Espaços da Recordação: formas e transformações da memória cultural | Aleida Assmann

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Esta resenha versa sobre o livro Espaços da Recordação: formas e transformações da memória cultural, de Aleida Assmann. Lançado em 2011 pela Editora Unicamp, o livro é resultado do trabalho de um grupo de tradutores liderados por Paul Soethe, da Universidade Federal do Paraná, da versão original alemã Erinnerungsräume: formen und wandlungen des Kulturellen Gedächtnisses, publicada em 2006 pela editora Verlag em Munique. A autora e seu companheiro, Jan Assmann, figuram entre os autores mais influentes das últimas décadas nos estudos da memória. Será de grande utilidade, contudo, para o leitor, perceber que o surgimento da memória cultural enquanto conceito está alinhado a uma crescente corrente de estudos transdisciplinares sobre a memória. Ainda que possam haver origens ainda mais remotas, como Aristóteles (SANTOS, 2013) e Platão (A. ASSMANN, 2011), Maurice Halbwachs e Aby Warburg são frequentemente referenciados para definir o momento em que a compreensão da memória humana incorpora o aspecto social e coletivo (J. ASSMANN, 1995). O termo memória cultural, entretanto, foi cunhado por Aleida Assmann e Jan Assmann para designar a memória que permanece viva em uma sociedade a longo prazo e distingue-se da memória comunicativa, que abrange um intervalo de três gerações, e da memória política, perpetuada por meio de instituições (J. ASSMANN, 2010). Leia Mais

A persistência da memória. Romances de anterioridade e seus modos de transmissão intergeracional – BERND (A-EN)

BERND, Zilá. A persistência da memória. Romances de anterioridade e seus modos de transmissão intergeracional. Porto Alegre: Besouro Box, 2018. Resenha de MELLO, Ana Maria Lisboa de. Memória cultural e modos de transmissão nos romances contemporâneos das Américas. Alea, Rio de Janeiro, v.20 n.2, may./aug., 2018.

Memória e transmissão estão intimamente associadas: o processo fragmentário e sempre recomeçado da rememoração encontra seu sentido na transmissão.

Zilá Bernd

O livro A persistência da memória traz relevantes resultados de pesquisa da investigadora Zilá Bernd sobre as relações literárias interamericanas contemporâneas, o papel da memória, da genealogia e filiações no romance das duas últimas décadas, com reflexões teóricas sobre memória cultural. Bernd coloca em confronto diferentes abordagens teóricas de pesquisadores do mesmo campo de interesse, sobretudo francófonos, com destaque para o romance memorial (Régine Robin) e o romance de filiação (Dominique Viart; Laurent Demanze), adotando uma perspectiva comparada tanto no que se refere a reflexões dos teóricos com os quais dialoga, quanto no que diz respeito às obras literárias selecionadas como corpus para as suas análises.

A memória cultural, tal como apontam teóricos como Aleida e Jan Assmann e Andreas Huyssen, cujas ideias vêm ao encontro das reflexões da pesquisadora brasileira, não se refere apenas a dados armazenados em arquivos, mas inclui também tudo aquilo que escapa ao registro oficial, tais como o residual, o obliterado, o reprimido. De acordo com Bernd, a memória cultural incorporaria, portanto, o que foge do registro hegemônico do poder, com tentativas de construção de uma identidade nacional sólida e totalizante, e absorve os elementos da esfera do sensível e do simbólico, sendo que a sua construção depende da transmissão geracional.

O papel de transmissão fica explícito no ensaio autobiográfico de Régine Robin, Le roman mémoriel (1989), que reúne textos críticos e narrativas de vidas de pessoas que foram obrigadas a “silenciar, a esquecer e a reprimir para sobreviver” (BERND, 2018, p. 23), como o que ocorreu com a comunidade judaica. Observa a pesquisadora que Robin insere nesse livro uma passagem do seu próprio romance La Québécoite (1983), em que a personagem rememora nostalgicamente o que ela e a família faziam, quando refugiados na França, durante a ocupação nazista no seu país, a Polônia: os livros que liam, os exercícios de piano, objetos que decoravam a casa, fotos, entre outras lembranças. Enfim, trata-se de uma memória cultural polifônica e mais vívida no texto ficcional do que na escrita da História e em dados de arquivos.

