Democratização ou cerceamento? Um estudo sobre a reforma do ensino médio técnico dos anos 1990 – ARRUDA (TES)

ARRUDA, Maria da Conceição Calmon. Democratização ou cerceamento? Um estudo sobre a reforma do ensino médio técnico dos anos 1990. Rio de Janeiro: Interciência, 2013, 170p. Resenha de: RAMOS, Marise. Revista Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v.13, n.1,  jan./abr. 2015.

O título deste livro anuncia o caminho traçado pela autora para demonstrar que a tese da reforma do ensino médio técnico realizada no Brasil nos anos de 1990 se revelou, na prática, na sua antítese. Tratou-se de uma reforma que teve o autoritarismo como base, apesar de abrigada por um Estado formalmente democrático. Muito ao contrário de ter sido uma estratégia de universalização do ensino médio, a reforma partiu do pressuposto de que aos que vêm dos segmentos populares resta somente uma alternativa: o ingresso no mercado de trabalho o quanto antes, cerceando-lhes, assim, outras perspectivas, como o ensino superior acadêmico e de qualidade, já que a história e a cultura do país tende a legitimar esse direito aos que chamam de ‘elite’.

O livro cumpre o que promete. Apresenta um estudo sobre a referida reforma com bases teóricas e empíricas. Ao mesmo tempo em que o estudo redunda numa produção científica, ele se torna um instrumento político, pois o desvelamento dos fundamentos da reforma é também uma denúncia. Afinal, a autora conclui que tanto a arquitetura da reforma foi pensada de modo a restringir o acesso das camadas médias às escolas técnicas federais, quanto privilegiou o estabelecimento de trajetórias educacionais diferenciadas — leiam-se trajetórias que levam alguns à universidade e muitos outros ao mercado de trabalho — e circunscreveu o ensino técnico a uma formação restrita para o trabalho. Poderíamos considerar que este problema no Brasil teria sido superado com a revogação do decreto n. 2.208/97 pelo de número 5.154/2004 e a introdução de seu conteúdo na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Trata-se, entretanto, de uma superação formal, pois a concepção educacional dualista, por ser produto da cultura escravocrata que caracteriza a formação social brasileira, ainda encontra, nos dias atuais, defensores influentes no debate sobre os rumos da nossa educação. Conhecer o conteúdo deste estudo é, portanto, um meio de aprender com a história para que esta não seja reinventada como tragédia ou como farsa.

Outra razão que justifica conhecer a obra e o viés empírico imprimido ao estudo. A autora faz este esforço ao investigar o perfil social e cultural, bem como interesses e expectativas de estudantes matriculados no terceiro ano do ensino médio de três escolas técnicas localizadas na região metropolitana do Rio de Janeiro. Esses, portanto, já teriam ingressado nas escolas sob a vigência do decreto n. 2208/97. A escolha das escolas, explica a autora, se baseou na representação que a sociedade tem sobre sua qualidade, além de seus estudantes demonstrarem bom desempenho no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem). Deve-se, ainda, ao fato de serem escolas que selecionam os estudantes mediante um concurso público.

Os resultados e a análise do estudo empírico são apresentados no quarto capítulo, tendo sido orientado por algumas hipóteses. A primeira delas considerou que a reforma não democratizou o acesso das camadas populares ao ensino técnico federal, mas, ao contrário, as distanciou dessas instituições, posto que para cursar os ensinos médio e técnico concomitantemente os estudantes precisavam dispor de dois turnos, o que se contrapõe à necessidade de os jovens das camadas populares trabalharem desde cedo. Ao mesmo tempo, cursar o ensino técnico após o ensino médio significaria prolongar o tempo desses jovens na escola, o que se confronta com a mesma necessidade.

A outra hipótese se contrapôs ao argumento dos defensores da reforma de que as camadas médias da sociedade não se interessam pelo ensino técnico, mas procuram as escolas técnicas como ‘trampolim’ para as universidades. A autora alerta que a existência de escolas técnicas privadas destinadas às camadas médias poderia ser um indicativo do interesse desse estrato social pelo ensino médio técnico. Além disso, ressalta, as políticas neoliberais, longe de terem favorecido essas camadas médias, teriam contribuído para seu empobrecimento, o que torna a formação técnica também uma alternativa que visa à qualificação para o trabalho.

Finalmente, reencontramos no livro a conclusão de que a reforma teria restabelecido a dualidade educacional dissociada de um projeto de democratização do ensino, mas vinculada a uma concepção de educação que vê na formação para o trabalho a trajetória escolar mais adequada aos alunos das camadas populares. Diríamos, porém, que a natureza dessa dualidade se modifica em relação àquela em que o ensino profissional não tinha equivalência ao de formação geral (anterior à lei n. 4.024/61) e à existência dos dois ramos do ensino de 2° Grau — propedêutico e profissionalizante — típica da lei n. 5.692/71 após o parecer do Conselho Federal de Educação n. 76/75.

