Escravidão e família escrava na Zona da Mata Mineira oitocentista | Jonis Freire

A escravidão na América portuguesa e no Brasil Imperial é um dos temas mais instigantes da historiografia brasileira, em virtude de seu impacto na formação da sociedade contemporânea. Por volta dos anos 1980, a história social da escravidão trouxe considerável renovação para a historiografia sobre a escravidão brasileira. Ao empregar novas abordagens teórico-metodológicas e fontes documentais até então pouco exploradas, os estudiosos passaram a investigar de forma profícua as facetas da escravidão brasileira em suas diversas temporalidades e regiões. Além disso, a população cativa passou a ser encarada como sujeita de sua própria história. Escravidão e família escrava, resultado da tese de doutorado de Jonis Freire, defendida em 2009 na Unicamp, insere-se nessa tradição historiográfica.

A obra centra-se na atual cidade de Juiz de Fora, que, “no decorrer do século XIX, possuiu a maior população escrava da província, com uma economia baseada, principalmente, na plantation cafeeira” (p. 28). Os eixos temáticos tratam sobretudo da demografia e família cativas e dos padrões de manumissão das escravarias pertencentes a três grandes cafeicultores, Antônio Dias Tostes, Comendador Francisco de Paula Lima e Capitão Manoel Ignácio Barbosa Lage, no período que abrange as décadas de 1830 a 1880.

Dividido em quatro capítulos, o livro trata, no primeiro deles, da formação da Zona da Mata Mineira e, especialmente, de Juiz de Fora. Analisa, ainda, por meio dos inventários post mortem, a composição da riqueza dos chefes daquelas três famílias bem como o perfil demográfico de seus cativos. Jonis Freire mostra que tais senhores – grandes proprietários de terras, escravos e cafezais – eram típicos representantes da elite cafeeira, destacando-se na economia e na política local.

Os casais Dias Tostes, Paula Lima e Barbosa Lage acumularam fortuna sobretudo a partir da cafeicultura e de empréstimos de dinheiro a juros. Jonis Freire aponta que “todas as três famílias estudadas, em algum momento, fizeram uso das ligações matrimoniais com outras famílias da elite para aumentar não só o seu prestígio social, mas, acima de tudo, os seus cabedais econômicos, {..} bem como seu status político” (p. 62). A maior parte dos patrimônios estava alocada em cativos, imóveis rurais e urbanos e em dívidas ativas.

O perfil demográfico da mão de obra desses cafeicultores sofreu mudanças ao longo do Oitocentos, devido, principalmente, ao fim do tráfico atlântico de africanos em 1850. A posse de Antônio Dias Tostes, composta por 147 indivíduos – a maior escravaria, segundo a lista nominativa de 1831 -, era basicamente constituída por homens (70,8%), africanos (85,7%) e indivíduos jovens/adultos (71,4%), com idade entre 15 e 40 anos. Já em 1837, segundo a partilha de bens de sua esposa, Dona Anna Maria do Sacramento, a posse sofreu ligeiras oscilações: a despeito da expansão da escravaria (185 ao todo), as proporções de homens e jovens/adultos mantiveram-se praticamente inalteradas, ao passo que os africanos reduziram sua participação relativa a 76,6%. Embora o autor não explique, pode-se conjecturar que o término temporário do tráfico atlântico (1831-1835) teria causado essa redução.[1]

A posse do Comendador Francisco de Paula Lima, segundo o seu inventário (1866), composta de 204 cativos, tinha um perfil semelhante à de Tostes: os homens correspondiam a pouco menos de 70% e os jovens/adultos representavam dois terços da escravaria; em 1877, de acordo com o inventário de sua viúva, D. Francisca Benedicta de Miranda Lima, dos 130 escravos, 57% deles eram homens e 45,6% jovens/adultos. Por fim, a posse do Capitão Manoel Ignácio Barbosa Lage, no ano de seu falecimento (1868), tinha 118 cativos: 64,4% deles eram homens, 50% eram jovens/adultos e 20% haviam nascido na África.

