Famílias Abandonadas: Assistência à criança de camadas populares no Rio de Janeiro e em Salvador – séculos XVIII e XIX | Renato Pinto Venâncio

A infância como objeto de pesquisa dos historiadores só apareceu com o livro de Philippe Ariès, L’enfant et la vie familiale sous l’Ancien Régime (Paris: 1960). Na seqüência dos estudos relativos à criança, surge o interesse pela história das crianças enjeitadas ou abandonadas, como nos referimos atualmente.

Na década de setenta, refletindo a atenção que historiadores e principalmente historiadores-demógrafos davam ao tema da criança (abandonada ou não), foi publicado pela Societé de Démographie Historique um número consagrado ao novo campo de investigação que se abria: a história da infância.

Nas décadas seguintes, a atração dos estudiosos de diversas áreas, não fez senão aumentar, não só em termos das publicações e colóquios, mas também em relação às perspectivas de análise, às fontes e às metodologias.

Multiplicaram-se os estudos sobre ilegitimidade, abandono, maternidade e aleitamento. No que tange à problemática da exposição de crianças, a École Française de Rome, por exemplo, organizou um colóquio em 1987, cujos trabalhos foram publicados anos depois (Enfance Abandonnée et Societé en Europe XVIe-XXe siècles, Roma: École Française de Rome, 1991).

Logo surgiram os estudos que se preocupavam em alargar o universo de análise, ligando a criança não só à demografia histórica e à história da família, mas integrando-a na história da pobreza e da assistência.

Um campo muito fértil que nasceu daí foi aquele que procura estudar as instituições que acolhiam as crianças enjeitadas e os mecanismos de assistência que se desenvolveram. Muitos dos trabalhos ocuparam-se, portanto, dos hospitais que acolhiam as pequenas infelizes, em cidades como Florença, Milão, Madrid entre outras.

No Brasil, o interesse pela criança desenvolveu-se a partir de meados da década de oitenta, e muitos historiadores apaixonaram-se pelo tema. Renato Pinto Venâncio foi um deles e há mais de uma década dedica-se ao estudo da criança abandonada no Brasil.

Sua tese de Mestrado, Infância sem destino: o abandono de crianças no Rio de Janeiro no século XVIII (São Paulo, Universidade de São Paulo, 1988) foi uma contribuição importante para o estudo do abandono em paróquias rurais e urbanas no Rio de Janeiro setecentista.

Por outro lado, o seu livro Famílias Abandonadas é uma versão resumida da sua tese de Doutorado defendida em 1993, na Universidade de Paris IV (França), intitulada Casa da Roda: Instituition d’assistance infatile au Brésil – XVIIIe et XIXe siècles.

Famílias Abandonadas integra-se na linha que procura analisar as instituições que recolhiam os expostos e tem como cenário privilegiado as primeiras instituições deste tipo que surgiram no Brasil: as Santas Casas de Misericórdia da cidade de Salvador e do Rio de Janeiro. Ressalte-se que seu trabalho não se limitou apenas a analisar o funcionamento institucional, mas tecer ligações com o contexto social mais amplo que envolvia as Misericórdias e a população que a elas recorria.

Assim, procurou estabelecer as relações mantidas entre as camadas populares e o dispositivo colonial de socorro à infância desvalida. As questões centrais da pesquisa de Renato Pinto Venâncio são, segundo suas próprias palavras, “as normas, as leis e as práticas assistenciais que, além de estigmatizarem os pobres com acusações de irresponsabilidade e de desamor em relação à prole, deram origem a uma perversidade institucional que sobrevive até nossos dias: paradoxalmente, desde os séculos XVIII e XIX, a única forma de as famílias pobres conseguirem apoio público para a criação de seus filhos era abandonando-os” (p.13), utilizando para atingir esse objetivo as técnicas e métodos da Demografia Histórica e da História Social.

Um aspecto a ser mencionado é a preocupação constante do autor, neste trabalho, em valorizar a história comparativa, alargando os limites da singularidade local, não só através da análise das instituições localizadas no Rio de Janeiro e em Salvador, mas estabelecer paralelos, ao longo de todo o texto, com experiências semelhantes ocorridas em outros países. A integração do problema da assistência à infância brasileira muito além do contexto econômico e social da colônia é sublinhada através da análise da situação da Europa Moderna, onde abandono e o socorro público prestado às crianças eram uma realidade, principalmente em países como a França, a Itália e Portugal.

