Espaços da Recordação: formas e transformações da memória cultural | Aleida Assmann

Tópico

Esta resenha versa sobre o livro Espaços da Recordação: formas e transformações da memória cultural, de Aleida Assmann. Lançado em 2011 pela Editora Unicamp, o livro é resultado do trabalho de um grupo de tradutores liderados por Paul Soethe, da Universidade Federal do Paraná, da versão original alemã Erinnerungsräume: formen und wandlungen des Kulturellen Gedächtnisses, publicada em 2006 pela editora Verlag em Munique. A autora e seu companheiro, Jan Assmann, figuram entre os autores mais influentes das últimas décadas nos estudos da memória. Será de grande utilidade, contudo, para o leitor, perceber que o surgimento da memória cultural enquanto conceito está alinhado a uma crescente corrente de estudos transdisciplinares sobre a memória. Ainda que possam haver origens ainda mais remotas, como Aristóteles (SANTOS, 2013) e Platão (A. ASSMANN, 2011), Maurice Halbwachs e Aby Warburg são frequentemente referenciados para definir o momento em que a compreensão da memória humana incorpora o aspecto social e coletivo (J. ASSMANN, 1995). O termo memória cultural, entretanto, foi cunhado por Aleida Assmann e Jan Assmann para designar a memória que permanece viva em uma sociedade a longo prazo e distingue-se da memória comunicativa, que abrange um intervalo de três gerações, e da memória política, perpetuada por meio de instituições (J. ASSMANN, 2010).

Na primeira parte do livro, A. Assmann (2011) aborda a diferença da memória como arte (ars) e como potência (vis), originada na contraposição da mnemotécnica romana à concepção nietzscheana da memória como força imanente. Essa distinção se mostrará oportuna na leitura dos textos que se seguem. Ficará claro para o leitor que, não obstante as metamorfoses da memória cultural ao longo da história, essas duas facetas sempre estiveram presentes de modo a fornecer uma base para as análises da memória feitas pela autora. Destaca-se o fato de que tal diferenciação permite separar o processo de armazenamento do processo de recordação, duas vertentes extensamente exploradas pela autora e que se farão sempre presentes nos capítulos seguintes. Na sequência, A. Assmann apresenta seus apontamentos sobre a relação entre os conceitos de memória, fama e história. Especificamente aqueles que se relacionam à fama se mostrarão de grande valia para a compreensão das facetas da memória apresentadas no livro, uma vez que são também estas mudanças que impulsionaram os novos contextos da memória. Enquanto na Idade Média era malvista e a memória pertencia ao campo do divino, a mudança dos requisitos para a fama ao logo do tempo impulsionaram, por exemplo, o declínio da escrita enquanto mídia principal para o trabalho da memória. Ainda na dissertação sobre as funções da memória cultural, deve-se destacar a interessante reflexão de A. Assmann sobre o que denominou de caixas mnemônicas. A partir da diversidade de representações que assumem ao longo dos séculos – arca no século XII, uma caixinha de joias no século XIX e uma caixa abarrotada de livros no século XX – elas apontam para a problemática da seleção das memórias, esta sempre imbricado em questões como o valor do conteúdo e a capacidade de armazenamento disponível.

Na segunda parte do livro, intitulada Meios, A. Assmann começa por apresentar algumas das metáforas da memória. É válido ressaltar que, segundo Johnson e Lakoff (2003), a metáfora conceitual deve ser entendida não como um mero artifício da linguagem, mas sim como a maneira com a qual os indivíduos conceitualizam uma experiência a partir de outra. Sendo assim, deve-se ter em mente que elas estão além da distinção entre o domínio literal e figurativo (LAKOFF, 1993; CUENCA E HILFERTY, 1999; GIANNETTI, 1972), manifestando-se também tanto como orientadoras quanto como testemunhas de mudanças sociais e epistemológicas. A. Assmann defende que esses diferentes tipos de metáforas estão relacionados ao desenvolvimento tecnológico em perspectiva histórica, o que levou a um alargamento de possibilidades dos suportes de memória.

