Democratização ou cerceamento? Um estudo sobre a reforma do ensino médio técnico dos anos 1990 – ARRUDA (TES)

ARRUDA, Maria da Conceição Calmon. Democratização ou cerceamento? Um estudo sobre a reforma do ensino médio técnico dos anos 1990. Rio de Janeiro: Interciência, 2013, 170p. Resenha de: RAMOS, Marise. Revista Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v.13, n.1,  jan./abr. 2015.

O título deste livro anuncia o caminho traçado pela autora para demonstrar que a tese da reforma do ensino médio técnico realizada no Brasil nos anos de 1990 se revelou, na prática, na sua antítese. Tratou-se de uma reforma que teve o autoritarismo como base, apesar de abrigada por um Estado formalmente democrático. Muito ao contrário de ter sido uma estratégia de universalização do ensino médio, a reforma partiu do pressuposto de que aos que vêm dos segmentos populares resta somente uma alternativa: o ingresso no mercado de trabalho o quanto antes, cerceando-lhes, assim, outras perspectivas, como o ensino superior acadêmico e de qualidade, já que a história e a cultura do país tende a legitimar esse direito aos que chamam de ‘elite’.

O livro cumpre o que promete. Apresenta um estudo sobre a referida reforma com bases teóricas e empíricas. Ao mesmo tempo em que o estudo redunda numa produção científica, ele se torna um instrumento político, pois o desvelamento dos fundamentos da reforma é também uma denúncia. Afinal, a autora conclui que tanto a arquitetura da reforma foi pensada de modo a restringir o acesso das camadas médias às escolas técnicas federais, quanto privilegiou o estabelecimento de trajetórias educacionais diferenciadas — leiam-se trajetórias que levam alguns à universidade e muitos outros ao mercado de trabalho — e circunscreveu o ensino técnico a uma formação restrita para o trabalho. Poderíamos considerar que este problema no Brasil teria sido superado com a revogação do decreto n. 2.208/97 pelo de número 5.154/2004 e a introdução de seu conteúdo na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Trata-se, entretanto, de uma superação formal, pois a concepção educacional dualista, por ser produto da cultura escravocrata que caracteriza a formação social brasileira, ainda encontra, nos dias atuais, defensores influentes no debate sobre os rumos da nossa educação. Conhecer o conteúdo deste estudo é, portanto, um meio de aprender com a história para que esta não seja reinventada como tragédia ou como farsa.

Outra razão que justifica conhecer a obra e o viés empírico imprimido ao estudo. A autora faz este esforço ao investigar o perfil social e cultural, bem como interesses e expectativas de estudantes matriculados no terceiro ano do ensino médio de três escolas técnicas localizadas na região metropolitana do Rio de Janeiro. Esses, portanto, já teriam ingressado nas escolas sob a vigência do decreto n. 2208/97. A escolha das escolas, explica a autora, se baseou na representação que a sociedade tem sobre sua qualidade, além de seus estudantes demonstrarem bom desempenho no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem). Deve-se, ainda, ao fato de serem escolas que selecionam os estudantes mediante um concurso público.

Os resultados e a análise do estudo empírico são apresentados no quarto capítulo, tendo sido orientado por algumas hipóteses. A primeira delas considerou que a reforma não democratizou o acesso das camadas populares ao ensino técnico federal, mas, ao contrário, as distanciou dessas instituições, posto que para cursar os ensinos médio e técnico concomitantemente os estudantes precisavam dispor de dois turnos, o que se contrapõe à necessidade de os jovens das camadas populares trabalharem desde cedo. Ao mesmo tempo, cursar o ensino técnico após o ensino médio significaria prolongar o tempo desses jovens na escola, o que se confronta com a mesma necessidade.

A outra hipótese se contrapôs ao argumento dos defensores da reforma de que as camadas médias da sociedade não se interessam pelo ensino técnico, mas procuram as escolas técnicas como ‘trampolim’ para as universidades. A autora alerta que a existência de escolas técnicas privadas destinadas às camadas médias poderia ser um indicativo do interesse desse estrato social pelo ensino médio técnico. Além disso, ressalta, as políticas neoliberais, longe de terem favorecido essas camadas médias, teriam contribuído para seu empobrecimento, o que torna a formação técnica também uma alternativa que visa à qualificação para o trabalho.