O livro articula-se em seis partes, além da introdução. Na parte um (A Palavra e a Lei), o autor propõe, em primeiro lugar, a compreender o que é uma criança abandonada, fazendo uma “genealogia” do termo que revela, por exemplo, que seu uso começou a generalizar-se apenas no final do século XIX. Anteriormente designavam-se essas crianças como expostas ou enjeitadas.

Nesta primeira parte, o leitor terá acesso a uma série de outras informações fundamentais para a compreensão da problemática do abandono. O leitor conhecerá, além das ambigüidades relativas à definição do enjeitado, o próprio abandono e como enfrentar o fato. Posições tão contrárias quanto condená-lo inapelavelmente ou promover o bom tratamento das crianças se contrapunham. Mais ainda havia ambigüidade em se estabelecer os próprios limites do que seria a infância.

Quanto ao ato do abandono, este era subdividido em duas categorias: abandono “selvagem” ou abandono “civilizado”, classificados a partir do local da exposição (em locais ermos, o que exporia essas crianças à morte certa) ou em hospitais, conventos, domicílios.

As Santas Casas de Misericórdia, instituições que interessam ao autor, criaram a “Mesa dos Expostos”, tendo como base a Roda (mecanismo que tinha a forma de tonel giratório ligando a rua ao interior do hospital). Estabeleceu-se, então, uma estrutura administrativa e um corpo de funcionários, baseados nos estatutos das congêneres metropolitanas, que, infelizmente na colônia, não puderam colocar em prática a estrutura prevista devido à constante falta de recursos.

Nessa primeira parte, Renato Venâncio focaliza também a discussão que se fazia para definir os limites do acesso das crianças à assistência.

A segunda parte (A Casa da Roda: os ritmos do abandono) está subdividida em cinco subseções. De forma geral, o autor analisará os quantitativos de crianças abandonadas, tentando resgatar o seu significado em relação à população infantil total e visando calcular a importância demográfica do abandono. Ao lado disso, serão analisadas as características dos matriculados na Roda, sem deixar de lado a questão da adaptação do serviço assistencial à sociedade escravista colonial.

Embora pareça simples estabelecer o número de crianças abandonadas, o autor demonstra as dificuldades em estimar a representatividade do abandono e, dada precariedade da documentação, é apenas possível admitir que o abandono era uma prática social comum que estava incorporada às cidades coloniais.

Aparentemente mais simples é conhecer o perfil do abandonado. O sexo, a cor e a idade são atributos declarados nas matrículas, que revelam as crianças que eram escolhidas para serem envidas à Roda e as mudanças ocorridas ao longo dos séculos XVIII e XIX.

Note-se que, quanto à cor, inicialmente, predominavam os expostos brancos e, depois de 1850, passam a predominar os mestiços e negros. O autor admite que tratar da questão da cor coloca problemas importantes, como as alterações nos critérios de classificação racial e mesmo a questão da difusão das teorias científicas da superioridade da raça branca exatamente no mesmo período (segunda metade do século XIX). Assim, para Renato Pinto Venâncio, “se, no século XVIII, os enjeitados eram vistos como anjinhos que corriam o risco de falecer sem receber o sacramento batismal, no século seguinte, as mesmas crianças passaram a ser vistas como produto de raças degeneradas, filhos de mestiços e negros” (p.50).

De qualquer modo, o autor afirma que a Casa da Roda nunca restringiu a sua ajuda a um único setor da população, crianças brancas, mestiças e negras, em maior ou menor medida, sempre foram acolhidas nos Hospitais da Misericórdia.

Se a instituição estava aberta a todos os setores da população, na subseção seguinte, o autor trata das diferentes formas de admissão dos pequenos abandonados. A roda era o principal meio de ingresso, mas não se excluíam a exposição nas residências dos membros da mesa e os filhos nascidos de mães internadas nas enfermarias da Misericórdia. Mas as fontes raramente se referem às formas de admissão.

As crianças eram encaminhadas o mais rapidamente possível a outras famílias que recebiam ajuda financeira para sua criação. Este era o procedimento mais aconselhável, pois as instalações, como demonstra Venâncio, eram precárias. Somente no decorrer do século XIX é que instalações destinadas exclusivamente aos expostos serão criadas.

