Dicionário Crítico Câmara Cascudo | Marcos Silva

Desde o primeiro momento em que me deparei com o Dicionário Crítico Câmara Cascudo e, depois, à medida que o lia – ou melhor, saboreava cada página – uma pergunta se impunha: que outro escritor brasileiro poderia ser comparado a Câmara Cascudo, seja pelo volume de livros publicados, seja pela impressionante contribuição que deu aos mais diferentes campos do conhecimento? Que outro mereceria a organização de um dicionário para reunir e explicar sua produção intelectual? E, apesar de alguns nomes me ocorrerem, nenhum parecia superar o norte-rio-grandense, tal o inegável impacto de seu trabalho para a cultura brasileira. Como poucos, Cascudo introduziu no cenário nacional o testemunho de uma experiência sertaneja e a cosmovisão de um mundo nordestino, até então muito pouco conhecido e geralmente ignorado pela elite intelectual do país.

A vasta bibliografia de Câmara Cascudo (1898-1986) contabiliza cerca de uma centena de obras e se encontra espalhada pelos campos da história, da etnografia, da antropologia, da literatura, da crítica literária, da cultura popular, da religião, da geografia e, principalmente, do folclore. Como se não bastasse, há ainda um importante detalhe: seja qual for o tema estudado, o texto cascudiano prima por ser também literário. O escritor norte-rio-grandense desenvolveu ao longo de sua produtiva vida intelectual um estilo muito próprio, cujo ponto alto é justamente uma especial habilidade no trato com a linguagem, que resulta sempre em um texto sedutor, leve e singular, pontuado de imagens e de expressões poéticas que encantam o leitor e aliviam com muita sensibilidade a aridez da informação documental.

Não resisto e trago dois exemplos deliciosos de seu estilo. O primeiro, retirado de O tempo e eu (1968), em que faz o registro de sua formação intelectual. A propósito, Cascudo afirmou, ao terminar de escrever este livro, que havia entrado no passado “como quem dá um brusco mergulho com os pés amarrados de chumbo”, tal a profundidade das lembranças que alcançou. Como estas, que transcrevo:

Minha primeira professora foi Dona Totônia Cerqueira, magra, imperiosa, serena, voz seca, adivinhando métodos instrutivos, mas carinhosa e acolhedora de convívio. Aprendi com ela os fundamentos inabaláveis de tudo quanto sei. No fim do ano, amarrou-me uma fitinha azul no braço, declarando-me aprovado no curso adorável onde fui o único aluno. Todas as comendas e condecorações recebidas não tiveram a significação jubilosa daquela fitinha azul. Alguns dias andei com ela no braço, exibindo-a como um troféu. Minha primeira alegria pública. Jamais esqueci Dona Totônia. Na Faculdade de Direito, fui professor de uma sua bisneta. Olhava-a saudoso. Era uma flor daquela velha roseira que dissipara um pouco a espessura da minha doce e incomparável ignorância.

Meu pai não amava a minha instrução mulheril e, quando voltei do sertão, meteu-me no Colégio Diocesano Santo Antônio, para ter amigos-meninos. Mudando-nos para o Tirol, a vinda para o Colégio era difícil e longa. Ensino em domicílio. Pedro Alexandrino, com a literatura clássica de Portugal e Brasil1.

O seguinte exemplo contém o relato da prisão de André de Albuquerque, e se encontra em História do Rio Grande do Norte. Agora é o leitor que é conduzido em um mergulho através do tempo, ao encontro da história de seu Estado.

Na madrugada de 25 de Abril de 1817 José Peregrino regressa à Paraíba com sua tropa. Tudo está preparado para a restauração das Reais Bandeiras. André de Albuquerque está só. Nenhum dos seus seiscentos homens das Ordenanças. Nem um das centenas de escravos fiéis. Nenhum dos incontáveis parentes. Resta-lhe apenas o último, fiel, impassível, o Padre João Damasceno, ao seu lado. O sino da Matriz bate lentamente nove badaladas. É o sinal de mulher em parto, aviso combinado. Da casa do alfaiate Manuel da Costa Bandeira partem os homens, agitando armas, vivando El-Rei e dando morras à Liberdade, convencidos da incompatibilidade entre os dois símbolos. Antônio Germano voa do Quartel com a Companhia já agora monárquica. Sobem de roldão a escada deserta do Palácio, perto da Cadeia, na Rua Grande, sem um guarda. Invadem a sala. André de Albuquerque ergue-se da mesa, surpreendido. Há um rápido e confuso tumulto. Alguém atravessa-lhe a virilha com a espada. André segura a lâmina e fere dois dedos. Prendem o Padre Damasceno. André ferido, sem um penso, um auxílio, é empurrado para o Forte. Atiram-no no quarto escuro, salinha irrespirável e com trevas quase palpáveis. Sangrando, sedento, jogado nas pedras geladas, agoniza o dia e a noite inteira, abandonado. O mais rico homem da Capitania, novo, forte, solteiro, coronel de Ordenanças, fidalgo, pediu água. Negaram. Pede um travesseiro. Mandam uma pedra que é o travesseiro dos pedreiros livres e dos hereges2.

