Encontros e desencontros de lá e de cá do Atlântico: mulheres Africanas e Afro-brasileiras em perspectiva de gênero / Patrícia G. Gomes e Claudio A. Furtado

GOMES Patricia Godinho Mulheres africanas
Patrícia Godinho Gomes / Foto: Elaine Schmitt – UFSC Notícias /

GOMES P e FURTADO C Encontros e desencontros de la e de ca do Atlantico Mulheres africanasEm um breve ensaio na introdução é apresentada a ideia de modernidade, acentuada no desenvolvimento do capitalismo e na industrialização. Esta faz com que transformações socioculturais e de categorias como as de gênero e raça derivem de fundamentos sociais euro-peus, influenciando em desigualdades e estratificações sociais. Destaca-se uma cronologia dos estudos e temas publicados sobre mulheres e relações de gênero, representando seus impasses, como a predominância de textos escritos por homens e a partir de seus olhares, mas também o crescimento significativo da produção literária sobre mulheres africanas e a partir de suas perspectivas. Quanto ao Brasil, mostra-se dados em relação ao período da escravidão e o peso da visão machista e eurocêntrica sobre eles, como o ideal do colonizador sobre o colonizado. Por isso, a importância de uma literatura produzida sobre as lutas das mulheres negras no Bra-sil, fazendo com que conceitos de raça e gênero sejam considerados intrínsecos, “insepará-veis”.

No primeiro capítulo, “De emancipadas a invisíveis: as mulheres guineenses na produ-ção intelectual do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas”, a autora Patrícia Godinho Go-mes apresenta um breve excursus teórico de Houtondji e Oyèwùmi e a questão dos estudos sobre mulheres e gênero, no qual destaca a origem da produção deste conhecimento e seus principais destinatários. No processo de independência de Guiné-Bissau, em 1973, a partici-pação das mulheres constituiu-se em um elemento-chave para seu desenvolvimento do pro-cesso, tanto externo como interno. Porém, a importância das mesmas é inviabilizada nos dis-cursos, como discutido no diálogo apresentado entre dois intelectuais guineenses- Carlos Lo-pes e Diana Lima Handem, que debatem temas como patriarcado, subalternização e relações de gênero e mercado de trabalho. É abordada a ausência de mulheres na produção intelectual do INEP, juntamente com a de temas sobre as mesmas, dando destaque às atitudes de alguns órgãos como A União Democrática das Mulheres Guineenses (Udemu) em relação a isto.

No segundo texto, ainda sobre o tema, chamado “Vozes femininas nas esferas de deci-são na Guiné-Bissau”, é discutido como foi a participação feminina no processo de indepen-dência, e após este período, o não cumprimento de promessas em relação a seu estatuto, Lore-na de Lima Marques discute a vulnerabilidade social e econômica pós a abertura política, os conflitos políticos-militares e o aumento do protagonism masculino. Por outro lado, são apre-sentadas inúmeras organizações feministas fundadas nas últimas décadas, que visam tanto o debate público e político, como a igualdade jurídica entre homens e mulheres.

No próximo capítulo “Mobilidades e gênero: deslocamentos e fronteiras na rabidância em Cabo Verde”, a autora Eufêmia Vicente Rocha apresenta situações cotidianas da vida de Keuma, uma mulher nascida em Cabo Verde que protagonizou uma série de restrições de gê-nero impostas pela sociedade local. No entanto, quando passou a dedicar-se à rabidância (prá-tica de vendas de alimentos em mercados informais), se fez contrária a essas práticas, muitas vezes impostas até pelo seu companheiro, que a proibia de trabalhar. Por meio desta forma de trabalho, Keuma melhora nível econômico e social, bem como sua própria de gênero, obtendo certas condições que antes lhe eram negadas. Além disto, Rocha destaca uma união das mu-lheres em forma de cooperação em Portugal, já estabelecidas em Lisboa e no mercado infor-mal, que auxiliam Keuma em uma de suas passagens pelo país.