É deste tema que a autora se ocupa no restante da segunda parte do livro. Os debates sobre o tema, segundo A. Assmann, começam na época do Renascimento. Enquanto autores como Francis Bacon e John Milton advogam em prol dos textos literários, Robert Burton e Jonathan Swift apontam o declínio da escrita na era da imprensa. As críticas logo evoluem para o confronto entre escrita e imagem como meio principal da cultura de massa. Embora impulsionados por motivações políticas, estes discursos irão culminar na ressignificação da imagem enquanto suporte que fornece uma potência fiável da memória cultural, relação já observada por Cícero nas imagines agentes da mnemônica romana e desenvolvida extensamente por Aby Warbug a partir de sua crença na “força memorativa imanente das imagens” (A. ASSMANN, 2011, p. 243). A seguir, o corpo é trazido pela a autora para o debate enquanto suporte para uma memória presente e se estabelece como um paradoxo à recordação, servindo também de arcabouço para a reflexão sobre questões como o afeto e o trauma. Os locais também são evocados enquanto meios de “acesso” (A. ASSMANN, 2011, p. 24) à memória, uma vez que podem ser tanto locais onde a memória se manifesta quanto sujeitos da memória. É de se destacar a preocupação de A. Assmann em dedicar algumas páginas de seu livro aos lugares traumáticos, trazendo ao leitor uma análise de Auschwitz que dialoga com a problemática da musealização deste tipo de espaços. A memória do Holocausto é abordada pela autora em outros textos, como The Holocaust – a Global Memory? Extensions and Limits of a New Memory Community, publicado alguns anos depois.

Já encaminhando-se para o fim do livro, é dedicado um capítulo aos armazenadores da memória. Inspirando-se em Baudelaire, mas também em Walter Benjamin e Ilya Kabakow, A. Assmann argumenta que o arquivo pode ser tanto o lugar da memória materializado fora do sujeito, podendo apresentar-se em diversos formatos, quanto o repositório de lixo cultural de uma sociedade, onde estão não só os objetos que já não se usam, mas também as memórias que já não são funcionais. Segundo a autora, esse arquivo é massa criativa de artistas, filósofos e cientistas, que têm a função de tanto dar visibilidade às lacunas da memória no presente como à própria natureza humana da memória, ou seja, a de lembrar os indivíduos de que eles são dotados da capacidade de lembrar. Para defender sua ideia, a autora apresenta diversos casos no campo da arte contemporânea, nos quais é possível perceber que são objetos e memórias, transfigurados em símbolos e narrativas, que coexistem no espaço do arquivo onde a energia da memória cultural jaz silenciada na ausência. É interessante observar como, uma vez mais, a memória cultural do Holocausto encontra-se dentre os temas analisados. Enquanto o arquivo é representado por livros nas obras dos artistas Anselm Kiefer e Sigrid Sigurdsson, a autora dedica uma parte do capítulo a uma análise profunda da presença pela ausência da memória na obra de Christian Boltanski. Também um conjunto de fotos da israelita Naomi Tereza Salmon é analisado com a lucidez necessária para ressaltar o poder dos objetos e relíquias, ainda que representados, na evocação de uma memória que fora relegada ao esquecimento. Também são trazidos casos na literatura, como a biblioteca da personagem Zweiwasser, de Thomas Lehr, o qual a autora diz possuir “ânsia intensa por durabilidade e imortalidade” (A. ASSMANN, 2011, p. 430).

O último capítulo de Espaços da Recordação é dedicado à um texto breve com a síntese das principais conclusões de cada capítulo, estratégia utilizada pela autora para embasar o discurso de suas conclusões sobre o tema. A. Assmann recorda que o desenvolvimento de novas tecnologias possibilitou uma separação cada vez mais díspar entre a memória cumulativa e a memória funcional, que passa a ser moldada de acordo com interesses políticos que acabam por refletir relações de poder intrínsecas às estruturas sociais. Essas “constelações históricas modificadas” (A. ASSMANN, 2011, p. 400) assemelham-se ao que Pollak (1989) chamou de enquadramento da memória, por meio do qual se “reinterpreta incessantemente o passado em função dos combates do presente e do futuro” (p. 9). As mídias digitais, segundo a autora, possibilitaram uma mudança do “trans-histórico” (A. ASSMANN, 2011, p. 440) para o “transitório” (A. ASSMANN, 2011, p. 440), condição na qual a memória cultural tem sido repensada em sua relação com o tempo e o espaço. Tem-se, portanto, que o estudo sobre a memória em seu contexto social deve caminhar lado a lado aos estudos de mídias contemporâneas (ZIEROLD, 2008) no sentido de perceber as imbricações entre estes dois campos disciplinares tão complexos quanto instigantes.