Finalmente, reencontramos no livro a conclusão de que a reforma teria restabelecido a dualidade educacional dissociada de um projeto de democratização do ensino, mas vinculada a uma concepção de educação que vê na formação para o trabalho a trajetória escolar mais adequada aos alunos das camadas populares. Diríamos, porém, que a natureza dessa dualidade se modifica em relação àquela em que o ensino profissional não tinha equivalência ao de formação geral (anterior à lei n. 4.024/61) e à existência dos dois ramos do ensino de 2° Grau — propedêutico e profissionalizante — típica da lei n. 5.692/71 após o parecer do Conselho Federal de Educação n. 76/75.

A leitura dos dados obtidos pela autora e as respectivas análises são um ponto alto da presente obra. Destacamos, por exemplo, no caso das escolas estudadas, que seus estudantes pro-veem, em sua maioria, das camadas médias e não das elites, fazendo cair por terra a ideologia da ‘elitização do ensino técnico’ propalada pelos defensores da reforma. Bem colocada pela autora é, ainda, a crítica à associação das camadas médias com as elites. Segundo ela, trata-se de uma retórica utilizada para justificar o restabelecimento da dualidade e apresentar a reforma como supostamente justa.

Esses estudantes optaram por realizar o curso técnico concomitantemente ao ensino médio e justificam tal escolha pela intenção de prosseguirem os estudos em nível superior e também de trabalharem, considerada esta possibilidade seja simultaneamente à formação superior, seja como alternativa temporária a este. A autora conclui que o ingresso no ensino superior é uma trajetória frequente entre os concluintes das escolas técnicas, imediatamente ou após algum tempo de exercício profissional como técnico de nível médio. Assim, diz ela, ironicamente, que o pecado das escolas técnicas federais teria sido a associação, bem sucedida, entre formação geral e formação para o trabalho, que permite a seus estudantes autonomia na articulação dos conhecimentos recebidos e, consequentemente, autonomia para irem além, caso desejem. Não estaria aqui a tese de Dermeval Saviani (1997) de que essas escolas, por conterem os elementos de uma educação politécnica, contêm também os germens de sua construção?

Neste livro, então, encontramos, pelo estudo empírico, as justificativas para considerarmos que a possível integração entre os ensinos médio e técnico não se confunde com a educação politécnica e omnilateral, mas pode ser uma travessia em direção a ela. Trata-se de uma necessidade conjuntural — social e histórica — para que a educação tecnológica se efetive para os filhos dos trabalhadores (Frigotto, Ciavatta e Ramos, 2005). É preciso ver que uma conquista legal nesse sentido está, antes, no texto da LDB quando, no parágrafo 2° do artigo 36, prevê que o ensino médio, atendida a formação geral do educando, poderá prepará-lo para o exercício de profissões técnicas. Vemos que aqui se apregoa tanto um direito — cursar o ensino técnico com o ensino médio — como uma condição, qual seja, o asseguramento da formação básica. Isto é, a formação técnica não pode substituir nem sacrificar a formação geral e, portanto, em nenhuma hipótese, concorrer com ela. Antes, precisam, necessariamente, convergir para os princípios do direito social e subjetivo.

O caráter dual da educação brasileira, como bem demonstra a autora com quem dialogamos, e a correspondente desvalorização da cultura do trabalho pelas elites, ainda orientadas pela cultura escravocrata presente na formação social brasileira, que Maria da Conceição Calmon Arruda também resgata, torna a escola refra-tária a essa cultura e suas práticas. Assim, a não ser por uma efetiva reforma moral e intelectual da sociedade, preceitos ideológicos não são suficientes para promover o ingresso da cultura do trabalho nas escolas, nem como contexto e, menos ainda, como princípio. Desta forma, uma política consistente de profissionalização no ensino médio, dadas as outras razões e condicionada à concepção de integração entre trabalho, ciência e cultura, pode ser a travessia para a organização da educação brasileira com base no projeto de escola unitária, tendo o trabalho como princípio educativo. A contribuição da análise presente nesta obra é inestimável para a compreensão do problema e para a construção de estratégias que o enfrentem na difícil e contraditória relação entre Estado e sociedade civil que a política pública implica.