Como jornalista, Câmara Cascudo assinou diversas colunas, tais como “Acta Diurna”, “Ensaios Literários”, “Cartas do Rio”, “Notas de Histórias” e “Biblioteca”, que guardam ainda hoje comentários oportunos e lúcidas reflexões sobre os mais variados assuntos, e a respeito de importantes vultos da história nacional ou de personalidades ilustres apenas no sertão ou no seridó potiguar. Cascudo declarou algumas vezes que pelo menos duas pessoas teriam sido decisivas em sua formação intelectual: Henrique Castriciano e Mário de Andrade. Do primeiro, recebeu a orientação de leituras, a experiência de viagens, o respeito pela sabedoria popular e ensinamentos preciosos sobre as qualidades do pesquisador, que se resumiriam, segundo ele, em seriedade, humildade e muita introspecção. Do segundo, além do reforço de tais princípios, recebeu o incentivo para realizar pesquisas etnográficas e folclóricas, e a necessária apresentação em alguns círculos intelectuais do sul do país. Talvez tenha sido a amizade com Mário de Andrade que possibilitou ao escritor norte-rio-grandense articular com êxito as propostas de uma cultura regional (que tinha em Recife seu mais conhecido pólo de difusão) com uma visão universalizante, e que o alçou a esferas nacionais e estrangeiras.

Também no campo cultural, enquanto incentivador e divulgador da literatura local, Cascudo foi de fundamental importância. Patrocinou inúmeros eventos de âmbito regional e nacional, como os famosos congressos de escritores e sobre o folclore, das décadas de 40 e de 50, que agitaram a pacata capital do Rio Grande do Norte. Voluntariamente homem de província e profundamente dedicado aos livros, Câmara Cascudo entretanto não se isolou. Ao contrário, realizou diversas viagens de estudos à Europa, à África e a países da América Latina, e muitas pelo Brasil, para reunir livros, recolher experiências, estabelecer contatos. Manteve durante toda a vida intensa correspondência com nomes de expressão nacional, como Mário de Andrade, Joaquim Inojosa, Carlos Drummond, Gilberto Freyre e Manuel Bandeira, entre outros, que, em sua grande maioria, permanece zelosamente guardada em seu Memorial, em Natal, junto à rica biblioteca e aos milhares de documentos, prefácios, recortes de jornais, conferências, fotos e anotações de pesquisas, à espera de pesquisadores.

Dicionário Crítico Câmara Cascudo, organizado por Marcos Silva, chega em excelente momento para nos fazer retomar a obra cascudiana. O livro pretende — e realiza com muita competência — dar conta da hercúlea tarefa de organizar as dezenas de títulos do escritor em verbetes que, em sua grande maioria, ultrapassam o mero estatuto de verbetes e se convertem em ensaios enxutos, que apresentam e analisam cada livro.

Para participar de empreitada tão complexa foram convidados diferentes especialistas, professores e pesquisadores, tais como Beth Brait, Cláudio Augusto Pinto Galvão, Deífilo Gurgel, Diva Cunha, Franco Jasiello, Lourival Holanda, Maria Leda Lins Guimarães, Marlyse Meyer, Martha Abreu, Moacyr de Góes, Nássaro Nasser, Nelly Novaes Coelho, Tarcisio Gurgel e Telê Ancona Lopez, entre muitos outros. São noventa e um autores, e são vinte e cinco as instituições que aí estão representadas. A multiplicidade interpretativa destas vozes e destes olhares pode ser também considerada o ponto alto do Dicionário, que, no entanto, se irmanam na admiração e na competência ao sintetizar o mundo intelectual de Cascudo.

E mesmo os leitores mais familiarizados com o projeto cascudiano devem surpreender-se com o resultado, pois é realmente espantosa a reunião de tantos livros, brochuras e plaquetes, tornados clássicos do pensamento brasileiro. A cada página – a cada verbete – nos deparamos com preciosidades como Vaqueiros e cantadores (1933) e Viajando o sertão (1934), primorosos estudos etnográficos, que nos são apresentados com sensibilidade por Ivone Cordeiro Barbosa e José Maria de Oliveira Silva. Ou Canto de muro (1959), um bem humorado romance de costumes em que os personagens são os insetos, as aves e os répteis, habitantes de um pedaço de muro abandonado. O estudo de Telê Ancona valoriza os aspectos inovadores do texto cascudiano, destacando a intertextualidade presente em sua estrutura que alia, por exemplo, com surpreendente habilidade, a ficção com a zoologia, a botânica, a história a mitologia, a geografia, entre outros. Ou Cinco livros do povo (1953), Contos tradicionais do Brasil (1946), Flor de romances trágicos (1966) e o Dicionário do folclore brasileiro (1954), que justificam plenamente o reconhecimento, que extrapola as fronteiras nacionais, de Cascudo como figura de vanguarda da folclorística e dos estudos de cultura popular.