De modo geral, os dados atinentes às posses desses casais devem ser inseridos em um quadro de análise mais amplo. Pode-se, assim, entrever dois períodos distintos. No primeiro, que corresponde à primeira metade do século XIX e no qual se enquadra a propriedade do casal Dias Tostes, a escravaria tende a ser composta sobretudo por homens, jovens/adultos e africanos. Nesse período, a oferta elástica de escravos africanos permitia aos senhores adquirir mão de obra relativamente barata, via tráfico atlântico, para manter e/ou ampliar suas posses. Após o término do tráfico, em 1850, inicia-se o segundo período, no qual as propriedades dos casais Paula Lima e Barbosa Lage estão incluídas: a partir desse momento, tem-se uma sociedade escravista madura, cuja população cativa tende ao equilíbrio sexual, à simetria entre crioulos e africanos, e verifica-se, ademais, o progressivo envelhecimento da mão de obra. Há ainda tendência à reprodução via crescimento vegetativo da escravaria.[2]

O segundo capítulo aborda as formas de reprodução da escravaria utilizadas pelas famílias da elite juiz-forana. O objetivo de Freire é determinar o seu impacto sobre a manutenção e/ou ampliação das posses cativas. Para tanto, procura cruzar quatro tipos de fontes: 1) Livros de Registro de Batismo; 2) Despacho de Escravos e Passaportes da Intendência de Polícia da Corte; 3) Inventários; 4) Livros de Notas e Escrituras Públicas.

Com base no exame minucioso das fontes, o autor assinala que os casais Dias Tostes e Paula Lima valeram-se, sobretudo, do tráfico atlântico e do tráfico interno para manter e/ou expandir suas escravarias. Os Barbosa Lage, por sua vez, teriam recorrido, primordialmente, à reprodução natural de seus cativos. Nesse sentido, “conclui-se que as duas opções para o aumento do número de cativos – reprodução natural e tráfico de escravos – parecem não ter sido excludentes na referida localidade, mas complementares” (p. 159). Embora a conclusão se alinhe às ilações de uma parte da historiografia, ele não pôde determinar o impacto efetivo de cada uma das formas de reprodução da escravaria naquelas propriedades rurais.

Sobre a análise dos registros de batismo e dos inventários, podem ser feitas duas considerações. Em primeiro lugar, Freire não pondera que o número relativamente pequeno de escravos levados ao batismo pelos casais Dias Tostes e Paula Lima pode indicar somente que eles teriam sido menos cuidadosos, em relação aos Barbosa Lage, em registrar em cartório os filhos de seus cativos. O que não significa afirmar que apenas os Barbosa Lage tenham sido favorecidos com a reprodução natural de seus escravos. Ademais, nem todos os inventários dos três casais foram investigados, o que não permitiu que se acompanhasse a evolução demográfica das escravarias no tempo. Do casal Dias Tostes, o autor examinou apenas a partilha de bens de D. Anna Maria (1837), além do domicílio do casal na lista nominativa (1831); o inventário de Antônio Dias Tostes não foi localizado. Do casal Paula Lima, ambos os inventários puderam ser consultados. E, do casal Barbosa Lage, somente o inventário do Capitão Barbosa Lage (1868) pôde ser examinado; Freire não informa por qual razão não se analisou o inventário de sua esposa, D. Florisbella Francisca de Assis Barbosa Lage (1882). Vale notar que o objetivo do autor poderia vir a lume caso pudesse investigar os inventários dos herdeiros dos três casais, bem como a matrícula de escravos.

Jonis Freire dedica-se, ainda, à análise das relações familiares dos escravos. A investigação divide-se em duas partes: na primeira, estuda os laços familiares e o perfil desses cativos a partir da lista nominativa; num segundo momento, passa a tecer os enlaces matrimoniais das escravarias pertencentes às três famílias da elite juiz-forana.