O livro é produto da tese de doutorado da autora, concluída no Programa de Pós-Graduação em Educação do Departamento de Educação do Centro de Teologia e Ciências Humanas da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, em 2008, orientada por Leandro Konder, que nos deixou em 12 de novembro de 2014. Seu legado, porém, se imortalizou em suas obras, nas ideias e nas pessoas que ajudou a formar. Apresentar este livro neste momento torna-se, coincidentemente, uma homenagem a este grande filósofo e educador.

Referências

SAVIANI, Dermeval. A nova lei da educação. LDB, limite, trajetória e perspectivas. 8. ed. São Paulo: Autores Associados, 1997. [ Links ]

FRIGOTTO, Gaudêncio; CIAVATTA, Maria; RAMOS, Marise. Ensino médio integrado: concepção e contradições. São Paulo: Cortez, 2005. [ Links ]

Marise Ramos – Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, Brasil. E-mail: [email protected]

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Educação e reforma: o Rio de Janeiro nos anos 1920- 1930 – VIDAL (HH)

VIDAL, Diana Gonçalves (org.). Educação e reforma: o Rio de Janeiro nos anos 1920- 1930. Belo Horizonte: Argvmentvm; São Paulo: CNPq: USP, Núcleo Interdisciplinar de Estudos e Pesquisas em História da Educação, 2008, 176 p. Resenha de: SHUELER, Alessandra Frota Martinez. Novas perspectivas sobre as reformas educacionais no Rio de Janeiro (1920-1930). História da Historiografia. Ouro Preto, n. 7, p. 312-317, nov./dez. 2011.

Comemorar onze anos de existência do NIEPHE – Núcleo Interdisciplinar de Estudos e Pesquisas em História da Educação (Universidade de São Paulo), eis o objetivo do livro Educação e reforma: o Rio de Janeiro nos anos 1920- 1930, organizado por Diana Gonçalves Vidal. Publicada pelo núcleo com recursos do CNPq, em parceria com a editora Argvmentvm, a obra reúne um conjunto de artigos resultantes da produção acadêmica, das práticas de investigação e das reflexões teórico-metodológicas elaboradas no âmbito do grupo de pesquisa, por professores e estudantes de graduação e de pós-graduação.

É possível observar a densidade do investimento de pesquisa realizado pelo NIEPHE e a articulação das propostas de investigação desenvolvidas e concretizadas ao longo dos onze anos de existência. No campo da história da educação, os integrantes do grupo, sob a coordenação de Diana Vidal e Maurilane Biccas, agregaram-se não somente em torno de temáticas, temporalidades ou de interesses afins. Sobretudo, compartilharam e produziram problemas de pesquisa e questões teórico-metodológicas. O próprio processo de constituição do NIEPHE, como grupo de investigação em História da Educação, sua trajetória, diversidade, produção e contribuições para o campo, é ricamente narrado na introdução pela coordenadora e organizadora da coletânea, Diana Gonçalves Vidal.

Na apresentação, a autora expõe como o seu trabalho inicial com o acervo pertencente ao Arquivo Fernando de Azevedo (Instituto de Estudos Brasileiros/ USP) foi importante para a emergência de perguntas e do interesse historiográfico sobre a gestão carioca do escolanovista. Na análise de documentos diversos (leis, relatórios, programas de ensino, impressos em geral, entre outros), integrantes do acervo documental da reforma azevediana, observava-se a força do tom renovador, a intenção de modernizar e transformar a realidade, a cultura das escolas do Rio de Janeiro. O tom reformista conjugava-se com o diagnóstico sobre o atraso, sinalizando o estado deplorável do ensino na cidade nos anos que o antecederam. Diante das tradicionais casas de escola, geralmente, alugadas e consideradas inespecíficas para o trabalho de ensinar, uma das tarefas do diretor geral da Instrução Pública se consubstanciava na construção de prédios escolares próprios, modernos e adaptados aos fins do ensino.

