Escutas sensíveis, vozes potentes: diálogos com mulheres que nos transformam | Marta Gouveia de Oliveira Rovai

Lançado em 2021, pela Editora Cancioneiro, o livro Escutas sensíveis, vozes potentes: diálogo com mulheres que nos transformam, organizado pela historiadora e professora da Universidade Federa de Alfenas (Unifal), Marta Gouveia de Oliveira Rovai, se propõe a apresentar o diálogo entre saberes de inúmeras e diversas histórias de mulheres através do encontro entre a história acadêmica e a história fora dos muros da universidade. A obra conta com vinte e duas mulheres que compartilharam sua história de vida com trinta e oito pesquisadore (a)s que fazem uso da história oral e dos debates sobre memórias, gêneros e identidades, em um processo de escuta dialógica sobre as demandas inclusivas do tempo presente.

A obra de Rovai (2021) traz uma importante contribuição sobre a importância da ação dos pesquisadores quanto ao ato de ouvir e a reflexão sobre uma ética da escuta, envolvendo o respeito às narradoras, às suas memórias e expectativas, por meio de uma postura que envolve olhos, ouvidos e alma. A autora evidencia que o livro não fala de mulheres subalternas, mas subalternizadas, e que as escritas registradas na obra só foram possíveis devido ao processo dialógico, em que as mulheres desejaram ver suas histórias compartilhadas por ouvintes que ampliaram suas vozes.

Dessa forma, Rovai (2021) analisa a história oral como uma importante contribuição para abrir espaços para essas vozes subalternizadas, mas nunca silenciadas. Estão ali mulheres que sentem, selecionam e desejam, e o encontro com pesquisadore (a) s se realiza como prática e experiência interacional e provocativa. Isso representa aproximar a universidade das comunidades, por meio de uma história mais humana e que promova a intervenção social.

Assim, a autora propõe o trabalho de escuta como abertura ao encontro vivo, lidando com o imprevisível que pode incomodar, encantar e emocionar. Por esta razão, a história oral pode cumprir um processo importante como produção dialógica e como um trabalho que trata com fontes vivas, humanas, e que, portanto, devem ser entendidas como mais do que um objeto, mas como sujeitas que pensam, sentem, selecionam e interpretam sua própria existência. O diálogo em história oral pode se tornar assim, uma espécie de identificação ou de comunhão com a experiência alheia, cujas práticas pressupõem a escuta sensível.

Estão presentes nas narrativas questões como o capitalismo, o autoritarismo, a lgbtfobia, o patriarcado, a maternagem, o luto e o racismo. Cada capítulo apresentado tem sua particularidade, sua história e sua dinâmica, a partir da negociação de quem ouve em relação a quem concede, gentilmente, a sua voz. No caso, apresentam-se várias mulheres e maneiras pelas quais as memórias são disputadas e filtradas no plano individual e coletivo: mulheres de diferentes lugares, raças, ofícios, gerações, memórias e desejos; religiosas, trabalhadoras, donas de casa, intelectuais e militantes, mulheres que pensam e nos provocam a pensar sobre a importância política do fazer histórico; sobre uma ciência que não deve abrir mão de sua função sensibilizadora em tempos desumanizadores.

Quanto ao(à)s estudioso(a)s que elaboraram cada texto, são pesquisadoras e pesquisadores com formação em diversas áreas de conhecimento. Os lugares dos quais cada um(a) escreve também contemplam as diversas regiões do Brasil como o Norte, Nordeste, Centro-Oeste, Sul e Sudeste.

O livro foi dividido em quatro partes, cujos títulos são trechos emprestados da poesia e agrupados por suas histórias. Na parte 1, com o verso de Conceição Evaristo O anverso da mudez é a nudez do nosso gritante verso, o(a) leitor(a) tem acesso às narrativas de Lourdes, Kelvin, Joana e Rosa. São narrativas que ampliam a história dessas mulheres e suas memórias laborais, afetivas e militantes, pensando nos modos de existir contra hegemônicos: entre outras interseccionalidades, conhecemos histórias de mulheres que vivem a prostituição, a transexualidade, a guerrilha política e o encarceramento. A história oral e a história pública, por exemplo, possibilitaram ampliar a história de Lourdes em sua trajetória de puta, paraibana e militante. Não totalizando os sentidos das experiências das prostitutas, mas oferecendo possibilidades de compreensão das multiplicidades de experiências que envolvem as vidas de trabalhadoras sexuais.