No Distrito de Santo Antônio de Juiz de Fora, em 1831, cerca de 30% dos cativos adultos eram casados e/ou viúvos. O perfil dessa escravaria coaduna-se com o que a historiografia vem afirmando nas últimas décadas: a maioria dos indivíduos casados e/ou viúvos era oriunda da África e constituída sobretudo por mulheres jovens/adultas. Além disso, as médias (20 a 50 escravos) e as grandes (51 ou + escravos) posses permitiam aos escravos maiores possiblidades de encontrar um parceiro: “quanto maior o número de cativos num determinado fogo, maior o percentual de homens e mulheres casados” (p. 177).

Valendo-se do método de “ligação nominativa de fontes”, técnica historiográfica que consiste em utilizar o nome de um sujeito como fio condutor na análise do processo social baseada em séries documentais distintas, Freire investiga os vínculos familiares das escravarias dos três casais. Na propriedade dos Dias Tostes, os dados levantados indicam pequenas oscilações nas taxas de matrimônio. Em 1831, “o número de escravos descritos como casados era de 20 (…). A maioria dos casados, homens ou mulheres, era africana, respectivamente 15 e 14; seguidos por 5 crioulos e 6 crioulas” (p. 183). Os números indicam, de forma clara, que, na verdade, a quantidade de escravos casados era de 40 (27,2% do total). Nota-se aí um ligeiro deslize do autor. Já em 1837, o percentual correlato reduziu-se a 25,7%. No caso dos Paula Lima (1866) e Barbosa Lage (1868) as proporções de casados eram maiores: na primeira, o índice igualou-se a 37,2% e, na segunda, a 30,5%.

Um dos gráficos elaborados pelo autor apresenta os vínculos familiares das escravarias dos três cafeicultores. Segundo o gráfico, 13,6% (na verdade, 27,2%, conforme apontei acima) dos escravos pertencentes aos Dias Tostes apresentavam algum tipo de vínculo familiar, em 1831. Na partilha de bens de D. Anna Maria (1837), o índice correlato igualou-se a 26,7%. Por seu turno, no inventário do Comendador Paula Lima (1866), a proporção atingiu a marca de 43,9% e, por fim, na propriedade do Capitão Barbosa Lage (1868), a percentagem era de 64,9%. A partir desses dados, o autor diz o seguinte:

“(…) podemos notar que ele {Gráfico 3} demonstra uma curva ascendente entre os anos de 1831 e 1868. Ao que parece, à medida que os anos se passaram, as possibilidades da existência de algum tipo de laço familiar aumentaram. Porém, talvez o que esse gráfico esteja refletindo seja as estratégias distintas dos ditos proprietários” (p. 190).

O autor levanta duas hipóteses para explicar a “curva ascendente” do percentual de vínculos familiares dos cativos no decurso do Oitocentos. Quanto à primeira, Freire parece estar correto, haja vista o que a historiografia sobre a família escrava vem demonstrando nos últimos decênios. A segunda, entretanto, carece de dados empíricos. Tal hipótese poderia ser elucidada caso o autor tivesse acompanhado a evolução demográfica das escravarias dos três casais no tempo. A análise dos vínculos familiares dos cativos arrolados nos inventários das viúvas de Paula Lima e Barbosa Lage, provavelmente, daria respaldo a sua hipótese.

Outro ponto abordado pelo autor se refere à estabilidade dos vínculos familiares. Freire analisou apenas a partilha de bens de D. Anna Maria (esposa de Dias Tostes), e os inventários do Comendador Paula Lima e do Capitão Barbosa Lage. Concluiu, assim, que todas as famílias existentes nas propriedades dos casais Dias Tostes e Barbosa Lage mantiveram-se unidas após a partilha; ao passo que, das famílias pertencentes ao casal Paula Lima, 69% delas permaneceram juntas. No entanto, o autor não atentou para o fato de que a partilha de bens, realizada nos inventários, não é a melhor forma de detectar se as famílias foram (ou não) preservadas. José F. Motta & Agnaldo Valentin demonstraram que