Assmann consegue, nesta obra, explorar conceitos densos com fluidez, o que só vem a confirmar a versatilidade e segurança da autora em abordar temas fundamentais nos estudos sobre a memória. De modo a circunscrever o debate sobre a memória cultural com a amplitude disciplinar que o tema exige, ela analisa não só casos diretamente relacionados às Humanidades e à Literatura – de clássicos como Shakespeare à contemporânea Leslie Marmon Silko – mas também artistas e exposições de artes plásticas, tais como Sigrid Sigurdsson e Ilya Kabakow. Também com esse intuito, são revisitados autores como Friedrich Nietzsche, Maurice Halbwachs, Pierre Nora e Walter Benjamin, demonstrando o cuidado em referir alguns dos grandes cânones dos estudos sobre a memória. Em suma, pode-se dizer que a autora logrou oferecer ao leitor um panorama sobre a memória cultural que vai além de manifestações conceituais para abarcar também as metamorfoses que elas denunciam no que diz respeito à compreensão da memória no contexto humano e social. Ao recorrer ao estudo de casos variados para a construção de sua análise, desde obras literárias a exposições de arte contemporânea, A. Assmann demonstra uma teorização sólida que convida o(a) investigador(a) nos estudos da memória cultural a reflexões históricas e transdisciplinares.

Agradecimentos

Este trabalho consta como parte do desenvolvimento de pesquisa científica financiada pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT), por intermédio do programa POCH – Programa Operacional Capital Humano. Resultados

Referências

ASSMANN, Aleida. Espaços da Recordação: formas e transformações da memória cultural. Campinas: Editora da Unicamp, 2011. 453 p.

ASSMANN, Jan. Collective Memory and Cultural Identity. New German Critique, n. 65, p. 125– 133, 1995. Disponível em: http://www.jstor.org/stable/488538  Acesso em: 9 fev. 2018.

ASSMANN, Jan. Globalization, Universalism, and the Erosion of Cultural Memory. In: ASSMANN, Aleida; CONRAD, Sebastian (Eds.). Memory in a Global Age: Discourses, Practices and Trajectories. Hampshire: Palgrave Macmillan, 2010. p. 121–137.

CUENCA, Maria; HILFERTY, Joseph. Metáfora y Metonimia. In: CUENCA, Maria; HILFERTY, Joseph (Eds.). Introducción a la lingüística cognitiva. Barcelona: Ariel, 1999. p. 98–124.

GIANNETTI, Louis. Cinematic Metaphors. The Journal of Aesthetic Education, vol. 6, n. 4, p. 49–61, 1972. Disponível em: https://www.jstor.org/stable/3331600. Acesso em: 24 abr. 2016.

LAKOFF, George. The contemporary theory of metaphor. In ORTONY, Andrew (Ed.), Metaphor and Thought. New York: Cambridge University Press, 1993. p. 202-251. (Obra original publicada em 1979).

LAKOFF, George; JOHNSON, Mark. Metaphors We Live By. Chicago: University of Chicago, 2003. (Obra original publicada em 1980).

POLLAK, Michael. Memória, Esquecimento, Silêncio. Estudos Históricos, v. 2, n. 3, p. 3–15, 1989. Disponível em: https://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/reh/article/view/2278/1417 . Acesso em: 16 ago. 2016.

SANTOS, Myrian Sepúlveda dos. Memória Coletiva e Identidade Nacional. São Paulo: Annablume, 2013. 257 p.

ZIEROLD, Martin. (2008). Memory and Media Cultures. n A. Erll A. N nning (Eds.), Cultural Memory Studies: An International and Interdisciplinary Handbook. New York: de Gruyter, 2008. p. 399-408.


Resenhista

Patricia Posch – Doutoranda em Estudos Culturais na Universidade do Minho, Mestre em Cultura e Comunicação e Investigadora no Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade. Suas produções acadêmicas abrangem temas circunscritos por questões de memória social, identidade, representações sociais, migrações, mídia e museus.


Referências desta Resenha

ASSMANN, Aleida. Espaços da Recordação: formas e transformações da memória cultural. Campinas: Editora da Unicamp, 2011. Resenha de: POSCH, Patricia. Meios e formas de recordar: Aleida Assmann e as transformações da memória cultural. Memória em Rede. Pelotas, v.12, n.23, p. 401 – 406, Jun./dez. 2020. Acessar publicação original [DR]

Deixe um Comentário

Você precisa fazer login para publicar um comentário.