Não por acaso, esse modo de construir a memória educacional tem estado reiteradamente presente na historiografia da educação brasileira. As décadas de 1920 e 1930, contemplando o período de maior efervescência e impacto das reformas estaduais, chamadas de escolanovistas, foram consideradas por seus próprios agentes como marcos de origem. Momento de grande empreendimento público e social em prol da educação, os anos de 1920 e 1930 foram identificados com as luzes e a modernidade, em detrimento das sombras, e das tradições, dos primeiros anos de instabilidade republicana e do período imperial, prescritos como tempos de ausências no que tange à educação e aos processos de escolarização. Tal chave interpretativa, que ainda pode ser lida em manuais de história da educação consumidos por professores em formação, nos cursos de graduação (licenciaturas) e nas escolas normais, é problematizada pelo conjunto de artigos da coletânea. Neles, os autores analisam, sob variadas perspectivas e a partir de diversas fontes documentais, as realizações da reforma educacional, atentando, porém, para o complexo processo de construção de representações culturais e sociais, bem como para a construção de uma determinada memória sobre a administração azevediana.

Os eixos de investigação que orientaram as pesquisas desenvolvidas no NIEPHE fertilizaram e mobilizaram intensamente o campo da história da educação brasileira. Participando ativamente do debate no interior da produção historiográfica em educação, o grupo contribuiu, entre outros aspectos, para a construção de abordagens centradas na cultura e nas práticas escolares, compreendendo que, na cultura escolar, há sempre um espaço de negociação “entre o imposto e o praticado, e, mesmo, de criação de saberes e fazeres que retornam à sociedade, seja como práticas culturais, seja como problemas que exigem regulação no âmbito educativo” (VIDAL; BICCAS 2008, p. 25). Nela, se pode perceber como foram constituídas as práticas escolares que “são modos de estar no mundo, de compreender a realidade e de estabelecer sentidos, partilhados social e historicamente” (VIDAL; BICCAS 2008, p. 25). Conhecer as práticas demanda o manuseio de documentos escolares, elementos que não são encontrados com facilidade como cadernos, diários e exames, por exemplo, que podem fornecer pistas dos assuntos ensinados em sala de aula, e ainda, a mobília e todo o conjunto de objetos e artefatos que fazem parte do universo escolar. Assim, o trabalho com os detalhes “permite reconhecer o passado na sua singularidade” (VIDAL; BICCAS 2008, p. 28) e a ampliação da abordagem “possibilita perceber permanências e avaliar mudanças” (VIDAL; BICCAS 2008, p. 28).

Outra categoria de análise problematizada pelo grupo, a de estratégias de escolarização, pode ser destrinchada em dois conceitos: escolarização, como empreendimento, principalmente, do Estado, mas também de movimentos sociais, indivíduos ou grupos específicos (operários, negros, imigrantes e outros); e estratégia, inspirado em Michel de Certeau (1994), que produz o “lugar de poder” pelo estrategista, que, por sua vez, busca exercer seu potencial de dirigir e regular as relações externas. Tais dispositivos analíticos têm permitido ao NIEPHE perscrutar a história da escola elementar, compreendendo essa instituição social nas suas regularidades e dessemelhanças históricas, em uma ampla perspectiva.1 O texto inicial assinado por Vidal e Biccas é de leitura fundamental para a compreensão do conjunto dos artigos reunidos em Reforma e educação, pois apresenta uma diversidade temática e de diferentes abordagens teóricas vistos nos artigos, que constituem produtos de teses, dissertações e monografias resultantes de pesquisas de iniciação científica, e apresentam um ponto de partida comum, ou seja, buscam realizar uma análise minuciosa das reformas educativas ocorridas nas décadas de 1920 e 1930, na cidade do Rio de Janeiro, 1 Para Vidal e Biccas, a escola elementar reuniu diversas denominações na história educacional brasileira: “aulas régias de primeiras letras, aulas nacionais de primeiras letras, escolas de primeiro e segundo graus, escolas primárias, escolas modernas, escolas de imigrantes, grupos escolares, escolas isoladas, dentre outras” (VIDAL; BICCAS 2008, p. 31).

então Distrito Federal. Tais reformas, geralmente identificadas como ícones de modernização e de renovação educacionais na sociedade brasileira, também foram reconhecidas pela apropriação, circulação e difusão de ideais e movimentos pedagógicos, políticos e filosóficos que, embora heterogêneos, foram denominados escolanovismos ou Escola Nova. Partindo dessa problemática central, os estudos, em sua maior parte, conferem destaque às relações entre educação e reforma, especialmente, ao período da administração de Fernando de Azevedo (1927-1930).

