Diários de Berlim, 1940-1945 | Marie Vassiltchikov

Há seis anos começava a guerra.

Parece o tempo de

uma vida

Missie Vassiltchikov, Berlim, setembro de 1945

Mestre no escutar e no escrever, Truman Capote legou ao mundo da Cultura uma participação indelével, baseada na sua incrível capacidade de ver, mentalizar e, na sequência, descrever detalhadamente fatos havidos, por ele percebidos no instantes em que aconteciam ou recriados tempos depois. Entrou para a História assim.

O século 20 tem mais destes autores – muitos dos quais compõem o que hoje conhecemos por New Journalism, por exemplo -, tão ou mais famosos que Capote. Mas, singular que ele só, o século 20 tem gentes que não atingiram (nem almejavam isso) o que podemos chamar de Grande Mídia – nem eram jornalistas. Marie Vassiltchikov é uma dessas figuras. Princesa russa (bem nascida, portanto), poliglota, viajada, Missie (como era conhecida) também foi refugiada de guerra civil, funcionária de serviços diplomáticos e, o mais impressionante, um olhar atento voltado e situado no coração do Nazismo, essa chaga da Humanidade da qual tanto já lemos, tanto já expurgamos, tanto já discorremos e, paradoxalmente, tanto ainda temos a descobrir.

E é justamente isso que Missie nos entrega em The Berlin Diaries, publicado originalmente em inglês em 1988 e que agora passa a ter uma versão em Português – Diários de Berlim, 1940/1945 -, acompanhado de um subtítulo desnecessário, embora elucidativo, denominado ‘Os bastidores da operação que planejou assassinar Hitler’. Missie nos entrega um detalhado relato singelo de suas impressões sobre aqueles tempos amargos de Berlin, em uma prosa fluída que pode ser tanto caracterizada como Literatura Jornalística da melhor qualidade como Jornalismo Literário de alta precisão. Suas anotações, tomadas nas piores condições possíveis, apontam o quanto a História da Mídia não deve e não pode ser escrita apenas pelos grandes relatos dos profissionais da área, sejam eles do Jornalismo ou da própria História, dentre outros campos possíveis. E nem precisa ser documentada somente por meio de reportagens, entrevistas e similares mas cabe ser preenchida por obras como a que Missie produziu. Como bem apontou o escritor John Le Carré, citado por Flávio Aguiar, tradutor da edição brasileira (p. 15), Diários de Berlim é

Um dos diários de guerra mais extraordinários já escritos. A um só tempo inocente e astuto, retrata a morte da Velha Europa pelos olhos de uma bela e jovem aristocrata cujo próprio mundo está desaparecendo com os acontecimentos que descreve.

Antes, o mesmo Flávio havia deixado suas impressões sobre as condições de produção (p. 11):

O diário em si é uma obra-prima de minúcia e estilo. Nas condições difíceis em que se via a autora, comprimida entre a sua repulsa ao Nazismo e ao próprio Hitler, sua condição de exilada apátrida e a censura reinante, ela acabou criando um compromisso entre a anotação detalhada dos acontecimentos, das reações dos personagens (e de si mesma), e uma necessária concisão de escrita, que redundaram num estilo notável pelo uso preciso e contido das palavras, sem jamais cair no rebuscamento ou na obscuridade.

Nada mais jornalístico, caro leitor, Jornalismo puro, Jornalismo em seu mais alto degrau. Ou seria o caso de dizermos Literatura Jornalística de alto nível? Tanto faz. Com Diários de Berlim, o que temos diante de nossas mãos e pupilas é uma obra que justifica plenamente a mídia ‘Livro’ enquanto uma das mais relevantes ferramentas comunicacionais de nosso tempo.

Memória, minúcias e Mídias cruzadas

Uma das contribuições midiáticas incomuns de Diários… reside nos escritos originais de Missie sobre determinado momento do seu dia a dia e, de modo complementar, nas notas de rodapé inseridas na versão final do livro por um de seus irmãos, Georgie. Em 19 de junho de 1944 (p. 289), quando o Dia D já havia ocorrido (duas semanas antes), Missie registrou ter almoçado com uma certa Sigrid Görtz, cuja mãe tinha sido enviada, segundo Missie, para algum ‘gueto no Leste’, hoje um eufemismo para o campo de concentração de Theresienstadt (em alemão), Terezin (em checo), em território da atual República Theca.