Em “Entre religião e poligamia: uma leitura a partir do romance Une si longue lettre de Mariama Bâ”, de Fatime Samb, discute-se, através de uma análise literária de Mariama Bâ, as diferentes formas de opressão sofridas por mulheres senegalesas pós-independência. Como denúncia a isso, por meio das personagens centrais Ramatoulaye e Aissatou, duas viúvas, a autora demonstra que certas situações como a poligamia são práticas subjugantes, muitas ve-zes legitimados pela religião islâmica, que inferiorizam as mulheres muçulmanas. Samb des-taca o quão importante é o gênero literário como forma de manifestação e informação para outras mulheres que passam por condições similares e podem se inspirar nas reações ali apre-sentadas. Também é avaliado o desenvolvimento das teorias feministas a partir 379 da ruptura colonial dos anos de 1970, que mesmo sofrendo resistências baseadas na tradição, se mostra-ram eficazes, como o direito ao voto feminino e a melhores condições de vida para a mulher.

No quarto capítulo, em “Quem é prostituta?: uma análise sobre a concepção de prosti-tuição empregada pela Operação Produção no Moçambique pós-independente”, Cristina Soa-res de Santana avalia o desenvolvimento da Operação Produção, que desde 1974 é apresenta-da como medida político-administrativa pela Frente de Libertação de Moçambique. Com o objetivo de se opor aos ideais coloniais, uma nova ideia de sociedade é formada no contexto pós-independência, diferenciando os cidadãos entre “certos” e “errados” através de políticas ideológicas. Como exemplo do que deveria ser excluído na sociedade, as prostitutas foram destacadas como o contra-exemplo do modelo ideal revolucionário feminino, que mesmo in-dicada por certa emancipação, contava com limites e controle rígido sobre seu próprio corpo. O papel dos veículos de imprensa é destacado como fundamental neste processo, visto que esses possuem influência e mediação entre os órgãos responsáveis e a população urbana, que se vê em maior parte ameaçada pelo êxodo rural de setores indesejáveis.

Em “Gêneros, feminismos e culturas africanas: repensando os estudos africanos a par-tir da universidade”, a autora M. Soledad Vieitez-Cerdeño apresenta uma definição do concei-to de desenvolvimento e a sua relação com a equidade de gênero na África do Sul do Saara, ligando-se também com conceitos como cultura e economia. Expõe alguns questionamentos buscando uma melhor contextualização do tema no território acadêmico africano através de uma bibliografia pertinente e numerosa, que também acaba por relatar a importância dos pró-prios protagonistas africanos nestes estudos, que paradoxalmente, no caso feminino, foram marginalizadas depois de discursos que visavam “incluí-las” no sistema econômico e político, entre os anos de 1950 a 1970. Há uma abordagem do que pode ser considerado equidade de gênero na África e de como a pesquisa e a profissionalização da juventude influenciam neste processo, como o citado trabalho da autora realizado no grupo Africaines (SEJ-491). Portanto, formas de aplicar este conhecimento são expostas, assim como os estudos, instituições e re-cursos sobre mulheres e gênero, demonstrando também de qual modo estes influenciam em um ideal contrário às interpretações ocidentais na África.

