Ditaduras na América Latina do século XX: debates e balanços historiográficos | Revista Eletrônica da ANPHLAC | 2015

O ciclo de ditaduras da América Latina dos anos 1960 a 1990 vem sendo rememorado em “datas convocantes”, como os 50 anos do golpe no Brasil, em 2014, os 40 anos do golpe no Uruguai e no Chile, em 2013, e, no ano que vem, 2016, também na Argentina, suscitando-se reflexões, novas abordagens e balanços historiográficos. O dossiê “Ditaduras na América Latina do século XX: debates e balanços historiográficos” propôs abrir um espaço para discussões acerca dos regimes autoritários e recebeu contribuições de variadas origens – Brasil, Chile, Argentina e Uruguai. Embora a variedade temática esteja longe de cobrir o conjunto da profícua e extensa produção recente sobre os regimes autoritários da América Latina, esse dossiê oferece uma multiplicidade considerável de objetos e perspectivas, como historiografia, história das ideias, gênero, cotidiano, memória, imprensa, literatura, cinema e movimentos sociais, assim como devemos destacar a presença de jovens pesquisadores dentre os autores.

Abrindo o dossiê, o texto de Javiera Libertad Robles, intitulado “’Las Rodriguistas’. La mujer militantes en la prensa del Frente Patriótico Manuel Roríguez (1983-1988)”, discute a presença de mulheres militantes no braço armado do Partido Comunista do Chile. O estudo é feito por meio da revista El Rodriguista, principal veículo de comunicação do grupo, a partir do qual Robles analisa a visibilidade da participação feminina na organização.

O debate historiográfico, lugar tão caro a nosso ofício, está contemplado em dois artigos. Paulo Alves Pereira Júnior realiza um estudo sobre a ausência, ou minimização da presença, dos setores populares na historiografia sobre o regime autoritário no Paraguai. Em “Política, silenciamento e representações: os setores populares na historiografia sobre o regime stronista” são abordadas três gerações da produção historiográfica: aquela construída durante a ditadura de Stroessner, a do período da democratização e a da fase de reafirmação da democracia. Outro balanço dessa natureza, desta vez tendo como foco o Brasil em comparação com os vizinhos do Cone Sul, pode ser encontrado no artigo “Os Regimes Militares no Brasil e na América do Sul – Historiografia e Perspectivas”. Nesta análise que percorre diversos enfoques, temas e períodos da produção acadêmica sobre as ditaduras, Ozias Paese Neves e Vinícius Liebel transitam por debates historiográficos múltiplos e uma miríade de autores, fornecendo um amplo panorama da produção das últimas décadas nos planos nacional e regional.

No âmbito das circulações, temos três artigos com temas bastante diferenciados entre si. As relações entre os países da América Latina e o lugar do exílio, um tema fundamental para a região, pode ser visto no artigo “A trajetória de Francisco Julião no exílio e as relações entre Brasil e México, 1965-1969”, de Pablo Porfírio. Reconhecida liderança política nas Ligas Camponesas, Julião partiu para o exílio em 1965 de onde retornou apenas em 1979. Durante o período em que viveu no México, conforme demonstra o autor, o ex-deputado socialista teve seus passos acompanhados de perto pela ditadura brasileira, que contou com a ajuda do governo mexicano. O artigo nos permite então conhecer a ação repressiva da ditadura brasileira além de suas fronteiras, com a vigilância sobre seus oponentes políticos, e também a parceria com um governo que, ao mesmo tempo que recebe exilados, auxilia os governos que os expulsaram e também pratica atos violentos contra a esquerda do próprio país. Sérgio Salinas, no artigo “Brasileiros e ciências sociais no Chile da Unidade Popular”, aborda os anos que antecederam o golpe de 1973, ocupando-se da influência de reconhecidos intelectuais brasileiros de esquerda para a expansão da área das Ciências Sociais chilenas, notadamente no campo da teoria da dependência. Em “Freiras em movimentos de resistência às ditaduras militares na América Latina”, Caroline Cubas discute a ainda pouco conhecida participação de freiras em movimentos de resistência ou de oposição às ditaduras militares do Cone Sul, com destaque para a atuação de duas religiosas francesas, Alice Domon e Léonie Duquet, assassinadas pela ditadura argentina em 1977.