A seguir, o texto “A reforma de Fernando de Azevedo em artigos de imprensa e sua ação política na Diretoria de Instrução Pública do Distrito Federal (1927-1930)”, de André Luiz Paulilo aborda as estratégias políticas utilizadas por Fernando de Azevedo visando conferir legitimidade a sua ação frente ao cargo que acabara de assumir. O autor demonstra como as propostas do escolanovista emergiram do acompanhamento, e da apropriação estratégica, dos debates públicos sobre a educação escolar, difundidos nos periódicos cariocas.

Apenas para citar um exemplo, mencionamos a ocasião em que Azevedo, recorrendo ao artigo de Barbosa Vianna, veiculado no Jornal do Brasil, lança mão de seus argumentos para defender a necessidade de reduzir o número de professores da Escola Normal. Dessa forma, se apropriava do discurso da imprensa “também para produzir convencimento” (PAULILO 2008, p. 50) sobre suas proposições e reformas. Os jornais eram utilizados também como veículo de emissão do ideário, das notícias e dos feitos de sua gestão, bem como funcionavam como espaço de contestação, diálogo e discussão a respeito da política educacional azevediana. O artigo permite observar as estratégias políticas da administração pública de ensino, que se utilizou da imprensa como instrumento para “responder críticas e esclarecer problemas administrativos” (PAULILO 2008, p. 54), mas também como instrumento de divulgação dos empreendimentos reformistas de Azevedo.

Acompanhando a análise anterior, a reforma Fernando de Azevedo é analisada a partir da produção de um rico acervo fotográfico por Rachel Duarte Abdala, em “A fotografia além da ilustração: Malta e Nicolas construindo imagens da reforma Fernando de Azevedo no Distrito Federal (1927-1930)”. A imagem impressa, como documento monumental de uma política educacional, foi representada por Azevedo como registro da verdade, a verdade da reforma.

Por isso, tanto Augusto Malta, fotógrafo da prefeitura do Rio de Janeiro, quanto Nicolas Alagemovits, contratado para retratar artisticamente as obras empreendidas pela reforma azevediana, foram agentes fundamentais para captar, e fazer aparecer, as ações públicas, inclusive as construções dos novos prédios escolares. Para a autora, enquanto as fotografias de Malta se caracterizavam pela construção em ação, as de Nicolas, tinham cunho mais artístico, na medida em que realçavam o contraste entre as luzes, os enquadramentos oblíquos, as diagonais, recriando “a dimensão do real na representação fotográfica” (ABDALA 2008, p. 102). Desse modo, Fernando de Azevedo percebeu “o potencial do recurso fotográfico” (ABDALA 2008, p. 106) para conferir visibilidade à reforma educacional carioca e para construir representações sobre suas próprias ações.

O impacto social e as representações em disputa sobre tal reforma educacional foram problematizados por José Claudio Sooma Silva, no artigo “A reforma Fernando de Azevedo e o meio social carioca: tempos de educação nos anos 1920”. No trabalho, o autor se pergunta sobre os modos pelos quais a população do Rio de Janeiro lidava com o “tempo acelerado” das reformas, que aglutinava não apenas novas construções escolares na cidade, como novas formas de organização dos espaços urbanos e dos tempos sociais. O desejo de formar o cidadão, como projeto norteador da intervenção azevediana, tinha de lidar com as diversas práticas culturais presentes na cidade, incluindo as escolares. Silva interroga-se sobre as apropriações e as possíveis recepções da reforma educacional no âmbito das escolas. Aponta também para a existência de tensões entre as estratégias de renovações normativas das práticas educativas, presentes na legislação, e as práticas e saberes escolares preexistentes. Com isso, o autor recupera tentativas reformadoras anteriores, em especial aquelas realizadas na gestão de Antonio Carneiro Leão (1922- 1926). Os tempos escolares, desde o início da década de 1920, passaram por variadas modificações: nos horários de entrada e saída, nas divisões dos turnos e nos programas de ensino, entre outros. Lidar com o novo tempo escolar, que tensionava e concorria com outros tempos sociais, não era tarefa fácil. Muitas famílias resistiam ao tempo escolar imposto, como é possível observar pelos debates divulgados nos periódicos cariocas.