Quanto a “Construção, subjetividades e inclusão social em contextos de marginalida-de: a irmandade de Boa Morte de São Gonçalo dos Campos”, Luciana Falcão Lessa expõe sua pesquisa em relação 380 à irmandade de Boa Morte, realizada por meio de fontes, principal-mente orais, para recriar o cotidiano dessas mulheres e como elas se viam e eram vistas. Lessa detalha características do município de São Gonçalo dos Campos no século XIX e XX, desta-cando aspectos econômicos e culturais de como a irmandade surgiu, características comuns às suas participantes, trajes e suas líderes. Ao aprofundar sobre as irmãs da Boa Morte, apresenta entrevistas de moradores do século XXI, retratando o modo como eram discriminadas e es-tigmatizadas, assim como na literatura, como a exemplo do romance de Ruy Santos, ou até mesmo pela imprensa, no citado jornal “A Razão”. Este veículo de imprensa, ao apresentá-las como “raparigas”, demonstrava o ideal feminino na época e de como aspectos como o matri-mônio e a condição social fizeram com que as próprias irmãs o internalizassem. A autora des-taca dois pontos fundamentais: o processo de organização familiar das mulheres afrodescen-dentes, não discutido nos estudos clássicos tendo como base em sua complexidade; e a inter-nalização e reprodução da subalternidade e inferioridade, relacionados diretamente com a colonização e o racismo, analisados por estudiosos como Albert Memmi e Frantz Fannon.

Beatriz Giugliani, em “O abandono escolar dos rapazes negros no ensino médio na Bahia: um caso de estudo – racismo, questões de gênero e políticas públicas”, apresenta sua pesquisa de doutorado na UFBA, realizada com estudantes do Ensino Médio da cidade de São Félix, no Recôncavo baiano. Trata-se de um trabalho de base etnográfica, no qual se busca conhecer como esses jovens atribuem sentido às masculinidades e às feminilidades e os moti-vos para seu abandono escolar. Dessa forma, um contexto histórico desde a redemocratização é apresentado, juntamente com o surgimento de movimentos identitários, como o Movimento Negro, e o aumento das políticas públicas. Apesar desse processo de expansão da escola pú-blica no século XX, a autora destaca que a desigualdade racial no âmbito estudantil ainda per-siste, demonstrada via dados de estudiosos sobre o tema, em relação às três correntes criadas a fim de se interpretar as desigualdades raciais e o racismo no Brasil, tendo como seus represen-tantes, Gilberto Freyre, Florestan Fernandes e Carlos Hasenbalg. São apresentadas entrevistas realizadas com os estudantes, que abordam tanto experiências pessoais como críticas ao ambi-ente estudantil e aos professores. Também há um enfoque na temática da Identidade Negra, a fim de se questionar a forma com que esses jovens tendem a visualizar aspectos do seu cotidi-ano, como cidadão negro brasileiro.

Durante a metade do século XX ocorreu uma alteração no con- 381 texto brasileiro quanto ao sindicalismo, que passou de características tradicionais para o chamado “novo sin-dicalismo”, que tinha como foco a agricultura familiar; questões sociais; e desafios ambientais como novos focos de discussões. Junto a isso, neste capítulo chamado: “Mulheres que que-bram coco: organização política e redes de sociabilidade no Maranhão”, a autora Viviane de Oliveira Barbosa trata da questão das quebradeiras de coco babaçu no Maranhão, que se uni ram contrárias às restrições e imposições de fazendeiros, impedindo a derrubada de palmeiras de babaçu. No decorrer do texto importantes fatores para a sociabilidade dessas mulheres são apresentados, como seu próprio movimento (MIQCB); a influência da “Teoria da Libertação”, proposta pela Igreja Católica; associações como o Assema; setores partidários e alguns inte-lectuais. Além disso, na década de 1990 houve uma crescente onda de organizações femininas que, como as quebradeiras de coco maranhenses, adquiriram um empoderamento e uma iden-tidade própria, fortalecidas pelo conhecimento de leis e do direito.