No que se refere à questão da transmissão geracional, Zilá Bernd e Rodrigues Soares (2016), em artigo intitulado Modos de transmissão intergeracional em romances da literatura brasileira atual, já haviam assinalado que o romance memorial “[…] está […] associado à transmissão da memória cultural, à transmissão inter e transgeracional e à postura do sujeito narrador de assumir-se como herdeiro – para dar continuidade ao patrimônio memorial herdado – ou romper com ele”. (BERND; SOARES, 2016, p. 408)

Quase duas décadas depois da publicação do livro de Régine Robin, Dominique Viart centra-se no estudo dos romances denominados parentais ou de filiação, que são narrativas preocupadas com temática da ascendência, ancestralidade dentro do espectro do que se pode denominar “escritas de si”. Essa expressão introduz uma distância que afasta o perigo do egocentrismo e egotismo, em substituição a “escritas do Eu” (Georges Gusdorf). As escritas de si reúnem um conjunto de categorias, tais como autobiografia, diário íntimo, correspondência, memórias e a autoficção. Para Bernd, nas narrativas contemporâneas, a interioridade de narradores-protagonistas é marcada por uma volta ao passado – anterioridade – ancorada nas rememorações e reminiscências. Esse retorno aos ancestrais e às suas histórias, a partir de vestígios deixados por eles (fotos, objetos, cartas etc.), é na verdade uma necessidade de o eu-narrador “[…] promover a reconstrução de trajetórias vividas por seus ancestrais e, através desse processo, (re)significar e/ou (re)construir o presente”(BERND, 2018, p. 47).

Além da contribuição de Viart, para traçar o perfil do romance de filiação na contemporaneidade, Zilá Bernd destaca os aportes de Laurent Demanze que, em Encres orphelines (2008), retoma e discute o estudo de Viart sobre o romance de filiação, e acrescenta novas reflexões sobre as manifestações desse subgênero na ficção contemporânea. A pesquisadora aponta para o fato, assinalado por Demanze, que, por vezes, o passado do narrador de um romance de filiação é um capítulo vazio da memória que o sujeito tenta reconstruir por meio de pesquisas genealógicas e investigações imaginárias; entretanto, esse passado mostra-se inalcançável, de transmissão impossível, de modo que a relação do indivíduo contemporâneo com seu passado pode ser atingida pelo selo da perda.

Bernd assinala que o romance de filiação geralmente emprega os seguintes mecanismos de transmissão em relação ao passado: um empenho do narrador em recuperar e preservar a memória da história familiar, atuando como um porta-voz dos antepassados; um processo narrativo que revela uma memória envergonhada ou ferida, que rejeita o passado familiar e faz ajustes de contas; uma narrativa que introduz elementos novos pelo narrador, os quais dão margem a uma negociação com o passado e pode articular mais de um modo de transmissão.

Tanto o romance memorial como o de filiação se particularizam pelo caráter da “anterioridade”, já que para falar de si o narrador busca a figura de um ancestral, como pais, avós ou até um ancestral mítico. Em síntese, Bernd aponta as duas variantes do romance de anterioridade:

  1. Romance memorial, que seria uma faceta pós-moderna da saga, com ênfase na busca de vestígios, rastros, fragmentos olvidados no passado e que constituem a memória cultural, definida por Régine Robin como aquela feita ‘de pequenos nadas’ (BERND, 1989, p. 21);
  2. Romance de filiação (ou parental), variante da autoficção com a característica de usar o subterfúgio de focalizar a narrativa na vida de um ancestral (pai, mão, avós), numa perspectiva de ajuste de contas com o passado; neste caso, temos presença do que Laurent Demanze chama de ‘herdeiro inquieto e problemático’, que hesita entre reivindicar a herança paterna ou repudiá-la. (BERND, 2018, p. 25)

Na análise do corpus selecionado, relativo a obras ficcionais nas três Américas, de autores brasileiros, antilhanos francófonos e quebequenses, a pesquisadora aponta tendências comuns de escritores que pertencem a “comunidades de memória”, expressão de Pierre Ouellet, no livro Testaments (2012), para dar conta de contextos que, como o do Quebec, acolhem povos de diferentes países, com suas tradições e histórias. Essas passam a formar, juntos com os autóctones, uma memória múltipla e aberta a trocas. E Bernd cita depoimento de Ouellet, em entrevista de 2015 publicada na Revista Letras de Hoje, em que ele deixa nítida essa visão de partilha de diferentes memórias:

Não se trata de uma memória comum (coletiva) porque ela pertence a várias tradições, com diferentes histórias, desenvolvidas em diversos lugares, mas o fato de que pessoas de diferentes origens participem agora da sociedade quebequense faz com que vivamos em comunidade de memórias. (OUELLET apudBERND, 2018)

Assim, à luz de sólida investigação teórica, Zilá Bernd, em A persistência da memória, analisa obras de autores de comunidades de memórias que, em romances de filiação, partilham tradições, reminiscências, traumas, como romances dos brasileiros Moacyr Scliar, Ana Maria Gonçalves, Conceição Evaristo, Tatiana Salem Levi, Cíntia Moscovich, Adriana Lisboa e Eliane Brum. São objeto de análise também romances das quebequenses Louise Dupré, Catherine Mavrikakis e Francine Noël; e obras do escritor André Schwartz-Bart, que emigrou para Guadalupe. Além desses, nas passagens de reflexões teóricas, a pesquisadora cita outras obras, de autores que escreveram romances de filiação nas Américas, com narradores que interrogam o passado de seu núcleo familiar ou de algum predecessor, como forma de ajuste de contas.

Bernd observa que essas narrativas de filiação podem mesclar focos em primeira e terceira pessoas, como forma de recuperar um passado do qual o narrador não participou e, portanto, não foi testemunha, mas que, no entanto, pode ter sido decisivo para a sua existência atual. Percebe-se, nesses romances contemporâneos, alternâncias de focos narrativos, como recurso para iluminar a história do protagonista e abrir portas que permitam desvendar segredos, preencher lacunas da sua história. Nos romances analisados, a investigadora aponta para a preservação da memória cultural, construída “a partir dos restos e vestígios memoriais” (BERND, 2018, p. 160), indiciadores do passado.

As obras literárias, analisadas por Bernd bem como as que serviram de exemplo para suas abordagens teóricas, formam um corpus de pesquisa que inclui obras de escritores de famílias de imigrantes, que buscaram refúgio no Novo Mundo, as quais apresentam narradores que rememoram o passado dos ancestrais para compreensão de si mesmos, bem como de escritores autóctones, que dialogam com o passado para estabelecer uma continuidade geracional e preservar legados familiares. Nos dois casos, podem surgir narradores em conflito com o passado familiar – caso do “herdeiro problemático” de Demanze – que, através da escrita, procuram liberar-se de uma história pautada por angústias e sofrimentos. Para Zilá Bernd,

Os romances memorial e de filiação revogam de certa forma essa tendência da modernidade de arquivar seu passado. Destacando erros e acertos, encontros e desencontros dos ascendentes, a perspectiva transgeracional das narrativas de filiação recompõe áreas de sombra do passado e se constitui como estelas, marcos ou monumentos dedicados a essa ascendência. […] O romance de filiação, alimentando-se da memória cultural, pode dar as respostas que a perspectiva histórica não soube fornecer. (BERND, 2018, p. 156-157)

A persistência da memória é um título inspirado na tela do surrealista Salvador Dalí, de 1931, com “relógios derretidos”, que já não marcam a passagem temporal porque não estão em pleno funcionamento. Segundo Bernd, com a imagem dos relógios deformados, talvez “[…] o artista quisesse expressar que a noção de memória remete sempre à de esquecimento, sendo memória e esquecimento as duas faces da mesma moeda” (BERND, 2018, p. 16).

Trata-se de um livro que articula as mais recentes discussões teóricas sobre o romance contemporâneo de anterioridade – romances memorial e de filiação – e sobre a memória cultural, trazendo autores ainda não traduzidos para a língua portuguesa, e transmitindo informações imprescindíveis aos pesquisadores, incluindo estudantes da área de Letras, que participam de pesquisas que têm por corpus esse gênero ficcional.