No caso do Dicionário do folclore brasileiro, por exemplo, uma de suas obras mais divulgadas e conhecidas, Martha Abreu, autora do verbete, considera o livro uma verdadeira “síntese do vasto trabalho de Cascudo”. Ao destacar a grande variedade de temas ligados a festas, músicas, lendas, mitos, superstições, costumes, gestos, indumentária, bebidas e comidas, entre muitos outros, que aí estão incluídos, ela concorda que tal obra merecia ter sido mesmo transformada em enciclopédia, como, aliás, Cascudo chegou a cogitar. O mérito maior do trabalho seria ainda, a seu ver, as fontes de informação que acompanham cada verbete e permitem ao pesquisador realizar sua própria investigação. A autora do verbete, com perspicácia, observa que a realização de tal obra, no momento em que tomava corpo um Movimento Folclórico Brasileiro, reunindo nossos melhores intelectuais na defesa do folclore nacional, em plena década de 50, teria representado um impulso para o movimento e para a valorização do tema.

Há ainda alentados estudos sobre a História da alimentação no Brasil, A cozinha africana no Brasil e Dante Alighieri e a tradição popular no Brasil, dentre outros títulos, exemplares não apenas da erudição e da estatura intelectual do autor, como da perspectiva histórico-etnográfica comum na época, e da qual ele foi um mestre. Predomina em muitos estudos um certo cuidado em chamar a atenção do leitor para a eterna demanda cascudiana de tentar reunir em um único texto o popular e o erudito.

Ao lado de títulos tão conhecidos, como os citados, somos surpreendidos também com alguns de menor circulação, mas não menos interessantes, e que estão abordados com a mesma densidade e pertinência, como O Marquez de Olinda e o seu tempo (1930), O folclore nos autos camonianos (1950), Made in ÁfricaPesquisas e notas (1963), Prelúdio da Cachaça: Etnologia, História e Sociologia da aguardente no Brasil (1968), Mouros, franceses e judeus. Três presenças no Brasil (1984), entre outros, muitos outros.

A organização de um trabalho tão significativo como a deste Dicionário Crítico Câmara Cascudo coube a Marcos Silva, um natalense radicado em São Paulo e Professor de História da USP, cujo olhar competente e muito perspicaz garantiu a edição primorosa, o cuidado gráfico e a seriedade do material coletado. Em sua “Nota Preliminar” o organizador aponta para várias questões muito pertinentes, como as opções políticas do intelectual estudado, muitas vezes marcadas por um recorte conservador, observando, entretanto, que elas não foram determinantes nem limitaram seu diálogo e intercâmbio com outros expoentes nacionais de diferentes tendências políticas. Segundo Marcos Silva,

Sem pretender transformar o autor norte-rio-grandense em suposto “precursor” de ninguém, e preservando diferenças teóricas e políticas, é importante, todavia, identificar suas sintonias e os confrontos com essas tendências do debate sobre sociabilidades e culturas, que incluem outros clássicos brasileiros, como os referidos Freyre, Andrade e Buarque de Hollanda.

Dicionário Crítico Câmara Cascudo, não tenho dúvida, vai cumprir um papel importante de texto introdutório junto às novas gerações, que pouco conhecem da obra deste grande e agudo intérprete da diversidade cultural brasileira. E, para os admiradores de Cascudo, com certeza será importante fonte de consulta e de rememoração.

Notas

1Câmara Cascudo, O tempo e eu, Natal, Imprensa Universitária da UFRN, 1968, p. 44-5.

2 Câmara Cascudo, História do Rio Grande do Norte, 2ª edição, Rio de Janeiro, MEC, p. 139.


Resenhista

Constância Lima Duarte – Professora Doutora em Literatura Brasileira pela UFMG.


Referências desta Resenha

SILVA, Marcos. (Org.). Dicionário Crítico Câmara Cascudo. São Paulo: Perspectiva; FFLCHUSP; FAPESP. Natal: EDUFRN; Fundação José Augusto, 2003. Resenha de: DUARTE, Constância Lima. Uma homenagem mais que merecida. Tempo. Niterói, v.10, n.20, 2006. Acessar publicação original [DR]

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