O que era, portanto, uma mera anotação sobre refeição cotidiana com uma conhecida acaba se tornando ponto de partida para um estudo mais aprofundado sobre Theresienstadt e sua condição de povoado modelo que o Nazismo havia construído, para ser propagandeado como uma aldeia exemplar de trabalho coletivo, tendo sido apresentada à Cruz Vermelha e à Imprensa internacional como um lugar feliz – algo similar ao que este signatário comprovou in loco ao visitar, em 2012, o campo de concentração de Dachau (Alemanha), cujo memorial estampa cuidadosamente reportagens dos anos 1930 de jornalistas de diversos países retratando o local também como um exemplo de sociedade em harmonia, outro eufemismo para um lugar que, a exemplo de Theresienstadt, era espaço para todo tipo de suplícios, incluindo a derradeira câmara de gás, ao lado da fornalha que recebia um corpo inerte por vez várias (várias mesmo) horas por dia.

Diários… está recheado de episódios similares. O Rádio, enquanto Mídia poderosa naqueles tempos bélicos, aparece reiteradas vezes. Foi por dele (p. 309) que Hitler falou à nação alemã em 21 de julho de 1944, poucas horas depois da hoje famosa Operação Valquíria, uma tentativa de tirar a vida do Führer de alta engenhosidade na sua origem mas trapalhada a seu. Foi pelo Rádio (p. 341), garantem Missie e Georgie, que muitos dos conspiradores de Operação Valquíria receberam informações pós-golpe que se mostraram cruciais para sua sobrevivência, já que eram emissões britânicas para o território inimigo.

São situações como as descritas nos dois parágrafos anteriores que servem também de aval para o valor midiático de Diários…. Relatos pessoais sobre os dramas vividos na II Guerra existem aos montes. Mesmo decorridos 70 anos do final do conflito, livrarias brasileiras sempre ostentam novos títulos, muitos dos quais prometendo, em especial nas capas, o que não cumprem páginas adentro – caso de Depois de Auschiwtz – o emocionante relato da irmã de Anne Frank que sobreviveu ao Holocausto (2013) e que, a exemplo de Diários…, vem acompanhado de um subtítulo um tanto enganador.

No caso de Diários…, vale ressaltar, o subtítulo chamada a atenção para a já mencionada Operação Valquíria e que aparece na narrativa de Missie mais ao final, já que as anotações da autoria se iniciam em 1940. Ao focar somente na Operação, a capa acaba sim desmerecendo o restante do conteúdo, brilhante enquanto fonte de estudos passível de ser cruzada com outros relatos e investigações, estupendo enquanto estilo de narrativa.

Encantamentos e apavoramentos

Outro dos valores simbólicos do livro de Missie reside na sua incrível capacidade de manter um status de encantamento cultural em meio ao crescente belicismo daqueles anos e de registrar tudo isso com uma prosa que nos leva a crer na naturalidade de tais acontecimentos – à página 381, ilustra-se, Missie anotou ter ido mais uma vez à uma apresentação da Orquestra Filarmônica de Viena – e isso em 14 de fevereiro de 1945. Em seguida, continua ela, emenda impressões acerca de um momento crucial para o desfecho do conflito – a conferência de Ialta, naqueles dias de fevereiro, reunindo os então aliados Estados Unidos, União Soviética e Grã- -Bretanha:

A única coisa que ainda funciona em Viena é a Orquestra Filarmônica. Depois do hospital (onde Missie trabalhava naqueles instantes), vou aos concertos quase todos os dias. Terminou a conferência dos Aliados em Ialta. Meu pequeno rádio capta apenas estações alemãs e elas, claro, falam muito pouco a respeito. Há rumores de que Dresden foi arrasada por dois bombardeios dos Aliados (o que, de fato, aconteceu). Os russos entraram em Budapeste.

Aliás, é interessante notar que, à medida que o a batalha se encaminha para o encerramento, as menções aos meios de Comunicação no livro se acentuam. Com uma Alemanha literalmente arrasada, circular pelas cidades torna-se mais difícil e, portanto, conversar também. As informações mediadas se tornam uma constante na vida cotidiana e, com Missie e seus amigos, algo similar ocorre. Em 20 de abril de 1945, data de nascimento do Führer, a outrora princesa novamente registra ter acompanhado os acontecimentos pelo Rádio (p. 419):

O aniversário de Adolf. Um discurso ridículo de Goebbels (o ministro da Propaganda do regime totalitário). . Quão longe alguém pode ir? Ele acrescentou que reconstruir tudo o que fora destruído não seria um problema. Enquanto isso, os Aliados avançam em todas as frentes e os avisos de ataques aéreos acontecem o dia todo, todos os dias.