Depois do abandono efetuado e de a criança ter dado entrada na Roda, se ela tivesse sobrevivido, seria entregue para a criação. Renato Pinto Venâncio mostra que é difícil estabelecer com certeza o perfil dos criadores, mas os dados permitem que se diga que, em princípio, não haveria restrição alguma quanto à origem social ou étnica dos que acolhiam os enjeitados. Algumas famílias criadeiras serviam-se até de amas-escravas. Revela ainda que o pagamento era parco, apesar de alguns privilégios serem concedidos às famílias criadeiras.

Na opinião do autor, a sobrevivência do sistema dependeu da “generosidade e da caridade cristã de inúmeras famílias: se abandonar bebês constituía impiedade, criá-los era uma extraordinária demonstração de fé” (p.63), o que não deixa de ser uma hipótese interessante.

Uma particularidade encontrada pelo autor em relação à amas brasileiras era a sua origem urbana, o que as fazia diferir das congêneres européias. Mais ainda, a cartografia realizada pelo autor demonstrou que as crianças eram distribuídas em áreas vizinhas às instituições que as acolhiam.

A terceira parte (Os usos da instituição) está subdividida em três seções. Poderemos verificar que, ao contrário do que afirmavam os letrados, os pobres não só se preocupavam com o destino dos filhos, como também relutavam em abandoná-los.

Nesta parte, Renato Venâncio procurou entender quais seriam os fatores que deflagravam o abandono, percorrendo os testemunhos produzidos pelos que se confrontavam diretamente com o ato: os administradores da assistência e os familiares da criança.

Para os primeiros, o abandono mostrava o índice de imoralidade dos povos ou a falta do amor das mães. Encaravam o auxílio para socorrer as crianças abandonadas como um estímulo à indisciplina e à irresponsabilidade. O saber médico também registrava as mesmas opiniões, apesar de introduzir elementos como a carestia dos gêneros de primeiras necessidades, como motivos que levariam ao abandono.

O reverso da medalha é fornecido pelo testemunho da outra parte, isto é, dos pais que abandonavam os filhos, através dos bilhetes que acompanhavam alguns dos expostos. Raramente os pais se preocupavam em justificar o abandono. O principal tema era indicar nome da criança e se ela já havia recebido o sacramento do batizado. Por outro lado, uma crítica séria aos bilhetes é fundamental, adverte o autor, pois muitos poderiam corresponder apenas à reprodução de clichês de época, enquanto que outros seriam marcados pela espontaneidade.

O gesto de procurar a Roda, de acordo com os bilhetes, não era encarado como falta de responsabilidade, mas muitas vezes, paradoxalmente, constituía uma outra forma de amor, acredita Venâncio.

O autor ressalta que, através dos bilhetes, fica comprovado como o recurso à Casa da Roda foi, ao longo do tempo, incorporado às diversas estratégias de sobrevivência das camadas populares. Para Venâncio, “só um julgamento anacrônico e moralista assimilaria o gesto ao desamor das mães”.

Entretanto, se os bilhetes não esclareceram os motivos que deflagravam o abandono, a resposta a essa pergunta o autor procurará através da análise demográfica.

O autor, desta forma, seleciona hipóteses a serem testadas na documentação que ele utilizou para as Casas da Roda de Salvador e do Rio de Janeiro. A primeira está relacionada com a condenação social aos nascimentos ilegítimos, a segunda à miséria e a terceira liga-se à eventual morte dos pais. As hipóteses foram analisadas através do recurso a gráficos, tabelas e até mesmo através de recursos estatísticos, como o cálculo de coeficientes de correlação.

Em relação à primeira hipótese, apesar de ser atribuído um grau de importância ao aspecto moral da geração de filhos ilegítimos, a aplicação dos procedimentos estatísticos mencionados demonstrou que “o coeficiente encontrado é negativo, desautorizando assim as explicações de cunho moral” (p.87).

A bastardia não se restringia a um grupo específico e encobria realidades extremamente variadas, que iam da prostituição ao adultério, ao concubinato estável. As mulheres com filhos ilegítimos não precisariam recorrer à Casa da Roda, pois a mãe solteira era um personagem aceito no meio urbano: chefiava domicílios e tinha as mais variadas ocupações. Essa hipótese, na opinião do autor, simplificaria demais a realidade subjacente aos índices de bastardia.

A segunda hipótese, que ligaria a pobreza e a miséria ao abandono, foi abordada pelo autor, empregando-se os índices de preços às matrículas de expostos nas rodas de Salvador e do Rio de Janeiro. Através dos mesmos coeficientes de correlação, verificou que estes, sim, são positivos, mas que variaram em relação às duas cidades analisadas.