Referências

BERND, Zilá ; SOARES, Tanira Rodrigues. Modos de transmissão intergeracional em romances da literatura brasileira atual. Alea: Estudos Neolatinos, v. 18, n.3, 2016, p. 405-421 [ Links ]

BERND, Zilá . A persistência da memória. Romances de anterioridade e seus modos de transmissão intergeracional. Porto Alegre: BesouroBox, 2018. [ Links ]

DEMANZE, Laurent. Encres orphelines: Pierre Bergounioux, Gérard Macé, Pierre Michon. Paris: José Corti, 2008. [ Links ]

OUELLET, Pierre. Testaments: le témoignage et le sacré. Montreal: Liber, 2012. [ Links ]

OUELLET, Pierre. Entretien avec Pierre Ouellet (Entrevista concedida a Ana Maria Lisboa de Mello, Zilá Bernd, Marie Hélène Paret Passos). Letras de Hoje, PUCRS, v. 50, n. 2, abril-junho 2015, p. 229-240. Disponível em: <http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/fale/article/view/21342> [ Links ]

ROBIN, Régine. La Québécoite – roman. Montreal: Québec/Amérique, Collection Littérature d’Amérique, 1983. [ Links ]

ROBIN, Régine. Le roman mémoriel: de l’histoire à l’écriture du hors lieu. Montréal: Préambule, 1989. [ Links ]

VIART, D. Récit de filiation. In: VIART, D.; VERCIER, B. (éds). La littérature française au présent. Paris: Bordas, 2008. [ Links ]

Ana Maria Lisboa de Mello é graduada em Letras-Licenciatura em Português e Francês e respectivas literaturas pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), e Mestrado e Doutorado em Letras pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), na Área de Teoria da Literatura. Fez estágios de pós-doutoramento no Centre de Recherches sur l Imaginaire, na Université Stendhal, Grenoble III (1995-96), com bolsa do CNPq, na Sorbonne Nouvelle – Paris III (2004) e na University of Toronto (2013-2014), com bolsa CAPES. É membro associada ao Centro de Literaturas e Culturas Lusófonas e Europeias (CLEPUL) da Universidade de Lisboa, e ao Centre de Recherches sur les Pays Lusophones (CREPAL) da Université de la Sorbonne Nouvelle. Tem experiência na área de Letras, subáreas de Literatura Brasileira e Teoria da Literatura, com ênfase em poesia, narrativa, teorias e críticas do imaginário. Vinculou-se em 2017 ao Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas (PPGLEN), da Universidade Federal do Rio de Janeiro, é bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq e editora da revista Alea: Estudos Neolatinos. E-mail: [email protected]

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Espaços da recordação: formas e transformações da memória cultural – ASSMANN (VH)

ASSMANN, Aleida. Espaços da recordação: formas e transformações da memória cultural. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2011, 453 p. QUELER, Jefferson José. Varia História. Belo Horizonte, v. 29, no. 49, Jan./ Abr. 2013.

Ainda existe memória no mundo contemporâneo? Qual o papel da cultura em sua formulação ao longo do tempo? Tais são alguns dos desafios enfrentados por Aleida Assmann em seu livro Espaços da recordação: formas e transformações da memória cultural. A obra foi recentemente traduzida do alemão por pesquisadores ligados à Universidade Federal do Paraná e publicada pela Editora da Unicamp, em 2011. Trata-se de versão modificada de uma tese de livre-docência apresentada à Universidade de Heidelberg, em 1992. Professora da Universidade de Konstanz, com formação em língua e literatura inglesa e em egiptologia, Assmann foi bem-sucedida em ultrapassar as fronteiras de suas especialidades. Atualmente seu trabalho desfruta de renome internacional entre as mais diversas áreas do pensamento, e pode estimular novas abordagens sobre a questão da memória no Brasil.

O livro foi produzido em meio ao rompimento do “silêncio coletivo” sobre o Holocausto e o período nazista na Alemanha, em momento em que tais temáticas assumem lugar de destaque em debates públicos naquele país. Da mesma forma, apareceu na esteira da crescente digitalização da mídia, em situação em que os computadores contribuem para modificar as formas de se lidar com o passado.

Diante de tais transformações, Assmann questiona posições que apontam o fim da memória nas últimas décadas. O alvo privilegiado de suas críticas, destacado desde as primeiras páginas do texto, é o historiador francês Pierre Nora. A obra deste último, em especial seu Les lieux de mémoire, obteve grande repercussão internacional ao proclamar a subsunção da memória pela história. Com o advento da modernização, a primeira, pautada por discursos espontâneos e naturais, seria cada vez mais incorporada pela história, marcada por um discurso artificial e racionalizado. Diante dessas colocações, Assmann coloca as seguintes perguntas: “É assim mesmo? Não existe mais memória? E que tipo de memória não existiria mais?”.