Na parte 2, Eli Odara é a inspiração: sob o verso Trago a ancestralidade ecoando em meu avesso, em que se apresentam Carmem de Oxum, Keilah Maria, Maria Emerenciana e Jaqueline. São narrativas construídas com falas resistentes, de uma mãe de santo, uma quilombola, uma congadeira e uma indígena, que revelam questões de gênero e religião e suas intersecções com as relações raciais como efeito da estrutura patriarcal, além da importância da compreensão do lugar social de fala da “mulher periférica” na sociedade brasileira. Como exemplo, a narrativa de Keilah está alicerçada em um caminho contextualizado por experiências comuns vividas no quilombo de São Benedito, localizado na cidade de Manaus (AM). Seu lugar de fala é aquele que pertence às mulheres negras e quilombolas e sua narrativa é fruto de conhecimentos historicamente compartilhados.

Em seguida, na parte 3, Cecília Meireles é quem oferece a bela metáfora Por desfolhar-me é que não tenho fim para se referir a Maria Luíza, Olga, Elizandra, Dorotéia e Rosilene. São narrativas de mulheres trabalhadoras, fora e dentro de casa, que falam de sua relação com a natureza e com sua família, e que nos presenteiam com suas memórias e sonhos, a partir da sensibilidade, das causas e de suas atuações políticas e também na dimensão do privado, com experiências que valorizam quem elas são. A narrativa de Elizandra, como exemplo, evidencia as conquistas que a atuação política proporciona à mulher nas marchas organizadas pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), destacando a luta por igualdade de direitos e o reconhecimento do protagonismo feminino no processo da reforma agrária.

Na parte 4, Graça Graúna dá o título Irmãs de suor, papel e tinta ao conjunto de textos em que Vicentina, Paula, Bela Valsa e a Irmã Heloísa contam suas histórias. As narrativas apontam para experiências coletivas e a construção de redes de entrevistadas, a partir da história social da escola e das experiências com a educação como emancipação política e individual, do trabalho e da educação das classes populares no Brasil. Bela Valsa narra sua experiência com emoção e devoção, justificando a escolha por uma determinada profissão, e em poder ter algo de que pudesse se orgulhar no futuro, revelando sua paixão pelo ofício de ensinar, pela arte da dança e da vida.

Na quinta e última parte, Cora Coralina e seu verso E no canteiro materno de meu seio tranquilo dormirás foram usados para traduzir as histórias de Mônica, Josi, Solange, Roseli e Maria de Fátima. São narrativas que manifestam uma multiplicidade de vozes e experiências vinculadas a aspectos históricos e culturais, como a história de mães e de seus filhos, vítimas de violência de Estado e do estigma social, relacionadas às pessoas transgênero, à maternidade, à vulnerabilidade de jovens, ao encarceramento e ao feminicídio. São narrativas em que luto e luta se entrecruzam. A entrevista com Roseli, como exemplo, revela travessias e transformações pessoais e sociais com seu filho transgênero, manifestadas pela expressão dentro de uma concepção social do que é masculino e feminino.

Rovai (2021) também procura responder ao questionamento importante sobre os procedimentos éticos e pressupostos teóricos da história oral: como poderíamos pensar a ideia de devolução aos sujeitos e sujeitas reunido(a)s pelo diálogo e pela escrita? Para tanto, a autora afirma que a devolução está na arte do reconhecimento e na forma de agradecimento às mulheres e ao(às)s profissionais que tornaram este livro precioso registro de um conjunto de trabalhos vigorosos que precisa ser publicizado. A obra é uma reverência às mulheres que emprestaram suas vozes para denunciar, celebrar e compartilhar histórias que nos afetam como coletividade e que nos exigem ação.

A obra Escutas sensíveis, vozes potentes: diálogo com mulheres que nos transformam, cumpre bem a sua proposta: problematizar os encontros dialógicos promovidos pela história oral, que não se distanciam da análise cuidadosa por parte do(a) s pesquisadore(a)s e nem desconhecem as relações de poder e de privilégio que eles suscitam. No entanto, o que se quer valorizar é a dimensão da empatia e da potência gerada pelo ofício que pressupõe a escolha do diálogo com mulheres subalternizadas, mas não desempoderadas nem destituídas de voz.


Resenhista

Lívia Morais Garcia Lima – Doutora em Educação pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Professora do Programa de Pós-Graduação em Educação do Centro Universitário Salesiano de São Paulo (Unisal). E-mail: [email protected] ORCID iD 0000-0001-9962-7820


Referências desta Resenha

ROVAI, Marta Gouveia de Oliveira (Org.). Escutas sensíveis, vozes potentes: diálogos com mulheres que nos transformam. Teresina: Cancioneiro, 2021. Resenha de: LIMA, Lívia Morais Garcia. Escuta e Resistência: história de vida de mulheres e as demandas do tempo presente. História Oral, v. 24, n. 1, p. 363-366, jan./jun. 2021. Acessar publicação original [DR]

 

Deixe um Comentário

Você precisa fazer login para publicar um comentário.