Focando as relações sociais de gênero, Rosane Nunes Rodrigues analisa as reformas educativas cariocas com destaque para a inserção dos saberes ditos domésticos e as representações do feminino na cultura escolar, em “A escolarização dos saberes domésticos e as múltiplas representações de feminino – Rio de Janeiro – 1920 e 1930”. A autora levanta questões sobre as práticas escolares que contribuíram para a construção de determinadas representações sobre a mulher. Ao ressaltar que a reforma educacional proposta por Azevedo também incluía o ensino profissional, objeto priorizado no estudo, a autora argumenta como essa política estava preocupada em “ocupar-se intensivamente da formação moral e intelectual do operário” (RODRIGUES 2008, p. 65). Com isso, no caso das mulheres, não bastaria que as moças recebessem o conhecimento técnico de sua futura profissão, mas que fossem educadas a se afastarem das “futilidades” e hábitos pouco saudáveis, como o uso de cigarros, compras em excesso e a circulação livre pela cidade. Os saberes domésticos, transformados em conhecimentos escolares, contribuíram para a formação de um modelo idealizado de mulher, que conduziria de forma disciplinada e honesta seu lar.

A temática disciplinar também pode ser vista no último artigo, “Por uma cruzada regeneradora: a cidade do Rio de janeiro como canteiro de ações tutelares e educativas da infância menorizada na década de 1920”, de Sônia Câmara. As ações disciplinadoras direcionadas à infância, na década de 1920, foram temáticas enfrentadas pela autora, que nos mostra como as iniciativas jurídicas, formuladas a partir da Lei Orçamentária Federal de 1921, e, posteriormente, o Código de Menores de 1927, propunham-se a alcançar a infância abandonada da capital. Com as mudanças na cidade e na educação, a infância pobre, desprovida de sorte, delinquente, deveria ser alvo de “intervenções científicas e racionais” para se tornar higiênica, saudável e disciplinada, de acordo com um discurso moral que apostava na infância como investimento para o progresso. Favoráveis a tais discursos, os juristas posicionaram-se como “arautos de um novo tempo” (CAMARA 2008, p. 152). Uma figura se sobressairia naquele momento, a saber, o juiz Mello Mattos, que trabalhou por configurar e atribuir uma nova feição à política judiciária de atendimento à infância carioca.

Política de forte caráter disciplinar, dirigida ao controle da infância, mais do que ao cuidado e/ou à proteção, conforme a perspectiva analítica privilegiada pela autora.

Após leitura acurada podemos dizer que a coletânea Reforma e educação nos presenteia com uma perspectiva ampliada sobre a complexidade dos movimentos de mudança educacional ocorrida nas décadas de 1920 e 1930.

Os pesquisadores, autores vinculados a um consolidado grupo de pesquisa, lidaram com uma diversidade de temáticas, categorias, questões e problemas teórico-metodológicos, manejando com competência uma documentação ampla, dispersa e variada, com destaque para periódicos, revistas, leis, programas curriculares, acervos institucionais e fotográficos. Em seu conjunto, essa documentação é interrogada, analisada a partir de uma operação historiográfica que é orientada pelas escolhas do historiador, pela busca de olhar, sob novos aspectos, antigos objetos, velhos documentos. Trouxeram à luz disputas, tensões, estratégias, apropriações e recriações a que são submetidas às reformas na experiência educacional, no espaço das escolas, nas práticas sociais e culturais. As reformas e as lutas educacionais dos anos de 1920 e 1930 surgem em seu movimento. Mas, nem por isso, silenciam ou apagam a história, a memória e as práticas educativas, escolares ou não escolares, de outros tempos históricos, com as quais convivem, dialogam, se hibridizam.

Referências

CERTEAU, M. A invenção do cotidiano: artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 1994.

Alessandra Frota Martinez de Schueler – Professora adjunta Universidade Federal Fluminense [email protected] Rua Visconde do Rio Branco, 882, Campus do Gragoatá, Bloco D – Gragoatá 24210-350 – Niterói – RJ Brasil Ariadne Lopes Ecar Mestre Universidade do Estado do Rio de Janeiro [email protected] Rua São Francisco Xavier, 524, 12º andar – Maracanã 20550-013 – Rio de Janeiro – RJ Brasil