A terceira hipótese, relacionada ao falecimento dos pais, também deve ser analisada à luz da carestia dos gêneros. A carestia poderia se tornar insuportável se ocorresse simultaneamente à dissolução da família.

Na conclusão dessa parte, Renato Pinto Venâncio acredita que o abandono de crianças dizia respeito aos pobres, mas não a todos os pobres indiscriminadamente. As famílias pobres resistiam à idéia de enviar o filho à Roda. Contudo, numa situação de morte dos parentes, o frágil equilíbrio dos núcleos domésticos não seria capaz de superar mais essa adversidade, e o recurso à instituição de assistência e de caridade aparecia com única solução possível.

A quarta parte do livro (A morte das crianças) mostra um quadro bastante desolador sobre o destino da maioria das crianças enjeitadas nas Casas da Roda. Renato Venâncio admite que a história do abandono “é uma história da morte e uma história secreta da dor”. Muitas chegavam já mortas, e a maioria não chegava a completar um ano sob a custódia do hospital.

Venâncio abre esse capítulo, analisando a interessante questão da entrada de crianças já falecidas. O autor atribui esse fato à preocupação com o futuro espiritual das crianças pobres.

A subseção seguinte aborda com mais profundidade o tema da mortalidade entre os expostos que chegavam com vida à Roda. Os dados corroboram o que outros estudos de outras instituições do gênero já revelaram: uma mortalidade altíssima, da ordem dos 690 e 653 por mil (décadas de 1830 e 1840 no Rio de Janeiro) e de 646, 712 e 567 por mil (em meados do século XVIII, décadas de 1830 e 1860 em Salvador).

Atribui essas altíssimas taxas de mortalidade às malogradas experiências com o aleitamento artificial. E esta não parece ter sido uma característica única das Rodas aqui analisadas. O autor demonstra que, tanto no Brasil como na Europa, ser abandonado era o primeiro passo para se tornar “anjinho” (p.110). Aliás, há toda uma discussão sobre o significado da morte de crianças no Brasil de outrora. O autor admite, entretanto, que, se os enjeitados dessem entrada à roda com alguns meses, poderiam ser mais resistentes, mas os dados lacunares não permitiam aprofundar devidamente essa hipótese.

Se a morte era quase certa, é necessário, a seguir, encontrar os culpados. E é isto que o autor procura na seção seguinte: quem seriam os culpados.

Alguns médicos atribuíam a morte aos pais das crianças: “filhos de maus pais, péssimas mães, geradores de humores podres, corruptos e de má índole”. Outros acreditavam que os bebês já chegavam fragilizados às instituições e, amamentados por amas escravas, adquiririam outras doenças.

Bebês morriam de fome, sede e frio. Eram acolhidos em instalações precárias com condições sanitárias das piores. Do ponto de vista dos médicos da época, a própria localização das Santas Casas (áreas urbanas) permitiria que fossem afetadas pelos miasmas, vírus ou bactérias oriundas dos aterros, pântanos e cemitérios das áreas circunvizinhas.

Propostas reformistas que visavam combater as causas que se julgavam contribuir para a mortalidade dessas crianças datam dos fins do século XVIII, esclarece o autor. Também, os médicos formados nas escolas de medicina criadas no Brasil, no decorrer do século XIX, tinham o interesse em modificar as condições de vida das crianças. A mortalidade dos expostos, por exemplo, aparece como tema de três das treze teses defendidas, que procuravam propor mudanças em relação à criação dos mesmos.

Entretanto, apesar de algumas mudanças terem sido implantadas, os índices de mortalidade não diminuíram substancialmente. Assim, o destino que se desenhava não era promissor: quando não encontravam a morte quase certa, a essas crianças eram infligidos novos padecimentos e desafios, no decorrer da sua penosa existência.

O destino reservado para aqueles que conseguiam escapar da morte é o tema da quinta parte do livro (Os destinos possíveis). Inicialmente as opções eram poucas: permanecer na casa da criadeira, voltar ao lar de origem ou ser entregue a uma família qualquer. No último quartel do século XVIII aparecem novas oportunidades: ser aceita nos recolhimentos dos órfãos ou seminários ou, ainda, enquadrada na política de valorização do trabalho dos expostos. Não foi esquecida, nessa seção a análise de a possibilidade das crianças se revoltarem com esses destinos que lhes eram impingidos. Da mesma forma, Renato Venâncio procurou analisar ainda o perigo que pairava sobre os mestiços e negros de se tornarem presas dos mercadores de escravos.