O eixo de sua argumentação consiste em demonstrar que não há uma essência da memória. Não apenas os indivíduos lembram-se das coisas, como também grupos e as mais diversas coletividades. Ou seja, os modos de recordar são definidos culturalmente, variam ao longo do tempo e segundo a formação cultural em que são formulados. Desse modo, se há o desaparecimento da memória, como quer Nora, isso é verdade apenas na medida em que há o descrédito de algumas formas de recordar. A mnemotécnica, tão exaltada na Antiguidade, sobretudo por Cícero, proclamava o valor do saber de cor, habilidade procurada em líderes e governantes. Entretanto, tal uso da memória cai em descrédito nos dias atuais, resvalando até mesmo na esfera do patológico. Afinal, perguntam-se muitos, por que decorar o que se pode registrar por escrito? Segundo a autora, não se considera mais a memória como vestígio ou armazenamento, mas como uma massa plástica constantemente reformulada sob as diferentes perspectivas do presente. Um pouco de exagero, pois poderíamos pensar na coexistência de diversas formas de se conceber e usar a memória atualmente.

Porém, a relevância do trabalho não deve ser diminuída. Assmann recorre a uma erudição impressionante para sustentar seus pontos de vista. Dialoga com autores clássicos das mais diversas épocas e áreas do conhecimento: Platão, Aristóteles, Shakespeare, Wordsworth, Halbwachs, Benjamin, Rousseau, Freud – mérito seu, evidentemente, mas que deve ser igualmente atribuído à situação institucional que abriu espaço para a elaboração desse trabalho de fôlego. E, a partir de tais autores, constata não apenas os mais diversos usos da memória, como também as diferentes formas pelas quais ela foi pensada e teorizada. Assim, enquanto Cícero notabilizou-se por delinear a arte da mnemotécnica, Nietzsche destacou-se por conceber a memória enquanto elemento central na formação da identidade. Outros embates são traçados: a memória recompõe cenas do passado, ou as reconstrói? Erige-se a partir tão-somente de um esforço deliberado, ou também de forma involuntária? Forma-se apenas com lembranças, ou também a partir de esquecimentos?

Nos horizontes de Assmann, destaca-se a preocupação de considerar tanto a memória quanto a história como formas de recordação. Elas, a seu ver, “não precisam excluir-se nem recalcar-se mutuamente”. As ciências históricas são vislumbradas como uma memória de segunda ordem, uma memória das memórias, a qual integra aquilo que perdeu relação vital com o presente. É o processo de formação dos Estados modernos o pano de fundo para o desenvolvimento delas. O interesse pela identidade nacional aumentou a velocidade do movimento arquivista, com a formação de coleções reunindo traços de um passado esquecido. E, uma vez reconquistado o passado das mãos dos monges e da Igreja, tornou-se premente a crítica das fontes. Mesmo diante de tais esforços, a autora aponta que os modos de recordar o passado nunca se concentraram exclusivamente nas mãos de profissionais ou especialistas. A memória nunca foi enquadrada totalmente pela história.

Os modos de recordação, por vezes, reconhecem revivescências. Assmann indica como a memória cultural tem seu núcleo antropológico na memoração dos mortos. Segundo tabu universal, estes devem ser sepultados e levados ao repouso; caso contrário, vão incomodar o mundo dos vivos. A Antiguidade, por sua vez, insistirá na eternização de alguns nomes. Poetas, cantores e historiadores serão mobilizados nessa tarefa. Concepção que, após interlúdio durante a Idade Média, será retomada no Renascimento. Casos como o memorial do Holocausto, por outro lado, marcariam o fim de quaisquer retóricas da Fama, voltando à forma original da lembrança histórica: a memoria dos mortos. Segundo a autora, contrapondo-se a Nora, a cobertura da Europa com locais de recordação da guerra não tem nada a ver com a modernização, mas com o regime totalitário e o genocídio planejado dos nazistas.