A imprensa e a propaganda têm ocupado um papel de destaque nos estudos sobre as ditaduras na América Latina. Dois artigos propõem um olhar diferenciado sobre temas já clássicos. A ditadura uruguaia é revisitada em “Cotidianidad y proyecto político. Una perspectiva de estudio de la modernidad en la dictadura uruguaya. 1973-1984”, texto no qual Gerardo Albistur reflete sobre o esforço de instauração de uma nova cultura política por meio do uso da propaganda, dirigida ao cidadão comum por meio da imprensa, cartazes e slogans. A atuação da grande imprensa durante o golpe e a consolidação dos governos autoritários têm sido alvo de denúncias, investigações e pesquisas acadêmicas nos países do Cone Sul. No artigo intitulado “Grande Imprensa e Ideologia da Solução Autoritária: Uma Visão Argentina do Golpe de 1964 no Brasil pelos Olhos do Clarín”, Helder Gordim da Silveira busca analisar como o diário argentino Clarín abordou o golpe civil-militar brasileiro e fomentou, mediante suas publicações, uma ideologia de solução autoritária – como identifica o autor – para a crise política e institucional da região.

A busca pela justiça, memória e reparação relativa aos crimes de violações dos direitos humanos ocorridos durante as ditaduras tem sido um item fundamental na agenda dos movimentos sociais, vítimas e familiares. O artigo de Marta Rovai, intitulado “A ‘memória herdada’: as comissões da verdade e os ‘escrachos’ promovidos pela juventude em países da América Latina, como Argentina, Chile e Brasil”, traz uma dimensão comparativa das ações da justiça de transição no Cone Sul. Nesse sentido, compara a criação das Comissões da Verdade e a forma como parcelas da juventude desses países se organizam em atos de justiça simbólica por meio da prática dos “escrachos” aos envolvidos em violações dos direitos humanos. Por sua vez, Marcos Tolentino e Pâmela Resende buscam desconstruir duas noções largamente difundidas pela historiografia e pelo senso comum: a Argentina, como “país saturado de memória”, e o Brasil, como o “país do esquecimento”. Em “As ditaduras civis-militares e os dilemas entre lembrar e esquecer: a representação dual entre Brasil e Argentina”, os autores abordam tanto os esquecimentos construídos em torno da memória da ditadura argentina quanto os esforços da sociedade brasileira em rememorar seu passado autoritário para não repeti-lo.

As artes em geral têm exercido um papel fundamental na construção da memória dos anos ditatoriais e representam também as disputas sobre nossa história recente. E é sobre essas memórias em conflitos que o artigo “Reflexões epistemológicas sobre uma relação: o cinema argentino & as memórias da ditadura militar”, de Salatiel Gomes, procura tratar. Nesse sentido, o autor discute não apenas os conceitos de memória da ditadura, denominada pelos militares de Processo de Reorganização Nacional, mas também se dedica a analisar a linguagem cinematográfica do reconhecido cinema argentino.

Por fim, nosso dossiê completa-se com a resenha do livro de Enrique Adriotti Romanin, Memorias en conflicto: El movimiento de Derechos Humanos y la construcción del Juicio por la Verdad de Mar del Plata. Marina Rocha discute os conceitos manejados pela obra e o complexo contexto dos Julgamentos pela Verdade, engenhoso instrumento das organizações de direitos humanos, para contornar a impunidade, ampliando espaços em sua luta pela memória.

Esperamos que esse conjunto de textos sirva como fonte de reflexões e debates que inspirem outros trabalhos, seja com novas abordagens para velhos problemas, seja com temas ainda pouco explorados. Mas que também possam contribuir para a construção de um mundo mais democrático e pacífico. Nunca é demais lembrar que os estudos sobre o autoritarismo têm por horizonte a superação da violência como ferramenta de exercício da política. Boa leitura!


Organizadores

Mariana Joffily – Professora do Departamento de História da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC). E-mail: [email protected].

Samantha Viz Quadrat – Professora do Departamento de História da Universidade Federal Fluminense (UFF). E-mail: [email protected]


Referências desta apresentação

JOFFILY, Mariana; QUADRAT Samantha Viz. Apresentação. Revista Eletrônica da ANPHLAC, n. 18, p. 1-4, jan./jun. 2015. Acessar publicação original [DR]

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