A hipótese da volta das crianças para os pais correspondia a uma pequena parcela. Renato Pinto Venâncio encontrou diferenças significativas entre os casos carioca e baiano, visto que, enquanto uma em cada seis crianças, em Salvador, voltava para os pais, no Rio de Janeiro, os laços dificilmente eram refeitos após o abandono. Os dados quantitativos mostraram, por outro lado, que praticamente 85% dos enjeitados devolvidos aos pais voltavam ao lar de origem antes de completar um mês sob a tutela da Casa da Roda. Entretanto, as fontes silenciam a respeito daqueles pais que quiseram recuperar os seus filhos e não o conseguiram. Outro dado de interesse mostra que os recuperados mestiços e negros eram em número inferior aos brancos.

Quanto ao perigo da escravização, a Lei nº 483 de 2 de setembro de 1847, que tinha o intuito de evitá-la, determinava que a entrega da criança estaria condicionada à perfilhação da mesma. Contudo, o autor assinala que as conseqüências da bem-intencionada lei acabaram por fazer diminuir o número de crianças recuperadas pelos familiares e não cumpriu o seu objetivo de evitar a escravização de crianças abandonadas. A escravização daquelas crianças é um fato, apesar de toda criança abandonada ser considerada livre. Muito das criadeiras e criadores acabavam a reduzir a criança ao cativeiro, apesar das punições severas previstas em lei.

O reverso da medalha foi analisado na seção seguinte, através da análise do compadrio, encarado como uma forma de adoção popular. Fica claro que, em inúmeros casos, criadores e criadeiras integravam a criança à família da acolhida, através do parentesco espiritual. Os nomes dos padrinhos apontados nas atas de batismo foram utilizados pelo autor para estabelecer as relações de parentesco espiritual entre as famílias criadeiras e os enjeitados. As diversas nuanças da co-relação compadrio/abandono foram analisadas à luz dos dados disponíveis nas fontes utilizadas.

Essa situação, acredita o autor, foi originada pelos próprios mecanismos de adoção legal, uma vez que os empecilhos colocados àqueles que queriam adotar o enjeitado eram tantos que mais pareceriam regras de não-adoção.

A introdução da criança exposta no trabalho doméstico e na locação de serviços era outra opção, uma vez que era uma preocupação constante da Santa Casa evitar que a ociosidade dos enjeitados os levasse à vadiagem ou à prostituição. E, em troca do trabalho que poderiam prestar até os 14 anos de idade, teriam sustento e moradia. Por outro lado, a própria ambigüidade das leis que estimulavam a permanência dos expostos no seio de famílias adotivas abria caminho para a escravização. Afinal, tal e qual os cativos, os expostos trabalhavam em troca de comida e abrigo.

Havia ainda os conventos, recolhimentos e seminários. Os recolhimentos diferiam dos conventos apenas por não terem o objetivo de formarem freiras. Para os meninos, havia ainda a possibilidade de serem aceitos nos seminários, o que constituía, segundo o autor, uma chance extraordinária para os abandonados, pois se acreditava que o sacerdócio os purificava socialmente.

Os ofícios manuais constituíam outra alternativa para os enjeitados. Costura e fiação, para as meninas, ferreiros, louceiros, seleiros, entalhadores, latoeiros, pintores, ourives, amerceneiras, etc, para os meninos.

Embora todo um arsenal de leis tentasse encaminhar os enjeitados sobreviventes, resta uma pergunta: até onde se subordinavam aos desígnios das instituições assistenciais?

De acordo com o autor, a realidade do abandono quase sempre esteve distante dos objetivos da lei. Muitos fugiam ao controle da Casa da Roda. As leis e os regimentos, além do mais, não previam os desaparecimentos que ocorriam quando os enjeitados e enjeitadas chegavam à adolescência. Como retê-los depois que deixavam de estar com as amas?

As condições de vida eram difíceis. Para aqueles que sobreviviam à mortalidade altíssima, a saída do domicílio da criadeira significaria, de acordo com Venâncio, uma morte social e afetiva, pois destruía a única referência familiar que possuíam. O destino era dos mais tenebrosos: “uma vez rejeitada pela mãe-de-leite, a criança tomava consciência de sua condição de abandonada, tornando-se instável e rebelde, indo morar nas ruas e dando origem a mais uma geração de casais miseráveis que abandonavam os próprios filhos” (p.153).