O livro de Assmann é publicado no Brasil em momento em que se instala uma Comissão da Verdade destinada a investigar, sem a prerrogativa da punição, crimes e abusos contra os direitos humanos cometidos durante a ditadura militar. Trata-se de situação bem distinta do contexto de produção da obra. Afinal, muitos dos criminosos nazistas foram julgados e condenados tão logo terminou a Segunda Guerra Mundial. Em seguida, é bem verdade, seguiu-se longo silêncio sobre o Holocausto entre a sociedade alemã. E a obra de Assmann foi construída justamente em conjuntura em que tal negação do passado era revista. No caso brasileiro, há que se perguntar se as diferentes formas de recordação presentes no debate público, tanto a memória quanto a história, serão capazes de iluminar os caminhos tomados pela Comissão da Verdade: suas formas de rememorar o passado talvez possam ser relativizadas a partir do trabalho de Assmann. Portanto, o livro em questão é de interesse não apenas para historiadores e cientistas sociais, como também para qualquer público interessado nas problemáticas colocadas pela memória.

Jefferson José Queler – Professor do Departamento de História. Universidade Federal de Ouro Preto. [email protected].

Religion and Cultural Memory: ten studies | Jan Assmann

O egiptólogo alemão Jan Assmann, juntamente com sua esposa e também pesquisadora Aleida Assmann, vem desenvolvendo nas últimas duas décadas o conceito de “memória cultural”, sendo o volume “Religion and Cultural Memory” uma coletânea de dez artigos sobre o tema, publicada originalmente em alemão (2000), e cuja tradução para o inglês de 2006 é aqui resenhada. São poucos os historiadores do mundo antigo que se aventuram numa incursão teórica que englobe campos do saber e períodos históricos mais abrangentes do que seu próprio tema de estudos. Além das dificuldades inerentes desse tipo de abordagem, o mundo antigo parece distante e desconhecido demais, de forma que habitualmente faz-se a opção de ressaltar a alteridade do antigo através de uma abordagem etnológica, ou então simplesmente fazer vistas grossas aos problemas implicados na distância milenar como condição para a inteligibilidade desse passado. No entanto, Assmann torna a transmissão de cultura pelos milênios o objeto de sua atenção, descortinando assim as profundezas do tempo, e dando maior consistência teórica ao estudo da antiguidade e sua memória ao longo dos séculos.

A obra de Assmann é caracterizada por rara capacidade de concisão e rígida definição conceitual, além disso, suas assertivas são sempre argumentadas com base em fenômenos ocorridos na história, e não em raciocínio puramente abstrato. Como introdução ao seu instrumentário conceitual, é necessário ressaltar três distinções realizadas ao longo da obra que culminam na definição de “memória cultural”

Primeiro, Assmann define a teoria da memória cultural como um acréscimo à hermenêutica, disciplina que a sustenta e a distingue simultaneamente. A hermenêutica concentra-se na compreensão dos textos dos eventos memoráveis, enquanto a teoria da memória cultural investiga, em contraste, as condições que permitem que o texto seja estabelecido e transmitido, dando atenção às formas nas quais o passado se apresenta a nós, assim como os motivos que impelem nosso recurso a ele. Dessa forma, reforça-se o papel do texto, da tradição e da memória dentro da estrutura linguística decodificada pela hermenêutica, apoiando-se principalmente no pensamento de Gadamer e sua concepção da hermenêutica em que “todo entendimento é alimentado por um préentendimento que vem da memória” (ASSMANN, 2006: IX-X).

A segunda distinção consiste em manter clara a definição de memória social, deixando de lado as dimensões neurais da memória, bem como as formas de memória motora, envolvidas na ação de caminhar, nadar, andar de bicicleta, etc.. O estabelecimento da memória como um fenômeno socialmente mediado, que remonta ao sociólogo francês Maurice Halbwachs, é o ponto de partida para compreender a base cultural da memória. No ato de lembrar-se não somente descemos nas profundezas da nossa mais íntima vida interior, mas introduzimos uma ordem e estrutura nesta vida interna socialmente condicionada e que nos liga ao mundo social (idem, 2006: 1-2). Decorre daí que não há distinção clara entre memória individual e coletiva, pois a memória cresce na relação com outras pessoas e as emoções cumprem um papel crucial neste processo. Dentro da dimensão social do fenômeno, é necessário distinguir a “memória comunicativa do cotidiano” – limitada ao círculo de algumas poucas gerações capazes de transmitir memória através da oralidade – e a “memória cultural” – que consiste em formas de cultura objetivada e cristalizada em textos, imagens, rituais, monumentos, etc.[154]