“(…) os eventuais esfacelamentos sofridos pelas famílias escravas, em alguns casos, poderiam assumir uma natureza meramente “ideal”, ou pouco mais que isso, havendo em seguida à partilha reajustamentos quase imediatos entre os herdeiros, no que tange à alocação dos cativos”.[3]

Para cotejar se a divisão em partilha foi mantida, seria necessário analisar, na ausência de uma fonte mais apropriada, os inventários dos herdeiros dessas famílias e/ou a matrícula de escravos. Desta forma, não se pode concluir, a partir dos casos elencados, se havia (ou não) estabilidade dos laços familiares após a morte dos senhores, embora a historiografia venha evidenciando que boa parte das famílias cativas permaneciam unidas, mesmo antes da Lei de 1869, que proibiu a separação entre casais cativos e entre pais e filhos menores.

A grande contribuição apresentada por Freire se refere especialmente ao exame das práticas de alforria das famílias da elite de Juiz de Fora. Pode-se entrever a novidade em virtude do método utilizado, que consistiu em levantar as alforrias a partir do cruzamento de inúmeras fontes (inventários, testamentos, alforrias em cartório e na pia batismal e prestação de contas testamentárias). O autor assinala que todos os membros das famílias Paula Lima, Dias Tostes e Barbosa Lage alforriaram, respectivamente, 44, 39 e 16 cativos. Cerca da metade das manumissões das duas primeiras famílias foram “concedidas” em testamentos. Os Barbosa Lage alforriaram seus escravos, com mais frequência, em inventários.

Nesse sentido, Freire conclui que:

“(…) apesar de toda a importância da manumissão cartorial, o registro não foi condição sine qua non para a liberdade. Outros documentos tiveram o mesmo peso legal (…). Além da legalidade de tais “ritos jurídicos”, o conhecimento público daquelas manumissões, em inventários, testamentos e na pia batismal, bastava para a confirmação do status de libertos que pensavam na mobilidade geográfica” (p. 312).

O autor evidencia, ademais, que, a despeito do pequeno número de casos investigados (19 proprietários ao todo), as taxas de alforria nas pequenas posses eram mais elevadas, do que nas médias e grandes. Duas hipóteses são colocadas em evidência para explicar esse fenômeno: 1) o relacionamento entre senhores e escravos era mais “próximo” nas pequenas posses, permitindo aos senhores manumitir mais escravos; 2) os pequenos proprietários eram mais vulneráveis que os grandes e, por isso, acabavam cedendo mais na “negociação” com seus escravos, abrindo brechas para que os cativos conquistassem a alforria.

Escravidão e família escrava é uma referência importante para os pesquisadores interessados em aprofundar o conhecimento sobre o escravismo no Brasil. O livro, que apresenta farto levantamento bibliográfico atinente às temáticas abordadas, permite ao leitor situar-se nos debates pelos quais a obra perpassa. Embora Jonis Freire não tenha contemplado de forma satisfatória algumas questões, a exemplo das formas predominantes de reprodução da escravaria, deve-se destacar que os pesquisadores tem à disposição um ótimo trabalho e, dessa forma, poderão esmiuçar os assuntos que não puderam ser examinados a fundo nessa obra.

Notas

1. VOYAGES DATABASE. The Trans-Atlantic Slaves Trade Database, 2009. Disponível em: http://www.slavevoyages.org . Acesso em: 12 jun. 2015.

2. SALLES, Ricardo. E o Vale era o escravo. Vassouras, século XIX. Senhores e escravos no coração do Império. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008.

3. MOTTA, José F.; VALENTIN, Agnaldo. A estabilidade das famílias em um plantel de escravos de Apiaí. Afro-Ásia (UFBA), Salvador, v. 27, p. 161-192, 2002. p. 186-187.

Breno Moreno – Universidade de São Paulo (USP).


FREIRE, Jonis. Escravidão e família escrava na Zona da Mata Mineira oitocentista. São Paulo: Alameda, 2014. Resenha de: MORENO, Breno. Família escrava e alforrias nas fazendas de café da elite de Juiz de Fora. Almanack, Guarulhos, n.11, p. 860-864, set./dez., 2015.

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