No texto “Hoje, as meninas de hoje que vivem na prostituição, ela anarquiza o meu passado”: perspectivas intergeracionais das mulheres inseridas na prostituição em São Luís, Maranhão”, apresenta- -se os resultados da pesquisa sobre prostituição feminina nas áreas centrais de São Luís. É descrito o universo da prostituição feminina na região, composto por mulheres pobres, de baixa escolaridade e de maioria negras, e o cotidiano de marginalização e violência por elas vivido. Iniciado no século XX, as formas de prostituição nessas áreas foram se modificando ao longo do tempo, juntamente com o zoneamento das prostitutas em locais específicos, tendo em vista a segregação e a organização urbana. Com isso, através da análise do discurso de mulheres que frequentaram e frequentam esses locais, a autora Tatiana Raquel Reis da Silva observa um passado rememorado de forma nostálgica, apresentado em contra-posição com o atual cenário, visto com ainda mais problemas devido a venda e uso de drogas, por exemplo. Além disso, em questão à violência masculina, há a amostra de importantes ins-tituições que visam a proteção das mulheres, como a Associação de Profissionais do Sexo do Maranhão (Aprosma), criada em 2003, em parceria com a Delegacia da Mulher. Em relação às outras questões, como as legislativas, se é discutido o projeto de Lei que visa a regulamen-tação da prostituição feminina como profissão, seus conflitos e desenvolvimentos. Por fim, em “Virando a língua lá e cá: mulheres africanas ao sul do Saara e mulheres negras brasileiras em nossas produções, trocas possíveis” Vilma Reis, através da expressão “virar a língua”, co- 382 nhecida no contexto das casas de candomblés da Bahia e em outros locais de resistência negra, apresenta a necessidade do exercício de tradução e partilha de li-vros de escritoras da África negra no Brasil, pouco divulgados. Reis discute a importância de propagar para as novas gerações de militantes e ativistas pensamentos de mulheres como o da caboverdiana, ativista e dirigente política em Guiné-Bissau e Cabo Verde Paula Fortes; Win-nie Mandela, uma das lideranças da luta pela libertação da África do Sul contra o apartheid; e Graça Machel, militante da luta pela independência em Moçambique. Apresenta como refe rência mulheres negras que dissertam sobre o feminismo negro na literatura brasileira como Carolina Maria de Jesus, tratando de um Brasil negro-mulher com sua obra; Beatriz Nasci-mento, responsável pela criação de diversos militantes e movimentos políticos, inclusive, pela reescrita da história dos negros durante a metade do século XX; e Leila Gonzalez, filósofa e antropóloga; que contribuiu, entre outros aspectos, para o restabelecimento de uma ponte com o continente africano. Também é realçada militância negra brasileira e suas lideranças políti-cas dentro e fora do país no final do século XX. Como menciona a autora, […] foi construída a nossa resistência contemporânea nas quadras de blocos afro, com as canções que contavam para todas nós as lutas na África do Sul, em Namíbia, em Moçambique, Angola […] como se estivéssemos lá […] (REIS 2017, p. 280), restabelecendo vínculos e compartilhando experiên-cias comuns, gerando discussões, pautas e cooperações, “de lá e de cá do Atlântico”.

Em linhas gerais, este livro apresenta uma linguagem de fácil acesso às pessoas, es-tando elas dentro da academia ou não, sobre discussões de gênero em contextos brasileiros e africanos. Também apresenta um amplo quadro em relação às lutas de emancipação femininas afro-brasileiras e africanas, suas dificuldades, embates e resistências, possibilitando que o leitor conheça ou aprofunde suas percepções sobre a importância da equidade de gênero em diversos contextos brasileiros e africanos.

Notas

Resenha realizada para a disciplina de História da África II, sob a orientação da Profª Drª Lourdes M. G. C. Feitosa.

Larissa Aparecida Ramos – Graduanda de História da UNISAGRADO/Bauru-SP, Brasil. E-mail: [email protected].


GOMES, P.G.; FURTADO, C.V. Encontros e desencontros de lá e de cá do Atlântico: mulheres Africanas e Afro-brasileiras em perspectiva de gênero. Salvador: EDUFBA, 2017. Resenha de: RAMOS, Larissa Aparecida. Kwanissa – Revista de Estudos Africanos e Afro-Brasileiros, São Luís, v.3, n.6, p.291-296, jul./dez., 2020. Acessar publicação original. [IF].

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