A terceira definição consiste em compreender a “memória coletiva de ligação”, que Assmann desenvolve em diálogo com as obras de Friedrich Nietzsche e Sigmund Freud. Para estes pensadores, a cultura agia como uma camisa-de-força que treina, forma e ajusta o indivíduo conforme determinados objetivos e funções. No entanto, Nietzsche e Freud tinham uma visão pessimista desse processo, e ignoravam o lado oposto: o desejo do indivíduo de pertencer a algo, em última análise, a dimensão política da “memória coletiva de ligação” cuja função normativa e formativa não se limita a manipulações maquiavélicas e políticas, mas faz parte da própria estrutura da vida em sociedade do “animal político”. A “memória coletiva de ligação” é a inscrição que a sociedade faz de si mesma na memória, com as suas normas e valores, criando no indivíduo o que Freud chamou superego, e que é tradicionalmente conhecido como consciência (idem, 2006: p. 6-7). Este tipo de memória é suscetível às formas politizadas do lembrar-se, ilustradas por slogans como: “Masada não deve cair novamente” ou “Auschwitz: nunca mais”. Nestes casos, a memória é visivelmente “construída”: é o encontro da projeção de parte do coletivo que deseja lembrar-se com o indivíduo que lembra para pertencer. Para tanto se recorre ao arquivo cultural de tradições, o arsenal de formas simbólicas, o imaginário de mitos e imagens, de grandes histórias, sagas e lendas, cenas e constelações que vivem, ou podem ser revividas, dentro do tesouro de estórias de um povo. Este arquivo monumental e milenar, e seu recurso como memória coletiva de ligação, correspondem ao que Assmann entende por memória cultural.

Como reforço para o desejo do lembrar, criam-se as “memórias de ajuda”, como os “lieux de memóire”, sítios nos quais se concentram a memória nacional ou religiosa de uma nação, seus monumentos, rituais, dias de festas e costumes. Assmann procura demonstrar a antiguidade deste tipo de fenômeno através do ritual instituído pelos Assírios. Para evitar que seus vassalos se esqueçam do juramento de lealdade ao Imperador Assurbanipal, o lembrar-se é corporificado através de um ritual repetido regularmente, que marca o renascer de uma memória esquecida, ou do perigo compreendido em ser esquecida (idem, 2006: 9-11). O ritual como “memória de ajuda” com finalidades políticas fica instituído na sua transparência de objetivos.

Este tipo de memória coletiva e conectiva estabiliza uma identidade comum e um ponto de vista, e não necessariamente está ligado à história. Assmann exemplifica com as tradições dos ameríndios da América do Norte, e da China pré-moderna, remontando à divisão de Lévi-strauss entre sociedades “quentes” e “frias”, isto é, sociedades com e sem história. A mesma relação de uma tradição ou mito agindo como “sistema de classificação” é observado no mito de Osíris no Egito Antigo, que periodicamente reforça a unidade das diferentes regiões da terra do Nilo (cada uma delas sendo responsável por guardar uma das partes do cadáver de Osíris), através do ritual que abarca o ciclo natural das cheias e a ascensão do poder do Estado (idem, 2006: 13-5).

O exemplo mais completo, segundo o próprio Assmann, provém da Bíblia Sagrada, quando Moisés, no Deuteronômio, expõe todo seu complexo mnemônico para fazer com que a geração crescida no deserto lembre o Êxodo e mantenha as leis do Senhor na Terra Prometida. Assmann descreve os vários procedimentos mnemônicos que visam estabilizar toda uma cultura e uma identidade, revelando-se uma complexificação em relação ao ritual Assírio, e, além disso, denota uma clara noção do papel da cultura neste processo (idem, 2006: 16-20). O projeto de Moisés culmina na codificação e canonização da memória, bem como da criação do grupo de pessoas especializados em lembrar, transmitir e interpretar os textos sagrados.