Na sexta e última parte (Expansão e declínio da assistência aos expostos), o autor aborda o fenômeno da expansão e declínio da assistência aos expostos, analisando o problema da assistência aos bebês sem família, durante a época Moderna, fazendo um balanço das instituições desse tipo que foram implantadas nos quatro cantos do planeta.

Mostrou que existiam particularidades de região para região e entre países católicos e protestantes. Assinalou que mais de 90% dos hospitais europeus que amparavam crianças sem lar localizavam-se nos países de tradição católica: Itália, França e Espanha. Fez também uma incursão ao problema da assistência à criança abandonada em Portugal.

O mundo colonial, por sua vez, foi da mesma forma abordado, procurando analisar a implantação da assistência infantil nas colônias espanholas e portuguesas.

No Brasil, procurou estabelecer a relação entre as Santas Casas de Misericórdia instaladas e a existência de Casas da Roda a elas atreladas. Mostrou a pouca expressão numérica das últimas (em 1750, para 16 Misericórdias só duas – Rio e Salvador – possuíam Roda), como toda a precariedade de atendimento que avançou para o período pós-independência. A assistência, conclui ele, era privilégio de poucos e quase sempre se restringiu às cidades portuárias.

O declínio das casas da Roda, e com ela as formas tradicionais de auxílio à infância, entrou em declínio na segunda metade do século XIX. O surgimento de novas instituições (clínicas pediátricas, orfanatos) oferecia outras oportunidades de enjeitamento, restringindo o recurso às Rodas.

A análise das matrículas por décadas mostra o declínio do seu número, principalmente a partir da década de 1870. E este não foi provocado só pelas mudanças de natureza econômica ou demográfica. Para entender a crise da assistência, na sua perspectiva, é necessário ter em conta as mudanças de mentalidade. E a prova disso é a raridade com que as famílias brancas passaram a recorrer à Santa Casa de Misericórdia. Após 1870, menos de 10% das crianças assistidas eram brancas. As instituições tradicionais passaram a ser abrigo para as crianças de cor. A Lei do Ventre Livre transformava, pois, os filhos de escravas em potenciais menores abandonados. É no contexto da crise da escravidão que se deve compreender o declínio das casas de expostos. Passavam a ser vistos como berço das “raças inferiores”.

O processo de desativação iniciou-se em 1927, com a condenação das rodas. Sua definitiva abolição ocorreu em 1938, no Rio, e em 1934, na Bahia.

Por tratar do fenômeno do abandono institucional com essa riqueza de perspectivas e abordagens, o livro de Renato Venâncio é uma contribuição fundamental ao debate sobre a história das populações mais marginalizadas, que fazem parte intrínseca do Brasil de ontem e de hoje.

Ao final da sua leitura, percebemos porque não parece descabido o título Famílias Abandonadas, que, num primeiro momento, poderia soar estranho em um livro que trata da assistência à criança abandonada. Como demonstrou Renato Pinto Venâncio, ao longo das páginas de seu estudo, são crises no universo familiar da população mais pobre que tornavam imperativo o uso da Roda dos Expostos e faziam movimentar as engrenagens da assistência mantida pelas Santas Casas de Misericórdia.

O percurso ingrato, e quase sem porvir, dessas crianças originárias, na maioria, de famílias pobres foi farta e solidamente demonstrado através da documentação e da análise minuciosa desenvolvida. Toda essa reconstrução histórica nos faz meditar não só na morte física, mas também na morte social e afetiva que marcava a infeliz e curta vida dessas crianças de outrora.

Por outro lado, faz, ou pelo menos deveria fazer, refletirmos sobre o presente: até quando o mecanismo perverso que força o abandono de crianças entre as famílias pobres persistirá?


Resenhista

Ana Silvia Volpi Scott – Professora Visitante do Departamento de História da Universidade Estadual de Maringá. Doutora em História e Civilização pelo Instituto Universitário Europeu – Florença/Itália.


Referências desta Resenha

VENÂNCIO, Renato Pinto. Famílias Abandonadas: Assistência à criança de camadas populares no Rio de Janeiro e em Salvador – séculos XVIII e XIX. Campinas: Papirus, 1999. Resenha de: SCOTT, Ana Silvia Volpi. Diálogos. Maringá, v.4, n.1, 221-230, 2000. Acessar publicação original [DR]

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