória permeabilidade em sua barreira de cor”? Se seu questionamento apontava para a evidência que a classificação racial buscava distorcer, seu apelo não teve ressonância no debate político do período.

O texto de Gomes, extremamente bem escrito, faz jus à proposta de análise que apresenta e convida o leitor, com bom humor e perspicácia, a participar do contexto do nascimento da nação sul-africana e da definição de lugares sociais marcados por categorias de designação que determinariam muitas das possibilidades e impossibilidades colocadas para os diversos sujeitos sul-africanos ao longo do século XX.

1São curiosas as semelhanças do discurso eugênico sobre raça na África do Sul e no Brasil do mesmo período. Sobre o contexto brasileiro, ver Schwarcz (1993).

Referências

GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. [ Links ]

SCHWARCZ, Lilia. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e pensamento racial no Brasil, 1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. [ Links ]

THEAL, George. Compendium of the history and geography of South Africa. Londres: Edward Stanford, 1878. [ Links ]

Iracema Dulley – Doutora em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo, pós-doutoranda, bolsista Fapesp. E-mail: [email protected].

Degrees of Freedom: Lousiana and Cuba after Slavery | Rebecca J. Scott

Rebecca Scott, mesmo para os leitores brasileiros, dispensa apresentação. Autora de diversos trabalhos sobre a abolição da escravidão em Cuba, entre eles Emancipação Escrava em Cuba – a transição para o trabalho livre (1860-1899), Scott publicou em 2005 Degrees of Freedom: Lousiana and Cuba after Slavery, em que desenvolve argumentos inicialmente apresentados no artigo “Raça, trabalho e ação coletiva em Lousiana e Cuba, 1862-1912” no livro Além da Escravidão: investigações sobre raça, trabalho e cidadania em sociedades pós-emancipação, já publicado no Brasil.

O título do livro, Degrees of Freedom, é um conceito tomado de empréstimo dos físicos e químicos, que enfatiza a necessidade da análise em várias dimensões para se chegar ao estudo de um sistema num dado momento, e é usado como metáfora pela autora que estuda o período pós-emancipação a partir de duas dimensões – a organização do trabalho e a participação política – e discute a inserção do negro na sociedade e as relações raciais em Cuba e na Lousiana após o fim da escravidão. Leia Mais