Após esta concisa, mas riquíssima definição conceitual e exposição de exemplos, Assmann conclui sobre o significado da teoria da memória cultural. Ela investiga a cristalização, ou canonização, dos precipitados culturais que rompem as barreiras da transmissão oral e do limite temporal de poucas gerações. Nesse processo a escrita cumpre papel primordial, pois ela contém a possibilidade de transcender a memória de ligação em favor da memória do aprendizado. Este é um dos objetivos do Deuteronômio: impor ao fluxo de tradições um rígido controle e seleção. No entanto, a escrita ao mesmo tempo liberta o indivíduo do constrangimento da memória de ligação, na medida em que permite uma expansão indefinida do horizonte de memória, e também permite ao indivíduo dispor livremente do seu estoque de memórias e garante a ele a oportunidade de orientar-se em toda a sua extensão. A memória cultural liberta as pessoas dos constrangimentos da memória de ligação (idem, 2006: 20-1).

Até aqui nos limitamos à definição de Assmann no primeiro texto do seu livro: “Introduction: What is ‘Cultural Memory’?” Os outros noves artigos exploram demais aspectos deste mesmo quadro de problemas, principalmente os que envolvem religião e escrita dentro do campo conceitual da sua teoria da memória cultural.

Dentro dos artigos que abordam o primeiro tema, temos “Invisible Religion and Cultural Memory” que aborda a relação da sua teoria com o conceito de “Religião Invisível” de Thomas Luckmann, e avalia como o conceito de memória cultural interage com esses universos simbólicos, principalmente com a distinção entre “religião visível”, que se aproxima mais do significado comum do termo, a as “religiões invisíveis” que significam um universo mais geral de ordem cósmica que independe de determinada institucionalização. Além disso, há o capítulo “Monotheism, Memory, and Trauma: Reflections on Freud’s Book on Moses” onde Assmann discute a pertinência da última obra de Freud, que relaciona os temas de “trauma”, “culpa” e “memória” com a religião, especialmente a monoteísta.

Os artigos que priorizam a questão das “mídias” da memória cultural, principalmente a escrita e a canonização de textos, são os seguintes: “Five Stages on the Road to the Canon: Tradition and Written Culture in Ancient Israel and Early Judaism”, “Remembering in Order to Belong: Writing, Memory and Identity”, “Cultural Texts Suspended Between Writing and Speech” e “A Life in Quotation: Thomas Mann and the Phenomenology of Cultural Memory”. Por fim, há os artigos que abordam ambos os temas, investigando dentro deste campo conceitual o papel das “mídias” da religião, principalmente os rituais e textos sagradas: “Text and Ritual: The Meaning of the Media for the History of religion” e “Officium Memoriae: Ritual as the Medium of Thought”. O livro encerra com um capítulo que talvez seja a aplicação mais ambiciosa da teoria: “Egypt in Western Memory”, que investiga o lugar do Egito Antigo na memória da sociedade moderna.

Assmann possui a capacidade de reabilitar antigas questões com novas definições, de uma forma clara e original. Em suma, sua perspectiva de trazer à tona a dimensão da memória social com um novo olhar, enriquecido com leituras sociológicas e hermenêuticas, e assim lançar uma contribuição objetiva ao problema das profundezas do tempo e as condições de constituição de um cânone. Por outro lado, o seu método pode facilmente desviar em incoerências se não levar em conta alguma das inúmeras mídias e caminhos nos quais o complexo e múltiplo fenômeno da memória cultural transcorre os milênios, mas este é o tipo de risco que se assume quando se propõe compreender um fenômeno muito complexo. No entanto, sua contribuição ao debate é notável, e vem somar-se às outras abordagens sobre o tema [155].

Notas

154. Esta definição é analisada mais detalhadamente em outro artigo do autor: ASSMANN, Jan. “Collective Memory and Cultural Identity”. Translated by John Czaplicka. New German Critique. Nº 65, Cultural History/Cultural Studies (Spring-Summer, 1995), pp. 125-133

155. Penso especialmente na obra RICOEUR, P.. A Memória, a história, o esquecimento. Campinas: Unicamp, 2007, que possui considerável relevância na academia brasileira.

Denis Correa153 – Licenciado e Mestrando em História pela UFRGS. E-mail: [email protected]   Curriculum Lattes: http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K4212929P9


ASSMANN, Jan. Religion and Cultural Memory: ten studies. Translated by Rodney Livingstone. Stanford: Stanford University Press, 2006. Resenha de: CORREA, Denis. Alétheia – Revista de Estudos sobre Antiguidade e Medievo. Jaguarão, v.2, n.2, p.125-128, jul./dez., 2011.

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