Mas o caro leitor desta resenha pode pensar que os encantamentos de Missie (o episódio da Filarmônica indicado parágrafos antes é somente um dos tantos que ela anotou) podem funcionar perfeitamente como um instrumento para solapar os efeitos catastróficos do combate entre as nações, como a desejar a criação de um mundo paralelo em meio ao horror de uma guerra – expediente esse utilizado por Roberto Benigni em seu filme A Vida é Bela (1997). É possível que sim e, certamente, jamais teremos uma resposta consistente (a autora, diga-se, faleceu em 1978). Na obra, claro, há espantos, medos crescentes e ameaças de toda sorte. Nas páginas derradeiras de Diários…, há diversas menções à possibilidade de fome generalizada entre os habitantes da Alemanha naquele 1945. O final de abril daquele ano parece ter sido especialmente um momento temeroso quanto à escassez crescente de comida, conforme é possível notar entre as páginas 420 e 423.

Essa dualidade encantamento vs apavoramento acaba por funcionar, ainda que sem querer, como base para outra dualidade – a prosa literária de Missie (aquela que aponta para o cotidiano cultural e social da autora ao longo dos 5 anos do livro, que incluem festas, casamentos, piqueniques, etc) vs a narrativa jornalística, na qual o tema fome coletiva é preemente. E é aí que reside outro dos méritos de Diários… enquanto documento consistente para a História da Mídia.

A literatura jornalística de Missie, enfim

Flávio Aguiar, o tradutor da edição brasileira, viu um tipo de arranjo musical em Diários…. Em seu texto de apresentação (a partir da p. 10), Aguiar defende que o livro pode ser classificado como tendo cinco movimento sinfônicos:

– Um allegro vivace (a jovem Missie, 23 anos em 1940, que quer aproveitar a vida, ainda que sob circunstâncias adversas);

O minueto e o rondó, destacando o midiático casamento dos príncipes europeus Konstantin da Baviera e Maria Adelgunde de Hohenzollern, em agosto de 1942, quando o conflito já era de alcance mundial;

– Uma satira musicale, na qual Missie é personagem principal, lotada que está em determinado momento da guerra no Ministério das Relações Exteriores alemão, circulando em um ambiente sem censura de informações e povoado de ideias midiáticas mirabolantes improváveis;

– O andante, em que são descritos os bombardeios e seus efeitos (como incêndios), retirando paulatinamente dos moradores na Alemanha de qualquer condição de conforto;

– E o adagio tragico, que tem no atentado contra a vida de Hitler em julho de 1944 como ponto inaugural para uma narrativa frenética acerca dos desdobramentos deste plano fracassado.

A classificação que Flávio propõe é deveras adequada mas, se levada em alta e permanente consideração pelo leitor, poderá provocar nesse mesmo leitor a tentação de pular partes da obra, indo, por exemplo, diretamente para o adagio tragico, o que seria uma lástima, até mesmo pelo de que a Operação Valquíria volta e meia é redescoberta (há um filme de 2008 com Tom Cruise, diga-se), ou seja, está bem documentada. Saltar trechos do relato de Missie Vassiltchikov seria potencialmente perder boa parte de sua literatura de alta qualidade. Ou deixar de notar que, sem o ser, Missie era uma jornalista do primeiro time.

Sim, eu sei que classificar uma obra da qual gostamos como obra-prima é clichê mas, no caso de Diários de Berlim…, estamos mesmo diante de uma. Compre, leia e me escreva. Haverás de concordar comigo.


Resenhista

Marcio Fernandes – Jornalista diplomado, com 20 anos de carreira no Brasil e no exterior. Doutor em Comunicação & Cultura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (URFJ), com doutoramento-sanduíche pela Universidade de Lisboa (UL). E-mail: [email protected]


Referências desta Resenha

VASSILTCHIKOV, Marie. Diários de Berlim, 1940-1945. São Paulo: Boitempo, 2014. Resenha de: FERNANDES, Marcio. A literatura jornalística de Missie Vassiltchikov. Revista Brasileira de História da Mídia. São Paulo, v.5, n.1, p.175-177, jan./ jun. 2016. Acessar publicação original [DR]

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