A leitura dos dados obtidos pela autora e as respectivas análises são um ponto alto da presente obra. Destacamos, por exemplo, no caso das escolas estudadas, que seus estudantes pro-veem, em sua maioria, das camadas médias e não das elites, fazendo cair por terra a ideologia da ‘elitização do ensino técnico’ propalada pelos defensores da reforma. Bem colocada pela autora é, ainda, a crítica à associação das camadas médias com as elites. Segundo ela, trata-se de uma retórica utilizada para justificar o restabelecimento da dualidade e apresentar a reforma como supostamente justa.

Esses estudantes optaram por realizar o curso técnico concomitantemente ao ensino médio e justificam tal escolha pela intenção de prosseguirem os estudos em nível superior e também de trabalharem, considerada esta possibilidade seja simultaneamente à formação superior, seja como alternativa temporária a este. A autora conclui que o ingresso no ensino superior é uma trajetória frequente entre os concluintes das escolas técnicas, imediatamente ou após algum tempo de exercício profissional como técnico de nível médio. Assim, diz ela, ironicamente, que o pecado das escolas técnicas federais teria sido a associação, bem sucedida, entre formação geral e formação para o trabalho, que permite a seus estudantes autonomia na articulação dos conhecimentos recebidos e, consequentemente, autonomia para irem além, caso desejem. Não estaria aqui a tese de Dermeval Saviani (1997) de que essas escolas, por conterem os elementos de uma educação politécnica, contêm também os germens de sua construção?

Neste livro, então, encontramos, pelo estudo empírico, as justificativas para considerarmos que a possível integração entre os ensinos médio e técnico não se confunde com a educação politécnica e omnilateral, mas pode ser uma travessia em direção a ela. Trata-se de uma necessidade conjuntural — social e histórica — para que a educação tecnológica se efetive para os filhos dos trabalhadores (Frigotto, Ciavatta e Ramos, 2005). É preciso ver que uma conquista legal nesse sentido está, antes, no texto da LDB quando, no parágrafo 2° do artigo 36, prevê que o ensino médio, atendida a formação geral do educando, poderá prepará-lo para o exercício de profissões técnicas. Vemos que aqui se apregoa tanto um direito — cursar o ensino técnico com o ensino médio — como uma condição, qual seja, o asseguramento da formação básica. Isto é, a formação técnica não pode substituir nem sacrificar a formação geral e, portanto, em nenhuma hipótese, concorrer com ela. Antes, precisam, necessariamente, convergir para os princípios do direito social e subjetivo.

O caráter dual da educação brasileira, como bem demonstra a autora com quem dialogamos, e a correspondente desvalorização da cultura do trabalho pelas elites, ainda orientadas pela cultura escravocrata presente na formação social brasileira, que Maria da Conceição Calmon Arruda também resgata, torna a escola refra-tária a essa cultura e suas práticas. Assim, a não ser por uma efetiva reforma moral e intelectual da sociedade, preceitos ideológicos não são suficientes para promover o ingresso da cultura do trabalho nas escolas, nem como contexto e, menos ainda, como princípio. Desta forma, uma política consistente de profissionalização no ensino médio, dadas as outras razões e condicionada à concepção de integração entre trabalho, ciência e cultura, pode ser a travessia para a organização da educação brasileira com base no projeto de escola unitária, tendo o trabalho como princípio educativo. A contribuição da análise presente nesta obra é inestimável para a compreensão do problema e para a construção de estratégias que o enfrentem na difícil e contraditória relação entre Estado e sociedade civil que a política pública implica.

O livro é produto da tese de doutorado da autora, concluída no Programa de Pós-Graduação em Educação do Departamento de Educação do Centro de Teologia e Ciências Humanas da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, em 2008, orientada por Leandro Konder, que nos deixou em 12 de novembro de 2014. Seu legado, porém, se imortalizou em suas obras, nas ideias e nas pessoas que ajudou a formar. Apresentar este livro neste momento torna-se, coincidentemente, uma homenagem a este grande filósofo e educador.

Referências

SAVIANI, Dermeval. A nova lei da educação. LDB, limite, trajetória e perspectivas. 8. ed. São Paulo: Autores Associados, 1997. [ Links ]

FRIGOTTO, Gaudêncio; CIAVATTA, Maria; RAMOS, Marise. Ensino médio integrado: concepção e contradições. São Paulo: Cortez, 2005. [ Links ]

Marise Ramos – Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, Brasil. E-mail: [email protected]

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